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Dignidade da pessoa humana: uma prerrogativa de todos

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A PESSOA COMO COMEÇO, MEIO E FIM DO DIREITO. PARA ALÉM DO POSITIVISMO JURÍDICO

Pensar a pessoa como princípio, meio e fim do direito é uma questão importante. É importante porque, como se anotou, a pessoa precede ao direito e este deve se voltar para ela. Quando há esta correlação, o direito se justifica e se faz razoável. Por outro lado, a se admitir qualquer outro ponto de partida, ter-se-á um ordenamento em crise.

A pessoa, vista como ponto de partida e chegada do ordenamento jurídico, oferece-lhe uma oportunidade singular de se fazer coeso e coerente. Coesão e coerência, em si consideradas, permitem a superação de certas contradições, cada vez mais comuns na realidade plural que a contemporaneidade apresenta.

A problemática do transexual é destes temas cada vez mais recorrentes na sociedade múltipla que vivenciamos. A maior permissividade e tolerância têm encorajado os transexuais a externarem o sentimento de pertença ao gênero diferente do que aponta o sexo genitálico, gonadal ou cromossômico. Este sentimento de pertença vem suscitando grande interesse. Por isto mesmo integra a pauta de discussões de médicos, psicólogos e juristas.

Que há discussões acaloradas sobre a transexualidade não há qualquer dúvida. Por isto mesmo o terceiro capítulo trará em seu cerne esta discussão. Ao momento, todavia, considerando que se está a discutir a situação topográfica da pessoa no plano jurídico, importa dizer que a estrutura nuclear do direito não se afina com qualquer tipo de idéia sectarista. Ao contrário. É a noção de inclusão que deve sobressair.

A consideração acerca da inclusão é relevante porque permite a que se discuta o direito em um plano além do positivista, portanto, preocupado com a moral e a ética. O direito, nesta quadra, se volta para a teleologia e para a axiologia que o informa. O valor é a pessoa, e isto resume as questões axiológicas. O objetivo também é a pessoa, fato que consolida sua aspiração teleológica.

A Dignidade da Pessoa Humana é o cerne do direito. Resta claro, por isto mesmo, que é seu dever se organizar para que a Dignidade seja exercida na sua plenitude. Assim – como a Dignidade aponta para racionalidade e autonomia, essencialmente – o direito deve fornecer meios para que as deliberações, tomadas racionalmente por pessoas, possam ser efetivadas dentro do aspecto autônomo de que todas gozam.

A necessidade de instrumentalização do direito para permitir o exercício das prerrogativas correlatas à Dignidade é uma das questões que devem ser pensadas para além do positivismo jurídico, modelo de organização do ordenamento jurídico que peca ao pretender formalizar de modo antecedente todo o funcionamento da sociedade.

Não há dúvida de que a norma deve ser abstrata e genérica, assertiva que decorre da consagração do Estado de Direito. Por outro lado, abstração e generalidade não podem implicar em negação do que a norma não previu. Nestes casos uma integração sistêmica deve ser feita. Não pode o ordenamento ignorar as demandas advindas da sociedade. O Poder Judiciário, ao atender o que não foi previsto no plano Legislativo, não pode proceder de modo a negar Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade. Além disto, não poderá negar o que foi consagrado em outros ramos dos saberes, embora sua atuação seja autônoma.

É de se dizer, na perspectiva tracejada, que o atendimento das demandas sociais ignoradas pelo direito posto é uma das mais nobres funções do direito e sua função social agregadora, surgida na elevação da Pessoa Humana [62]. Assim, mesmo que exista uma regra estabelecendo determinada prestação, esta pode ser dispensada se foi elaborada sem a consideração do valor Dignidade Humana.

No plano atual a consideração da Dignidade da Pessoa Humana é uma realidade doutrinária. A um só tempo o Direito Positivo [63] – e a idéia de segurança que a este se associa – tem seu lugar no ordenamento jurídico. Exatamente por isto há que se fomentar uma compreensão sobre o tema.

A noção de Direito Positivo se confunde com a história ocidental. Desde Platão e Aristóteles [64] já se falava nestes conceitos. Uma alusão que é recorrente na história, vide as idéias que cercam o Positivismo Filosófico de Comte [65].

A noção de Direito Positivo e Natural, vista na quadra helênica, também é encontrada na Roma Antiga. Nesta o Direito Positivo se encontrava referido no jus civile e, representando o Direito Natural havia o jus gentium.

A queda do Império Romano do ocidente com a tomada de Roma fez nascer nova era: A Medieval. Neste período os pensadores se atêm a discorrer sobre a lex naturalis e a lex humana. Apontam, basicamente, que esta é produto da razão e que aquela é decorrência da natureza, acessível à compreensão humana no plano descritivo.

Superado o Medievo chega-se à Idade Moderna, marcada pela chegada de Colombo à América, a conquista de Granada pelos espanhóis e o fim do domínio mouro, a Reforma Religiosa [66], a consolidação da Inglaterra como grande potência naval, a Revolução Gloriosa, o Tratado de Paris e a Declaração de Independência das treze colônias inglesas da América do Norte, eventos importantes que configuraram a base para a mudança paradigmática da contemporaneidade: a Revolução Francesa.

O movimento revolucionário francês trouxe consigo uma mudança de paradigma. Uma alteração de rumo que aponta em várias direções, mas, sobretudo, na linha da liberdade e da igualdade, reclamos da burguesia. Estas aspirações, tal como idealizadas, serviriam para garantir a segurança jurídica negada ao Terceiro Estado pela vivência da discricionariedade abusiva de que gozavam nobreza e clero.

Na quadra relatada o Positivismo Jurídico se apresenta como o grande modelo de organização do direito. Em nome da segurança é alçado à condição de diretor da dinâmica comunitária, devendo, de forma a priori, descrever os comportamentos que importam à realidade social.

No momento vivenciado a pessoa não está fórmula jurídica. O ter [67], representante do novo regime, é que deve ser preservado. Assim, conquanto o direito seja visto como meio de se satisfazer as necessidades advindas das relações sociais, sua função precípua é a preservação do status quo. Nesta direção o direito oriundo das revoluções é um organismo que se estrutura conjugando normas positivas e que pretende ser completo. Uma pretensão, a princípio, alimentada pelo medo da volta do antigo regime.

Não-obstante a importância histórica do positivismo, não se pode perder de horizonte que o direito, desde as mais rudimentares manifestações, existe para servir [68] ao humano. Deve, portanto, ser visto como instrumento, pois, do contrário, este perde sua razão de ser.

A finalidade do direito e sua razão de ser é o Ser Humano. O direito surge como instrumento de pacificação social, voltado ao bem das pessoas para que manifestem (em particular e em sociedade) a Dignidade que lhes é inerente. O que se quer é a plenitude de vida para cada pessoa no conjunto social. Desta forma não pode a pessoa se sobrepor ao coletivo, como quiseram os liberais. Ao mesmo tempo não se pode impor à pessoa viver o coletivo em detrimento de suas aspirações mais íntimas, como ocorre com os transexuais ao verem negada a possibilidade de assumir fisicamente o gênero inscrito na psique.

Do que se diz, a questão se mostra paradoxal. Há uma perspectiva dialética da primazia do eu e do todos, não se podendo prescindir teoricamente de um ou do outro. O que se busca é o bem de cada um, e, ao mesmo tempo, de todos. O eu deve ser realizado, a não ser que contrarie de forma estrutural a perspectiva coletiva. O coletivo também carece ser realizado, mas isto não pode implicar em negação das perspectivas do indivíduo.

Falar da pessoa como princípio e fim do Direito. Basear-se no princípio da Dignidade da Pessoa Humana é afirmar a história. É abrir espaço para uma convivência que sempre deveria ter sido praticada entre nós. Neste ponto é de se questionar os porquês da negação do princípio em exame até os dias de hoje.

Quando se diz que ao transexual se negou a adequação de nome e de sexo, quem conta a história é um juiz ou desembargador. Dificilmente teremos a oportunidade de ouvir ou ler a perspectiva de quem teve a aspiração negada pelo ordenamento jurídico. Por ser assim, dificilmente será possível se saber o que de fato se passa. A pessoa, perdida em pensamentos e aspirações, sairá perdedora, já que sua orientação não será reconhecida pelo sistema.

Ora, se o fim do direito são pessoas, não pode um instrumento do direito, o juiz, se arvorar na condição de negador de realidades. Quando o mundo todo se abre para uma nova possibilidade o direito também deve fazê-lo, sob pena de este se perder. O direito, definitivamente, não pode pretender ser fim, porque enquanto assim foi – positivado, garantido na sua própria estrutura e sem se ligar a valores – se tornou veículo de barbáries. Se afastar do mundo é um modo de se viver uma estrutura ideológica. Nada mais é do que "a visão distorcida ou mistificada da realidade" [69].

Quando se critica os julgamentos a priori, pretende-se que os operadores do direito se vejam como meios de realização de pessoas. Empatia aqui (referente à tolerância na quadra da solidariedade) implica em que se possa ver além da própria vida pessoal para se enxergar que pessoas possam ter aspirações diferentes. Para ver o outro não é preciso sê-lo, mas é necessário o exercício de se colocar em seu lugar. Assim o direito poderá ser instrumento de gente.

Uma vez considerado que o direito não pode ser fim em si próprio, faz sentido a colocação da pessoa no centro do sistema jurídico, sobretudo se for considerado que a Constituição brasileira apresenta em seu artigo primeiro a Dignidade Humana como fundamento explícito.

A elevação da pessoa como relatada traz alguns nós epistemológicos, sobretudo porque não mais podemos ler a Constituição com olhos meramente positivistas. Positivismos Filosófico e Jurídico (ainda arraigados como parte do inconsciente coletivo jurídico) não podem ser fundamento para se esvaziar o alcance da pessoa em nome de uma pseudo-segurança jurídica. É preciso se lembrar, sempre, que vivemos em um Estado Democrático de Direito e este tem uma função, antes de tudo, transformadora. Não mais podemos nos contentar com Estado de Direito (regulador) e Social, voltado para a promoção. É preciso que aspiremos e vivenciemos um Estado que seja, em essência, transformador. Uma transformação que deve ser feita a partir do pilar fundamental que é Pessoa Humana.

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Visto o Direito na perspectiva transformadora, um problema subjacente aparece. O Positivismo, tanto o Filosófico quanto o Jurídico, é, em essência, de cunho materialista. É preciso lembrar que desde Comte toda e qualquer dimensão espiritual foi banida em nome da ciência. Que foram ultrapassadas as fases teológica e metafísica da civilização humana. Que o direto se fez positivo e pretensamente absoluto e sem lacunas.

A Constituição mudou. O espírito positivo, contudo, continua vigorando de modo expressivo. Vive-se em um Estado Democrático de Direito [70], mas isto significa pouco para a grande maioria da população. Por isto tantas dificuldades da maioria da população em conseguir educação pública de qualidade, atendimento adequado nos hospitais e, até mesmo, alimentos. Um cenário que a uma reconsideração de soberania popular, capaz de superar a noção de sufrágio universal. Com isto, ou se permite uma participação (in)fluente [71] do maior número de atores sociais, apta à realização de valores afetos à Pessoa Humana [72], ou se assume que Estado Democrático de Direito é um construção retórica no Brasil.

A sociedade brasileira tem por base a Dignidade da Pessoa Humana. Deste modo o direito tem de estar baseado a este princípio. O que se constata, todavia, é que este ainda não foi incorporado de fato à realidade jurídica e social. Há distorções das mais variadas. Fala-se de uma virada paradigmática, mas esta virada, faticamente, é formal.

A base filosófica adequada ao Direito, que o coloque no tempo e espaço com a devida eficácia, livrando-o de anacronismos e paradoxos, deve levar em conta a totalidade da pessoa. A ciência jurídica tem um motivo e um fim. Para tanto deve levar em conta a Dignidade da Pessoa como modo de se superar a leitura estreita que se faz da tese do ordenamento jurídico. É preciso se fomentar uma leitura valorativa para que se possa ter, de fato, um ordenamento unitário, coerente e completo.


APONTAMENTOS FINAIS

Partindo-se do postulado de que a pessoa, individualmente considerada, é o valor supremo da ordem jurídica e que a garantia de sua Dignidade é um princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não há como se negar a ninguém as prerrogativas afetas aos Direitos da Personalidade.

Ubi homini, ibi societas; ubi societas, ibi jus. Onde há homem há sociedade; onde há sociedade há direito. Há direito porque há sociedade. Há sociedade porque existem homens. Nesta linha se tem assente que o fim do direito é proteger os valores supremos que garantam a Dignidade do homem. O direito surge do homem, com o homem e para o homem e assim, deve ser visto para que a pessoa tenha preservado o local especial que sua existência lhe confere no ordenamento jurídico. Um local que se faz habitável ao se considerar que à pessoa se deve reconhecer a condição de começo, meio e fim do direito.

A Constituição da República, ao estabelecer como seu fundamento a Dignidade da Pessoa Humana, a elegeu núcleo irradiador do ordenamento. Trouxe, desta forma, uma nova possibilidade de se ver e de se interpretar o sistema jurídico. Uma visão que deve se voltar, certamente, para uma maior consideração das situações existenciais.

A consideração das situações existências é um dado que se mostra essencial para a preservação do sistema. Dizemos isto porque, do momento que a Dignidade da Pessoa Humana é alçada à condição de vetor do ordenamento, este não pode ser pensado sem este viés. Do contrário, ter-se-á um ordenamento em crise e marcado por paradoxos, onde o discurso é um e a prática outra.

Quando se diz que à Pessoa Humana se reconhece um local especial, diz-se também que este local só se faz habitável quando esta pode desfrutar das prerrogativas que lhe são inerentes, notadamente autonomia e racionalidade. Estes caracteres despontam como meios únicos para o exercício efetivo dos atributos que identificam e particularizam o Ser Humano na construção que o cristianismo e a filosofia apreenderam.

A noção de Dignidade da Pessoa Humana deve muito à doutrina cristã, já que foi a partir desta que se pôde pensar o homem sob a ótica da igualdade. Um homem criado à imagem e semelhança de Deus e que, portanto, tem valor especial na escala dos seres.

Da igualdade germinal do cristianismo, filtrada no discurso do racionalismo humanista e seu viés laico, chega-se à Dignidade da Pessoa Humana na perspectiva de Kant. Uma possibilidade de enxergar o Ser Humano que parte de sua racionalidade e autonomia para lhe reconhecer a condição de especial na escala dos seres. Uma condição que subsiste até mesmo nos casos de privação de sentidos, hipóteses em que a Dignidade se manifestaria de modo potencial ou realizável.

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Sobre o autor
Alessandro Marques de Siqueira

Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da Pós-Graduação na Universidade Cândido Mendes em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ na cidade de Petrópolis. Associado ao CONPEDI - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Alessandro Marques. Dignidade da pessoa humana: uma prerrogativa de todos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2642, 25 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17485. Acesso em: 22 nov. 2024.

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