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O Direito Agrário e o princípio democrático

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Júlio da Silveira Moreira
Júlio da Silveira Moreira
26/09/2010 às 20:32
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Sumário: 1. Introdução; 2. A conquista da autonomia do Direito Agrário; 3. Os problemas sobre a jurisdição agrária; 4. Os princípios do Direito Agrário; 5. O papel do Direito Agrário na transformação democrática; 6. O papel do jus-agrarista; 7. Conclusão; 8. Referências.

Palavras-chave: Direito Agrário – Autonomia – Justiça Agrária – Princípios – Terra – Democracia.


1. Introdução

A realidade social brasileira é marcada historicamente pelos conflitos agrários. Milhões de camponeses deram e dão seu suor e seu sangue para sustentar a população e construir, juntamente com os operários, as riquezas do país, mas não têm o que lhes é de direito.

O grito de dor e de luta do povo da terra invade as Faculdades de Direito, pela voz dos acadêmicos comprometidos com a ciência e com a justiça, e assim se desenvolve o Direito Agrário. Esse grito ultrapassa também as paredes rígidas e cinzentas dos tribunais.

Fomentado pelas discussões e processo de ensino-aprendizagem no Curso de Especialização em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás, aliados à pesquisa bibliográfica complementar e à vivência da realidade, este artigo propõe-se à reflexão sobre as razões da existência do Direito Agrário na sua concepção atual, reafirmando o Direito como originado dos conflitos sociais. Nessa esteira, procura-se fazer uma discussão sobre os problemas e limitações relativos à instituição da Justiça Agrária. Em seguida, abordar-se-ão os princípios basilares desse ramo autônomo do Direito para se atestar seu compromisso com a mudança radical da estrutura agrária brasileira. Diante de tudo, far-se-á uma reflexão necessária sobre o papel do jus-agrarista no contexto traçado.

A metodologia utilizada teve como referência o materialismo dialético, a partir da exploração das contradições internas dos fenômenos, e da vinculação constante dos elementos superestruturais com a base econômico-social. As fontes de pesquisa foram bibliográficas, aí se incluindo livros, jornais e publicações eletrônicas.


2. A conquista da autonomia do Direito Agrário

Primeiramente, cabe a indagação sobre a definição de Direito Agrário, suas fontes, bem como o processo histórico que levou ao seu reconhecimento no plano legislativo, científico, didático, e, embrionariamente, no plano jurisdicional.

Na definição sintética de Marcelo Dias VARELLA (1997, p. 267), "direito agrário é o conjunto de normas e princípios que visam regular e desenvolver a atividade agrária e promover o bem-estar da sociedade."

Vários respeitados jus-agraristas se empenharam em formular definições completas e científicas para o Direito Agrário, cada qual enfocando um princípio ou característica que entendesse ser a mais importante, e outras vezes pendendo a uma suposta neutralidade.

Se o Direito em geral aplica-se sobre os fatos sociais (relações dos homens e mulheres entre si e sobre a natureza, aqui empregada em sentido amplo - o mundo concreto), permeados de conflitos sociais de diversos tipos, este ramo do Direito aplica-se sobre as atividades agrárias por sua vez permeadas de conflitos sociais agrários, tomando corpo contradições de classes, principalmente entre a classe latifundiária e a classe dos camponeses pobres. Nesse contexto, uma pretensa neutralidade nas categorias do Direito Agrário seria conservadora, servindo à parte no momento dominante da contradição.

Como o Direito origina-se dos fatos sociais, a principal fonte (fonte material, tomando-se a classificação tradicional) do Direito Agrário são os conflitos de interesse (litígios), sociais e inter-individuais, decorrentes das atividades agrárias. Estes por sua vez determinam, numa relação dialética, a formação das fontes classificadas como formais: a legislação, a doutrina, a jurisprudência e os costumes.

Somos necessariamente levados a discordar, com interesse científico, do renomado agrarista Rafael Augusto de Mendonça Lima (apud MARQUES, 2005 p. 25), quando este diz que as fontes materiais do Direito Agrário são "a política agrária" e "os planos do poder público relativos à produção agrária". Entendemos que, assim concebendo, está-se vendo o direito sob o prisma do monismo estatal, ou seja, de que apenas o Estado produz direitos, que o direito provém do Estado e não dos fatos sociais. Sem os conflitos sociais não haveria sequer Estado.

Mister referenciar aqui a definição dos movimentos sociais como "sujeito coletivo de direito" nas circunstâncias em que "a carência social é percebida como negação de um direito que provoca uma luta para conquistá-lo" (SOUZA JR, 1991, p. 26). "Os direitos não são percebidos a partir do legal, mas sim da constituição de uma consciência política do social" (PINTO, 1992, p. 16)

Diante do clamor público que os conflitos sociais agrários vêm ensejando ao longo da história do país, o Direito Agrário foi se constituindo como um ramo do Direito que não vê outra maneira de alcançar a justiça no plano do dever-ser, senão posicionando-se em tese em favor dos mais desprovidos dos direitos realizados, os pobres do campo.

Ademais, o compromisso com as classes populares e com a mudança da estrutura fundiária brasileira é exatamente o ponto em que o Direito Agrário alça sua autonomia, distinguindo-se do Direito Civil sobretudo em suas noções de posse, propriedade e contratos.

Nas particularidades da formação fundiária do Brasil, o principal conflito agrário é a luta pela posse da terra, que assume, nos dizeres de Sérgio Sérvulo da CUNHA (2000, p. 251), a dimensão de um "conflito macropossessório". O levantamento dos conflitos agrários em 2005, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) bem demonstram a que se refere CUNHA: O número de conflitos em 2005 aumentou 4,4% (1.881) em comparação com 2004 (1.801). Em 2005 houve 38 assassinatos de camponeses, diretamente em conflitos agrários, 64 mortes em decorrência do desamparo enfrentado pelos pobres do campo (aumento de 100% em relação a 2004), aí se incluindo as 13 pessoas mortas por excesso de trabalho no interior de São Paulo e as 28 crianças indígenas de até 3 anos de idade que faleceram por desnutrição no Mato Grosso do Sul. Tudo isso considerando-se que os próprios organizadores do relatório apontam que ele "provavelmente consegue captar apenas 20% a 25% do total real dos conflitos" (apud HASHIZUME, 2006).

Na mesma matéria, cita-se pronunciamento do Prof. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Universidade de São Paulo – USP, aqui transcrito:

O triunvirato formado por grileiros, madeireiros e pecuaristas transgride a lei, ocupando áreas devolutas - dessa forma definidas desde a primeira Constituição republicana de 1891 - que nada mais são que terras públicas que ainda não foram discriminadas. De posse ilegal da terra e da conseqüente exploração da mesma, esses transgressores se constituem como forças políticas locais. Forma-se então o ambiente propício para o desmando e a impunidade em nome da manutenção do poder e da acumulação econômica, que estão diretamente relacionados com a questão da violência.

Portanto, é a pressão causada pelos movimentos populares, o sangue derramado pelos camponeses do Brasil, que veio causando historicamente o desenvolvimento do Direito Agrário, ou seja, um ramo do direito autônomo, formado pela contestação do direito posto e aplicado.

No centro desse processo histórico, estão as reivindicações políticas pela chamada reforma agrária e pela destruição do sistema latifundiário.

A respeito, MARQUES (2005, p. 115) diz que

Subsistem, todavia, os choques de interesses no meio rural entre os que têm e os que não têm terra, o que se evidencia na luta permanente por justiça social no campo, encetada por ações corajosas dos movimentos sociais aguerridos, gerando, em conseqüência, uma constante reformulação normativa.

Os jus-agraristas em geral enfatizam a autonomia do Direito Agrário em vários planos, quais sejam, autonomia legislativa, científica, didática e jurisdicional.

No plano da autonomia legislativa está a cobrança de uma legislação à altura da complexidade das relações jurídicas agrárias, adicionada das particularidades dos países explorados na ordem internacional. Essas relações sempre foram tuteladas insatisfatoriamente por outros ramos do direito, principalmente o Direito Civil, que tem seus referenciais no individualismo e na sacralização da propriedade. A Lei n. 601/1850 (Lei de Terras) veio para cobrir o vácuo legislativo deixado após a revogação do regime colonial de sesmarias, em 1822. Não era, porém, uma lei que atendia aos interesses dos camponeses pobres, pelo contrário, favorecia a concentração das terras.

Um projeto de Código Rural foi apresentado pelo Prof. Joaquim Luís Osório à Câmara dos Deputados, em 1912, o qual não foi adiante. A Constituição de 1934 trouxe a competência expressa da União para legislar sobre "Direito Rural" (art. 5º, XIX, "c"). Em 1937, dois novos projetos de Código Rural, o de Favorino Mércio, apresentado perante a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, arquivado diante da competência legislativa privativa da União, e o de Borges de Medeiros à Câmara dos Deputados, que se perdeu com o fechamento do Congresso no golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Apenas em 1964, com a promulgação da Lei n. 4.504, o Estatuto da Terra, que o Direito Agrário veio consolidar sua autonomia legislativa.

Todas as iniciativas mencionadas foram impulsionadas pelos conflitos pela posse da terra, culminando-se, na ocasião do Estatuto da Terra, a aniquilação genocida, pelo Exército Brasileiro, após o golpe militar de 1964, das Ligas Camponesas, que vinham se desenvolvendo desde o final da década de 40.

Aqui se tornam emblemáticos os dizeres de Gishkow (apud RIBEIRO, 1997, p. 233) de que "a desvinculação do direito agrário do direito civil não foi uma posição doutrinária, mas a contestação de uma necessidade política e econômica, com inegável caráter jurídico".

Também são o Estatuto da Terra e sua legislação complementar que reforçam a autonomia científica do Direito Agrário. O que dá essa autonomia são princípios, objeto e método próprios. E tudo isso já foi desenvolvido no Direito Agrário. Quanto aos princípios, veremos a seguir. Quanto ao objeto, tratam-se das atividades agrárias. Já o método leva em conta aqueles princípios, para abordar um objeto cheio de particularidades visando um fim específico que é a justiça social.

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O método próprio do Direito Agrário é sistematizado na sua doutrina, que aborda um programa de estudos próprio, consumando a autonomia didática. Já em 1943 solicitava-se ao Congresso Nacional a criação da cátedra de Direito Rural nas universidades brasileiras. Em 1972, com a Resolução n. 3 do antigo Conselho Federal de Educação, o Direito Agrário foi incluído definitivamente nos currículos das faculdades de direito, como matéria obrigatória ou opcional. Em 1975, o I Seminário Ibero-Americano e Brasileiro de Direito Agrário, em Cruz Alta/RS, aprovou recomendação para que o Direito Agrário se tornasse matéria obrigatória na grade curricular mínima dos cursos de Direito, sendo cursada em dois semestres, preferencialmente nos últimos. Hoje, permanece a luta por essa obrigatoriedade.


3. Os problemas sobre a jurisdição agrária

Não adianta uma concepção acadêmica avançada sobre o Direito Agrário, se essa concepção não ultrapassar os limites das universidades e dos encontros de jus-agraristas para chegar às mais distantes regiões rurais do país, onde o "conflito macropossessório", como expresso acima, toma lugar.

Ocorre que, enquanto estão sendo discutidos os avanços do Direito Agrário, juízes estão despachando liminares a toque de caixa contra posseiros e as forças de repressão estão cumprindo seu papel, qual seja o de assegurar a manutenção do status quo, leia-se defender e bajular as classes sociais dominantes mediante a violência contra as classes populares.

A constituição de uma justiça agrária especializada (autonomia jurisdicional) é uma reivindicação constante dos jus-agraristas, tida como pressuposto para o acesso à justiça para os pobres do campo e para um trato jurídico no mínimo eficaz dos conflitos agrários, uma vez que, com todos passos dados na autonomia do Direito Agrário, o universo dos juízes que lidam com as causas agrárias continua sendo "composto de conflitos idealizados pelo sistema, que são afastados sem serem resolvidos" (CINTRA JR., 1996, p. 19, grifos do original).

Nos idos de 1910, Rui Barbosa já advogava a criação da justiça agrária, como uma "justiça chã quase gratuita, à mão de cada colono, com um regime imburlável, improtelável, inchicanável. Toda a formalística, em pendência entre colono e patrão, importa em delonga, em incerteza, em prejuízo, em desalento." (apud VARELLA, 1997, p. 410)

A Justiça Agrária que se reivindica encontra paralelo de semelhança na estrutura e processo de instalação da Justiça do Trabalho. Todavia, não segue adiante, devido às suas particularidades e ao contexto histórico atual, diferente daquela da época em que foi criada a Justiça do Trabalho. MARQUES (2005, p. 115) entende que

A explicação para esse indesejável quadro reside, basicamente, na visível resistência das classes dominantes, notadamente dos que compõem o corpo político, porque se alimentam justamente da manutenção desse estado de coisas. Para estes, a má distribuição de rendas, o analfabetismo, a precariedade da saúde, a desabitação, o desemprego, a fome e a miséria que atingem milhões de brasileiros constituem a garantia do seu status.

A Constituição Federal de 1988, em seu texto original, avançou em perspectiva favorável, quando dispôs, no art. 126 (BRASIL, 1988), que

Art. 126. Para dirimir conflitos fundiários, o Tribunal de Justiça designará juízes de entrância especial, com competência exclusiva para questões agrárias.

Parágrafo único. Sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional, o juiz far-se-á presente no local do litígio.

Em 1989, o Ministério da Justiça encomendou, a uma comissão formada por Raymundo Laranjeira, Octavio Mello Alvarenga e Otávio Mendonça, a criação de um anteprojeto de lei complementar para regulamentar aqueles dispositivos constitucionais. Iniciativa semelhante tinha sido tomada em 1968, pelo Ministério da Agricultura. Ambas não se concretizaram.

Decorridos quase dez anos da Constituição de 1988, aqueles dispositivos seguiram sem cumprimento na maior parte dos Estados brasileiros, sobrevindo, em 2004, com a badalada Emenda Constitucional n. 45, um avanço no texto constitucional, substituindo a exigência de designação de "juízes de entrância especial" por varas especializadas.

Todavia, não compartilhamos do entendimento de que a criação de varas especializadas seja suficiente para a solução justa dos conflitos no campo. Já constatando as limitações, o Prof. Paulo Torminn BORGES (1996, p. 145), traçava o seguinte comentário, lamentando a não instituição da Justiça Agrária na Constituição de 1988:

Isto de Varas especializadas ou entrâncias especiais (...) é engodo. Não resolve nem ajuda. Precisamos, isto sim, é de juízes especializados, isto é, juízes com cabeça de agraristas, juízes com mentalidade agrarista.

Nota-se que a questão é bem mais ampla, envolvendo diversos problemas:

1º – A vara agrária está inserida na estrutura judiciária tradicional. O segundo grau de jurisdição da vara agrária é o mesmo Tribunal de Justiça habituado a julgar os conflitos patrimoniais;

2º – A vara agrária continua aplicando a legislação civilista: no âmbito estadual as ações mais comuns relativas a conflitos agrários são os interditos possessórios (interdito proibitório, manutenção na posse e reintegração na posse), em que prossegue-se aplicando o Código de Processo Civil, cumprindo o juiz da vara agrária o mesmo papel do juiz cível, ou seja, o de cumprir sua parte na indústria da desocupação de "sem-terras", uma vez que foi nisso que se tornaram as ações possessórias em conflitos coletivos. A via conciliatória que a vara agrária promove nos autos da ação possessória, apenas neutraliza temporariamente o conflito sem resolvê-lo. E por vezes assume o efeito de empurrar para os camponeses a responsabilidade pela sua própria desocupação violenta, invertendo assim as responsabilidades no jogo.

3º – Sem uma mentalidade consciente dos princípios norteadores do Direito Agrário, e, principalmente, com o comprometimento ideólogico e político dos juízes e demais atores da cena jurídica com as classes dominantes, imbuídos dos pré-conceitos formados inclusive pelos monopólios de comunicação, somados à experiência de vida desses atores alheia à experiência de vida dos seus jurisdicionados, não haverá justiça agrária eficaz.

Depreende-se, portanto, que a Justiça Agrária, sendo nos marcos da estrutura judiciária e institucional do Estado brasileiro, será sempre condicionada pelas opções políticas desse Estado, que não são (e nunca foram) favoráveis aos injustiçados.


4. Os princípios do Direito Agrário

Conforme alhures mencionado, os princípios próprios do Direito Agrário atestam seu método e de conseqüência sua autonomia científica. Ademais, são frutos das ferozes lutas reivindicativas e políticas das classes populares no país, sobretudo no que tange à secular luta pela posse da terra.

O Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64) traz em seu Capítulo I do Título I o tema "Princípios e Definições", ali tratando, expressamente, dos fins daquele diploma quanto à promoção da Reforma Agrária e da Política Agrícola, do condicionamento do direito de propriedade rural à função social, e das obrigações do Poder Público para assegurar a terra a quem nela trabalha.

Essa introdução ao Estatuto da Terra, embora seja um delineamento dos princípios fundamentais do Direito Agrário, não exaure todos os princípios, que daqueles decorrem, estão implícitos nos demais artigos, e, principalmente, expressos na doutrina do Direito Agrário.

VARELA (1997, p. 263), após expor as características principais do Direito Agrário sistematizadas pelo argentino Vivanco, expõe um rol de princípios que podem ser aqui citados:

a) a realização da justiça social;

b) a função social da propriedade rural;

c) a preservação da biodiversidade;

d) o crescimento contínuo da produção e da produtividade, com o fortalecimento da economia nacional;

e) o bem-estar econômico e social do homem do campo;

f) a fixação à terra dos que a tornarem produtiva com o seu trabalho e de sua família;

g) a liberdade e a igualdade do acesso à terra;

h) a penalização dos que a possuem sem cumprir sua função social;

i) a destinação produtiva das terras públicas, preferencialmente para promover o acesso à igualdade social;

j) a proibição do arrendamento das terras públicas;

l) a eliminação de todas as formas antieconômicas e anti-sociais do uso da terra agricultável, como o minifúndio e o latifúndio;

m) a proteção aos que cultivam a terra, ainda que arrendatários ou parceiros agrícolas;

n) o fortalecimento do espírito comunitário;

o) combate aos mercenários da terra;

p) a imposição constante de novos paradigmas para a ciência jurídica;

q) ação coordenada da atividade e da legislação agrária com a ordenação do território.

Os princípios aqui enumerados trazem a complexidade de um ramo do Direito voltado para a constituição de uma sociedade justa e socialmente desenvolvida. Bem demonstram a opção do Direito Agrário pelos camponeses pobres, incorporando consignas históricas do movimento camponês como "terra para quem nela trabalha" e "destruir o latifúndio" (domínio popular).

Há que se observar mais detidamente um princípio, citado por MARQUES (2005, p. 22), de que "o Direito Agrário é dicotômico: compreende política de reforma (Reforma Agrária) e política de desenvolvimento (Política Agrícola)".

Fica a questão se, dessa forma, está-se opondo a idéia de Reforma Agrária à de Política Agrícola, como se uma atendesse aos pobres e a outra atendesse aos ricos, ficando o Direito Agrário numa aparente imparcialidade. Entendemos que não se trata disso. Afinal, a "política de reforma" e a "política de desenvolvimento", em condições ideais (portanto fora das condições concretas da "Reforma" Agrária e da Política Agrícola do Brasil), andariam numa lógica complementar, ou seja, equilibrando o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico, a correção das injustiças sociais com desenvolvimento nacional.

Todavia, tal lógica de complementaridade não suporta o crivo da realidade, quando se trata da ação concreta do Estado brasileiro. Aí, "Reforma Agrária" significa mera demagogia e "Política Agrícola" significa o uso da máquina do Estado em benefício da minoria latifundiária e das corporações estrangeiras. Dizia Marcos COELHO (1996):

As metas estabelecidas pelo Estatuto da Terra eram basicamente duas: a execução de uma reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura. Três décadas depois, podemos constatar que a primeira meta ficou apenas no papel, enquanto a segunda recebeu grande atenção do governo, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento capitalista ou empresarial da agricultura.

Quanto à Reforma Agrária, fundamentando-se em dados oficiais, aduz Ana Lúcia Nunes de SOUSA (2007) que

São pífios os resultados. Apenas 245.061 mil famílias haviam sido assentadas até 2005. E mesmo a promessa de assentar 400 mil famílias pode ser considerada uma cifra irrisória, quando existe em torno de 15 milhões de trabalhadores que não possuem nenhuma terra, mas que sobrevivem do campo, ou seja, são empregados, parceiros ou arrendatários. Isto sem contabilizar as milhares de famílias camponesas que se amontoam nas favelas e bairros periféricos das grandes e pequenas cidades do país.

Já quanto à Política Agrícola, o mesmo artigo demonstra que

O Plano Agrícola e Agropecuário da safra 2006/2007 destinará R$ 50 milhões para o latifúndio de nova imagem, o agronegócio. Segundo este plano, cada produtor de soja poderá ter um crédito de até R$ 300 mil. O mesmo plano faz um balanço das atividades governamentais de estímulo ao agronegócio. Na safra 2005/ 2006, além dos R$35 bilhões iniciais, este tipo de latifúndio recebeu uma 'alocação adicional para sustentar o preço da soja ao produtor' de R$1 bilhão.

Tal Política Agrícola não promove o desenvolvimento econômico do país. Pelo contrário, promove o aumento da dependência econômica pela perpetuação do modelo agroexportador, e trata-se ainda de uma violação da segurança nacional em virtude de uma política agrícola fomentadora da monocultura. Produz-se uma mega-safra de alimentos para exportação, explorando o trabalhador, enquanto o povo está sem alimento e sem terra. Diante da superprodução, o governo subsidia os prejuízos da safra com recursos públicos. E, diante de uma brusca oscilação no mercado financeiro mundial, a cana, a soja, o café ou o gado virarão terra devastada e a produção para o consumo interno não será suficiente. Não se trata de previsão, mas de constatação a partir da própria lógica da crise agrária brasileira, além do que o país já viu isso na crise do café nos idos de 1929...

Portanto, os princípios do Direito Agrário vão além da legalidade estatal, de forma que não podem ser realizados nos limites dessa legalidade, sendo que a Política Agrícola de fato é pelo contrário um entrave a tais princípios.

Os princípios de Direito Agrário têm como pressuposto mudanças de ordem estrutural, de ruptura revolucionária com o modelo vigente.

MARQUES (2005, p. 22) em sua compilação de princípios diz que "a reformulação da estrutura agrária é uma necessidade constante". Vivanco (apud VARELLA, 1997, p. 263) expõe como uma das características do Direito Agrário o de que "é um verdadeiro instrumento de libertação e desenvolvimento no âmbito agrário".

Raymundo LARANJEIRA (2002, p. 27), ao discorrer sobre o "Estado da Arte do Direito Agrário no Brasil", afirma que

(...) as obras doutrinárias brasileiras, no que se refere ao Direito Agrário, não fazem por destoar, em sua grande maioria, o compromisso que seus autores, como juristas de país de 3º Mundo, hão de ter com os fundamentos da nacionalidade e com os interesses das camadas populares.

A interpretação dos princípios de Direito Agrário induz ao seu conteúdo peculiar, ficando assim legitimada a ação dos movimentos sociais de luta pela terra, como o principal impulsionador das transformações na estrutura agrária brasileira e da realização da justiça social.

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Sobre o autor
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Júlio da Silveira Moreira

Advogado. Pós-graduando na Universidade Federal de Goiás (UFG). Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (International Association of People's Lawyers (IAPL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Júlio Silveira. O Direito Agrário e o princípio democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2643, 26 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17491. Acesso em: 16 abr. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado no curso de Especialização em Direito Agrário da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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