Resumo: Municiado com os métodos dedutivo e comparativo, debruça-se o presente artigo sobre a questão envolvendo a nulidade dos atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente. Neste prumo, após breves reflexões sobre jurisdição e competência em sede de Processo Civil, passa-se à interpretação do art. 113, § 2º, do respectivo Texto Legal, o qual é analisado não de forma una e meramente gramatical, mas teleologicamente, em consonância com outros dispositivos do Código de Processo, quais sejam, os arts. 122, 485, 273, dentre outros. Em uma tomada de posicionamento (de maneira não-sectária, contudo), ver-se-á que, a despeito de pender parcela doutrinária para um entendimento acerca da nulidade de todos os atos decisórios; há aqueles, aos quais se insere este Autor, que afirmam que a nulidade não se aproveita a alguns atos, por força da função social do processo, do atendimento da finalidade precípua do ato passível de nulidade, e por questão de lógica e economia processual.
Abstract: Through deductive and comparative methods, this essay discusses the nullity of the acts of decision taken by judge absolutely incompetent. So, the article 113, §2º, CPC, will be analyzed together with other provisions of the Code of Civil Procedure. In the end, analyzing the social function of process, the logic and the procedural economy, will be given a position that not all acts should be considered null.
Palavras-Chave: Atos decisórios. Incompetência absoluta. Validade. Nulidade.
Key-Words: Acts of decision. Absolute incompetence. Validity. Nullity.
Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. Da competência; 3. Da incompetência absoluta e o dever de declará-la; 4. Da questão acerca da nulidade; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
Summary: Initial considerations; 2. About the competence; 3. About the absolutely incompetence; 4. About the nullity; 5. Conclusion; 6. Bibliography references.
1 Considerações Iniciais
É sabido que vários são os métodos de interpretação da norma processual civil. Grande parte dos aplicadores do Direito segue uma linha meramente gramatical de observação do texto legal. Essa linha declarativa, condensada na expressão: "O legislador disse o que queria dizer", tende a ficar ultrapassada.
Isto porque, o ordenamento jurídico deve ser analisado sob visão ampla, isto é, como um grande sistema interdependente. Uma norma não existe tão somente. Ela auxilia ou é auxiliada por outras normas espalhadas na abrangência do ordenamento de um Estado aplicador do Direito. Ainda assim, estas normas somente subsistem porque fatores históricos, políticos e culturais contribuíram para isso.
Neste prumo, o texto legal do art. 113, §2º, do CPC, que diz: "Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos a juiz competente", não pode ser analisado isoladamente.
Observa-se aqui, que o legislador quis evitar um conflito interpretativo, mas acabou piorando as coisas. Ao que parece, em uma primeira impressão, o legislador quis dizer: "Todos os atos decisórios serão nulos"; então, como interligar esta forma de interpretar o artigo a outros tipos legais contraditórios a essa pseudo-interpretação?
Sendo assim, parece mais claro que, observando o art. 246, § único; o art. 449; o art. 273; o art. 122 e o art. 485, todos do CPC, dentre outros, não parece ser a mais "apropriada" a redação conferida ao dispositivo processual mencionado alhures. A justificativa para tal asserção começa a ser desenvolvida no capítulo seguinte.
2 Da Competência
A palavra "competência" vem de "competentia", que deriva do verbo "competere" [01], que significa "proporção", "[...] simetria de concorrer com outro, buscar ao mesmo tempo; dar no mesmo ponto". (BERMUDEZ, 1995, p. 56). Assim, a competência "[...] é o resultado da divisão do trabalho jurisdicional". (CARVALHO, 1995, p. 01).
Nas palavras de FIDÉLIS DOS SANTOS (1996, p. 125):
Havendo pluralidade de órgãos jurisdicionais, a lei limita a atividade de cada um. Esta limitação se chama "competência", que é a medida exata de jurisdição do órgão judicante, ou seja, a fração que lhe compete, no amplo exercício da função estatal de aplicação da justiça.
Prosseguindo, a competência pode ser absoluta ou relativa. Aquela em razão da matéria ou hierarquia é chamada "absoluta". Se for em razão do valor ou território, será "relativa" [02] (art. 111, CPC). Fala-se em incompetência absoluta "[...] àquela que não puder ser alterada ou prorrogada por vontade das partes ou outro expediente qualquer" (SOUZA, 1998, p. 272); e em incompetência relativa "[...] àquela que se refere ao foro e não ao juízo e fica sujeita à preclusão". (SOUZA, 1998, p. 272).
Desta forma, pelo conteúdo literal do art. 113, §2°, CPC, são nulos "todos" os atos decisórios atinentes à matéria ou hierarquia, de modo que, consequencialmente, isso importará "na remessa dos autos a juiz competente".
3 Da Incompetência Absoluta e o Dever de Declará-la
A incompetência absoluta é pressuposto de validade da relação jurídica processual e deve ser alegada de ofício pelo juiz, podendo sê-lo em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 113, CPC).
Para PIZZOL, a incompetência absoluta "[...] deve ser declarada pelo juiz, arguida ou não". (2003, p. 393). Para LAMARCA,"[...] o próprio juiz há de ser o juiz de sua competência e proclamá-la de ofício". (1979, p. 72).
Ademais, aqui se deve lembrar do "Princípio da Competência sobre a Competência", em que ensina MARQUES (1997, p. 322-323):
O Princípio que domina os incidentes sobre competência é o de que todo órgão judiciário é juiz da própria competência (a chamada "Kompetenz-Kompetenz" dos alemães).
Para SOUZA, "[...] o atendimento desse dever é ato de acordo com a lei" (2005, p. 84) e; se é dever, o ato decisório do juiz incompetente que declara a própria incompetência não é nulo e logo, a afirmação de que "todos os atos decisórios são nulos" já começa a sucumbir.
4 Da Questão Acerca da Nulidade
É posição majoritária da Doutrina processualista brasileira que atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos.
Neste diapasão, PIZZOL discorre que "[...] se reconhecida a incompetência, os atos decisórios serão considerados nulos". (2003, p. 394). Para THEODORO JÚNIOR, "[...] sendo reconhecida a incompetência absoluta, o processo é atingido por nulidade, mas esta somente se restringe aos atos decisórios". (2005, p. 173).
Na verdade, é certo que nem todos os atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são nulos. Vejamos:
O art. 122 do CPC diz que: "Ao decidir o conflito, o tribunal declarará qual o juiz competente, pronunciando-se também sobre a validade dos atos do juiz incompetente". Ora, isto significa que o Tribunal vai apreciar os atos já praticados, e pode muito bem convalidar um ato decisório, até mesmo porque não há um rol elencando especificamente quais atos especificamente serão declarados nulos. Nada obstante, para "legitimar" o art. 113, §2º, chegou-se a afirmar que este apresenta dissonância com o art. 122. Não é este o entendimento de quem vos escreve este artigo, todavia. Com efeito, alguns atos decisórios poderão ser nulos conforme o art. 113, § 2º, e outros absolutamente eficazes, segundo o art. 122 do CPC. Na verdade, os dois dispositivos são complementares e não conflitantes, fazendo uma simples análise. Ora, em decidindo um conflito de competência, nada obsta que o Tribunal convalide ato decisório no âmbito de incompetência absoluta, até porque o parágrafo segundo do art. 113 pode até não permitir de forma velada, mas também não veda tal prática.
Também, um artigo que merece especial atenção é o 273 do CPC, que trata da tutela antecipada. A tutela antecipada, muito embora já existisse em casos específicos, como nas ações de alimentos, procedimentos especiais e mandado de segurança, apareceu como figura expressa somente na reforma processual de 1994, pela Lei nº 8.952 e, como se sabe, visa assegurar direito iminente, mas que não pode ser concedido definitivamente devido aos passos que o processo deve seguir. A tutela antecipada existe para que prejuízos não ocorram em razão da morosidade do Judiciário, e veio para impedir que medidas cautelares autônomas fossem utilizadas indevidamente em seu lugar.
A tutela antecipada é tutela de emergência. O ato decisório de concessão de tutela antecipada tomado por juiz absolutamente incompetente não deve ser nulo, pois, em primeiro lugar; se nem mesmo a sentença que ao final soluciona a lide, quando proferida por juiz incompetente, é nula, mas apenas rescindível (ação rescisória, art. 485, II, do CPC), logo, a decisão do juiz competente que antecipa a tutela é também apenas revogável e; em segundo lugar, antes de analisar a validade de um ato decisório de juiz incompetente, deve-se observar a urgência do caso e a consequência positiva para a parte que necessita da concessão desta tutela. Há autores que dizem que a concessão da tutela antecipada, em contrapartida à urgência daquele que pede, causa real prejuízo à parte obrigada a seguir a decisão que concede esta tutela. Parece coerente que se respeite o Princípio da Proporcionalidade ou Preponderância daquilo que "está em jogo". Toma-se, a título ilustrativo, o caso do paciente que paga o plano de saúde e, quando dele precisa, ouve da empresa médica que o plano não cobre aquele tipo de tratamento. O enfermo não pode esperar que o conflito se arraste na Justiça, até porque, quando da sentença final, ele já estaria morto. Seguindo-se uma relação de preponderância da vida sobre o aspecto financeiro, aliada à questão de urgência, parece ilógico que o ato decisório de juiz absolutamente incompetente que conceda tutela antecipada seja nulo, até porque o direito em jogo é iminente. Do contrário, se estaria diante da absurda aberração em admitir que uma falha técnica, como o é a concessão de tutela antecipada por juiz absolutamente incompetente, fosse suficiente a permitir a desconstituição do ato e o consequente estado de risco daquele que buscou o provimento antecipatório.
Dando continuidade às argumentações, outra situação possível de convalidação ocorre nos casos em que faltar pressuposto de validade necessário para o desenvolvimento e continuidade do processo. Aqui, o ato do juiz incompetente não deve ser considerado nulo. O art. 246, § único, do CPC, que diz: "Se o processo tiver corrido sem conhecimento do Ministério Público (nos feitos em que deva intervir), o juiz o anulará a partir do momento em que o órgão devia ter sido intimado"; e o art. 267 do CPC, que trata das hipóteses de extinção do processo sem resolução de mérito por indeferimento da petição inicial, litispendência, perempção ou coisa julgada, negligência das partes e ausência de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo; tratam especificamente da condição de validade e procedibilidade do processo. Logo, se o juiz absolutamente incompetente der causa à extinção do processo por estes motivos, deve haver convalidação destes atos decisórios, vez que, seja um juiz competente ou incompetente, isso é função inerente ao seu ofício. Qual a necessidade, então, de repetir um ato por mero formalismo? Não há razão em permitir que a mesma ausência de pressuposto seja reapreciada, desta vez por juiz "competente", para que este decida, então, exatamente como seu antecessor.
Ademais, o art. 132, § único, do Diploma Adjetivo, prescreve que: "Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas". Observa-se, em primeiro lugar, que o legislador valeu-se da impressão "qualquer hipótese". Assim, se uma captação de provas for feita por juiz absolutamente incompetente, estas não devem ser nulas, bastando que ele remeta os autos a juiz competente e este determine a repetição apenas das provas estritamente necessárias, meramente por certificação. Aqui, quanto à captação de provas há outra consideração a fazer: suponha-se que juiz incompetente, em processo cautelar, determine a realização da perícia de um acidente. Esta perícia é crucial para a solução da lide. Ela não pode ser nula pois, caso contrário, implicará em ausência probatória quando os autos estiverem em mãos de juiz competente.
O mesmo vale para o juiz incompetente que ouve determinada testemunha. Se esta testemunha morre antes que os autos sejam enviados para juiz competente, não há como anular o ato do juiz incompetente, afinal a testemunha já faleceu, e a prova não pode deixar de ser utilizada apenas por questão de tecnicismo processual.
Por sua vez, o art. 449 do CPC diz que: "O termo de conciliação assinado pelas partes e homologado pelo juiz terá valor de sentença". Aqui, a justificativa para defender-se a convalidação de atos decisórios de juiz absolutamente incompetente remete aos Princípios Gerais de Processo Civil. O Estado estimula a conciliação. Isto pode ser percebido pelas audiências dos arts. 125, IV e 331, bem como pelo art. 448, CPC. Isto posto, se o principal objetivo da relação jurídica processual é solucionar a lide, parece coerente que se as partes chegam a acordo e o juiz homologa-o, o fato da homologação ter se dado por juiz absolutamente incompetente não deve invalidá-lo, até mesmo porque é questão de agilidade no andamento do Judiciário. Esta homologação com força de sentença não deve ser considerada nula.
Outro caso é o art. 485, II, do CPC, o qual, segundo doutrinadores que defendem a não-nulidade de todos os atos do juiz incompetente, é um forte tipo legal para defender essa ideia. Ele trata da Ação Rescisória e diz: "A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente". Por sua vez, o art. 495, CPC, estipula prazo decadencial de dois anos para promoção da rescisória, qualquer que seja a hipótese prevista no rol "numerus clausus" do art. 485. Sendo assim, entende-se que, se a incompetência absoluta convalida com a coisa julgada, com maior razão ganha status de "imutável" ao fluir o prazo de dois anos previsto no art. 495, vez que nem mais a Ação Rescisória poderá alterar esta condição.
Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover afirma que "[...] no processo civil, a coisa julgada sana o vício decorrente da incompetência absoluta, mas, dentro do prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado, pode a sentença ser anulada por ação rescisória". (1991, p. 215). Interpretando esta assertiva em sentido inverso, tem-se que, caso não haja a rescisória, ou seja ela intentada intempestivamente, convalidar-se-á o pronunciamento derradeiro proferido por juiz absolutamente incompetente. Significa, por consequência, que mesmo o parágrafo segundo, do art. 113, não terá mais força de desconstituir essa "verdade". Conclui-se, portanto, ser esta mais uma prova de que alguns atos decisórios convalidam quando praticados por juiz incompetente.
De forma derradeira, como último argumento a ser utilizado neste tópico, vale a pena repetir o que já foi citado no anterior: o ato decisório do juiz incompetente que atesta a própria incompetência e remete os autos a juiz competente é válido. Logo, não há que se falar que todos os atos praticados por juiz incompetente são nulos. Esta é, sem dúvida, a maior prova de equívoco do dispositivo processual atacado.
5 Conclusão
O art. 113, §2º, do CPC não deve ser interpretado de maneira isolada. Dizer que "todos" os atos decisórios praticados por juiz incompetente são nulos é sofisma. Os artigos que foram citados ao longo deste texto não esgotam o assunto, mas são apenas alguns exemplos que visam provar que alguns atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente são passíveis de convalidação.
Ainda que se negasse todos os exemplos citados, subsistiria a decisão do juiz que determina a remessa dos autos ao juiz competente e este ato será sempre válido.
Ademais, ainda que se fale que os arts. 113, §2º e 122, ambos do CPC, sejam conflitantes, parece límpido que estes são na verdade complementares, visto que fica clarividente que o Tribunal vai deliberar sobre a validade dos atos, podendo admitir alguns atos como válidos e outros não.
Como palavra derradeira, a validade dos atos decisórios deve estar intrinsecamente ligada aos seguintes fatores: 1- À urgência em que eles ocorrem (vide Tutela Antecipada); 2 - A um Princípio de Preponderância do que é vital para o ser humano (desconsiderando, pois, o mero "tecnicismo" de anular o ato porque assim "mandou" o legislador); 3 – À manutenção da integridade do sistema processual; e 4 – A alcançar o objetivo-mor do Processo Civil, que é a pacificação social.
6 Referências Bibliográficas
BERMUDEZ, Sérgio. Introdução ao processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
CARVALHO, Milton Paulo. Manual da competência civil. São Paulo: Saraiva, 1995.
DEL ROSAL, Manuel Pildez . La Competencia Territorial en el Proceso Civil. Barcelona: Ariel, 1974.
FIDÉLIS DOS SANTOS, Ernani. Manual de direito processual civil - vol. 1. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: RT, 1991.
GUSMÃO CARNEIRO, Athos. Jurisdição e competência. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
LAMARCA, Antônio. O livro da competência. São Paulo: RT, 1979.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil - vol. 1. Campinas/SP: Bookseller, 1997.
PIZZOL, Patrícia Miranda. A competência no processo civil. São Paulo: RT, 2003.
SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de direito processual civil. 2. ed. Presidente Prudente/SP: Data Júris, 1996.
______ Dever de declaração da incompetência absoluta e o mito da nulidade de todos os atos decisórios. Revista dos Tribunais, vol. 833, 2005.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil - vol. 1. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
Notas
- Etmologicamente la voz competência procede de la latina competentia, y esta, por su vez, es um derivado Del verbo competere (DEL ROSAL, 1974. p. 37).
- Vale lembrar, a título ilustrativo, que mesmo a competência em razão do "valor" pode ser considerada absoluta, como aquela imperante nos Juizados Especiais Cíveis (40 S.M, conforme art. 3º, I, Lei nº 9.099/95, no âmbito estadual; e 60 S.M, conforme art. 3º, Lei nº 10.259/01, no âmbito federal).