Dos conflitos:
Ilimitadas são as necessidades do homem, enquanto que os bens são limitados. Desse desencontro pode ocorrer que duas ou mais pessoas tenham interesse pelo mesmo bem, que a só uma pode satisfazer. Ocorre, nesse caso, um conflito de interesses. Conflitos dessa natureza existem desde os primórdios da sociedade.
Das soluções:
Para resolvê-los, foram criadas diferentes soluções ao longo do tempo.
A primeira delas, a mais primitiva, mas infelizmente ainda não totalmente extinta, é a violência. Nessa solução, vigora o predomínio da força: o bem fica para o mais forte.
Com o passar do tempo, a força foi gradativamente sendo substituída pela razão. Passaram a ser, então, utilizadas modalidades pacíficas para solução dos conflitos.
A primeira solução pacífica é a autocomposição: seja por altruísmo, seja por abnegação, seja ainda em reconhecimento ou respeito à lei, uma das partes cede o bem disputado em benefício da outra.
A outra solução pacífica é a solução arbitral, que é a transferência, à terceira pessoa, da função de resolver o desencontro de interesses. É a solução mais comum.
Via de regra, o titular desse poder arbitral é o Estado, embora há casos em que o árbitro pode ser outra pessoa, eleita pelas partes.
O árbitro tem como função a resolução do litígio. Ele faz isso aplicando a lei, a norma reguladora da matéria, sobre o caso concreto. O instrumento para isso utilizado é o processo, por meio do qual relacionam-se as partes em conflito e o referido árbitro ou julgador.
Do processo:
O vocábulo processo palavra tem origem latina em procedere, que significa caminhar para a frente. Em nosso idioma, pode ser usado em várias acepções distintas. As duas principais são a de fabricação, que é a transformação de uma coisa em outra, e a de seqüência de atos. Interessa-nos essa última acepção: o processo, que é o meio pelo qual se relacionam partes e julgador, é, segundo a doutrina dominante, formado por seqüência de atos coordenados, que se sucedem uns aos outros e são encaminhados para um fim específico, que é a solução do litígio.
Do processo administrativo:
O poder arbitral é normalmente exercido pelo Estado, por meio do poder judiciário. Mas quando pelo menos uma das partes envolvidas no litígio for a administração pública, é normal que a própria administração ofereça uma via alternativa de resolução pacífica do conflito, circunstância em que ela mesma assume o papel de árbitro e aplica a norma abstrata ao caso concreto, de modo a resolver o litígio.
O instrumento utilizado para tal é o chamado processo administrativo, que é uma forma alternativa de resolver o conflito existente, sem que se necessite buscar a solução no Poder Judiciário. Não obstante, a qualquer momento pode o litigante no processo administrativo buscar também o judiciário, embora isso, na prática, configure desistência da via administrativa.
Costuma-se dizer que o processo é a garantia da justiça. A própria Constituição da República, em seu artigo 5º, LV, assegura o contraditório e a ampla defesa aos litigantes em processo judicial ou administrativo.
Aliás, a partir desse dispositivo da constituição de 1988, o processo administrativo ganhou importância, uma vez que, antes disso, era normalmente usado apenas como meio de convalidar os atos praticados pelos agentes públicos. Dentre outras vantagens sobre o processo judicial, o administrativo oferece gratuidade, celeridade e julgamento por especialistas na matéria.
Da fundamentação das decisões:
Seja no processo judicial, seja no processo administrativo, tanto a condução processual como a solução dada ao conflito precisam sempre estar fundamentadas no ordenamento jurídico. Tais fundamentos são extraídos de dois tipos de normas jurídicas.
O primeiro tipo, também chamado norma material ou substantiva, dá ao juiz o fundamento para que ele resolva o conflito em si. No processo administrativo fiscal em que João, em primeira instância, defende-se de lançamento tributário em que lhe é exigido imposto de renda, foi anexado pelo Auditor Fiscal alguns recibos como prova de que João recebera dinheiro como pagamento por serviços por ele prestados a Pedro. Como João não conseguiu desqualificar os recibos, nem provar o pagamento do imposto de renda correspondente, então certamente o julgador de primeira instância solucionará o conflito com base na norma jurídica material extraída dos artigos 43 a 45 do Código Tributário Nacional, segundo a qual todo aquele que auferir renda deve pagar imposto de renda à União. Nesse caso, João será condenado a entregar à União o bem disputado, que é o valor do crédito tributário constituído no referido lançamento.
O segundo tipo de norma, também chamado norma processual, ou adjetiva ou instrumental, disciplina a forma por meio da qual se deve resolver o litígio. No exemplo acima, ainda que o processo e a decisão de primeira instância ofereçam relativa certeza de que a razão esteja realmente com o fisco, João tem direito de que sua causa seja ainda julgada mais uma vez, agora em segunda instância administrativa, já que existe recurso inerente à sua defesa previsto na norma jurídica processual aplicável ao caso, extraída do artigo 33 do Decreto nº 70.232/1972, que dispõe sobre o processo administrativo tributário no âmbito da União.
Todo processo é disciplinado por uma lei processual. O processo penal é regulado pelo Decreto Lei nº 3689/1941; a Lei Estadual nº 13.457/2009 dispõe sobre o processo administrativo tributário no Estado de São Paulo; a Lei nº 8797/2009 disciplina o processo administrativo tributário no Estado de Mato Grosso. Dentre outras coisas, a lei processual costuma estabelecer o rito, quer dizer, os passos a serem seguidos do início ao fim do processo, prazos a serem cumpridos, possibilidade de recurso, etc. A principal finalidade da lei processual é garantir equidade às partes litigantes, de modo que uma não tire vantagem indevida da outra, durante o transcorrer do litígio.
Do duplo grau de jurisdição:
Há possibilidade de recurso sempre que a lei processual aplicável permite que a parte em litígio, insatisfeita com a decisão tomada por um julgador, formalize seu inconformismo junto a outro, que tenha competência para reformar a decisão anterior, como no caso do processo relativo à cobrança de imposto de renda, no exemplo acima. Em termos processuais, portanto, recurso é a formalização da insatisfação da parte quanto a decisão já proferida no processo.
A possibilidade de recurso caracteriza múltiplos graus de julgamento da mesma causa, o que se convencionou chamar de duplo grau de jurisdição, isto é, possibilidade de que um juiz ou tribunal revise a decisão de outro. Costuma-se utilizar a terminologia ad quem para o órgão para o qual se dirige o recurso, e a quo para o juiz cuja decisão se pretende reformar. Pode-se então dizer que as decisões de tribunal ou julgador ad quem prevalecem sobre aquelas de juiz ou tribunal a quo.
Há quem diga que o duplo grau de jurisdição é sempre obrigatório, em razão de um certo princípio do duplo grau de jurisdição, contido no já mencionado artigo 5º, inciso LV, da Constituição. O enunciado daquele inciso é o seguinte: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Todavia, não nos parece correto que se diga que daí se extrai o tal princípio do duplo grau de jurisdição, porque o significado do vocábulo recursos está adstrito àqueles que sejam inerentes à ampla defesa, termo que, por sua vez, refere-se à defesa exercida dentro do processo judicial ou administrativo, obviamente com obediência ao rito estabelecido pela lei processual correspondente. Logo, se houver possibilidade de recurso inerente à lei processual aplicável, há duplo grau. Se não houver recurso inerente, não há duplo grau. Não existe, portanto, um princípio universal em que se prescreva a obrigatoriedade de julgamento de litígios em dois ou mais graus. Não existe "princípio do duplo grau".
Entretanto, se a lei processual contiver previsão de recurso, então isso precisa ser necessariamente observado.
Das restrições ao duplo grau de jurisdição:
Embora haja no Código de Processo Civil, como regra geral, previsão de múltiplos graus de julgamento, como no artigo 513, por exemplo, em que se prescreve direito à apelação, lá também existem específicas normas de exceção que, em determinadas hipóteses bem delineadas, dispensam que a causa seja julgada nessa ou naquela instância, eliminando um ou outro grau de julgamento. A finalidade é nobre: dar agilidade aos processos judiciais na esfera cível e assim desafogar o Poder Judiciário. São exemplos dessas normas de exceção o que se convencionou chamar de "teoria da causa madura" e de "efeito translativo dos recursos".
Segundo a teoria da causa madura, extraída do artigo 515, § 3º, do CPC, é dispensável que a causa tenha sido julgada pelo juiz a quo desde que sejam incontroversos os fatos. Um exemplo do "efeito translativo dos recursos", que pode ser retirado do enunciado do primeiro parágrafo daquele mesmo artigo, é a permissão para que o juiz ad quem julgue questões suscitadas e discutidas processo, ainda que essas questões não tenham sido apreciadas pelo juiz a quo.
Num e noutro caso, portanto, há supressão da instância de julgamento a quo. Essa supressão afeta enormemente a defesa, uma vez que, em tese, o objetivo do recurso é justamente a refutação da fundamentação utilizada pelo julgador a quo, fundamentação essa que, inclusive, poderia ser exatamente a mesma a ser utilizada pelo juiz ad quem. Se a questão não foi julgada em primeira instância, não há fundamentação do juiz; se não há fundamentação, não há o que refutar no recurso; se a mesma questão vier a ser julgada em segunda instância, perdeu-se uma oportunidade de se refutar, por meio de recurso, as razões de decidir do juiz. Não há aqui, contudo, qualquer ofensa à garantia contida no artigo 5º, LV da Constituição Federal. Deve-se sempre observar o direito aos recursos inerentes à ampla defesa das partes litigantes. Os recursos inerentes à ampla defesa nos processos cíveis são aqueles previstos no CPC. Se o próprio CPC, de maneira objetiva, por meio de uma norma específica, dispensa um grau de julgamento previsto na norma geral, então não há recurso inerente, logo não há violação ao dispositivo constitucional. O que não se pode fazer é, sem autorização legal, impor restrições contidas em determinada lei processual, tais como essas do CPC, a processos que tramitam noutra esfera de julgamento, tal como na esfera administrativa.
Acontece que não é raro que se apliquem normas restritivas contidas no Código de Processo Civil a processos administrativos, notadamente os tributários, com o que se acaba prejudicando recursos inerentes aos tais processos, impedindo que os interessados tenham seus argumentos apreciados em mais de um grau de jurisdição.
Da norma jurídica:
O termo norma jurídica é ambíguo. Possui várias acepções distintas. Quando se fala em norma jurídica, é normal que venha a mente a lembrança de leis, de decretos, da Constituição, de artigos, incisos, parágrafos. Entretanto, esses enunciados, textos de leis, de portarias, artigos, incisos, parágrafos, são normas jurídicas em sentido largo, genérico. Não será essa a acepção de norma jurídica utilizada neste trabalho. Aqui, sempre que utilizarmos o termo norma jurídica, estaremos nos referindo ao seu sentido estrito, explicado mais abaixo, sentido estrito esse ao qual se tem dado grande relevância pela doutrina de vanguarda, capitaneada no país por Paulo de Barros Carvalho. Quando tratarmos de textos de leis, portarias, parágrafos, vamos nos referir a enunciados normativos.
Em seu sentido mais estrito, a norma jurídica é a expressão mínima a partir da qual se prescreve condutas em função da ocorrência de um evento determinado. Ao entender que determinado evento do mundo concreto deva ter como conseqüência certo efeito jurídico, a sociedade, por meio de seus representantes, insere no ordenamento determinados enunciados, de modo que deles se extraiam norma jurídica que prescreva que toda a vez em que ocorrer aquele evento importante, agora devidamente descrito na hipótese "H", deva surgir a conseqüência "C", que é o efeito desejado.
Portanto, qualquer que seja a construção semântica dos enunciados normativos a partir dos quais tenha sido construída, quaisquer que sejam as palavras utilizadas em sua redação, qualquer que seja seu campo de aplicação, a norma jurídica tem sempre a mesma estrutura: não obstante a heterogeneidade semântica dos enunciados normativos, é sempre homogênea a estrutura das normas por eles veiculadas.
Essa estrutura pode ser assim ilustrada:
se "H", então deve ser"C"
São exemplos de normas jurídicas já conhecidas:
se DANO, então deve ser REPARAÇÃO
se RENDA, então deve ser IMPOSTO DE RENDA
se CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS, então deve ser ICMS
Nas situações acima, as hipóteses dano, renda e circulação de mercadorias foram, em determinado momento, consideradas relevantes a ponto de produzirem efeitos jurídicos. Introduziram-se, então, no ordenamento jurídico, enunciados normativos veiculando normas jurídicas, de modo que aquele que provocar dano seja obrigado à reparação; aquele que auferir renda seja obrigado ao pagamento de imposto de renda e aquele que promover a circulação de mercadoria seja obrigado ao pagamento de ICMS.
Das lacunas normativas:
A lacuna existe naquela circunstância em que, embora sabidamente relevante para a sociedade, determinado evento não está contido em hipótese normativa alguma.
Não é pacífico o entendimento acerca da existência de lacunas normativas. Alguns autores clássicos garantem que não existem lacunas. Para eles, há uma espécie de norma geral "negativa" segundo a qual seria permitida toda a conduta que não fosse expressamente proibida. Para outros, o juiz julga de acordo com o direito. Assim: a lacuna, se existisse, existiria na lei, mas não no direito. Então, ao decidir o litígio, poderia perfeitamente o juiz, acaso não encontrasse a norma aplicável na lei, valer-se também de normas provenientes de analogia, princípios e costumes. De qualquer sorte, na prática, são comuns os casos em que a própria lei reconhece a possibilidade de nela haver lacunas e indica ela própria o caminho para preenchê-las.
O julgador nunca pode deixar de julgar diante de lacuna; nunca pode deixar de oferecer a solução para qualquer litígio com a alegação de inexistir norma aplicável. Essa vedação, que se encontra implícita na Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 4º, e no Código de Processo Civil, artigo 126, é como se fosse conseqüência lógica do que se convencionou chamar de "princípio da inafastabilidade da jurisdição", que na realidade nada mais é que um limite objetivo, veiculado pelo artigo 5º, inciso XXXV da Constituição. A norma ali veiculada, que proíbe que se exclua da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, seria ineficaz caso fosse permitido ao juiz omitir-se diante de lacuna normativa.
Da integração:
Diante de eventual lacuna normativa, precisa o julgador primeiro preenchê-la, para só então decidir sobre o conflito. O procedimento de preenchimento da lacuna normativa pelo juiz é chamado de integração. Na integração, o julgador lança mão de instrumento próprio para isso. O instrumento de integração serve de suplementação da norma a ser integrada, preenchendo-lhe o vazio. Às vezes, o instrumento de integração da lei já é indicado nela própria. O Código de Processo Penal, por exemplo, em seu artigo 3º, estabelece que deve ser integrado por meio da utilização dos princípios gerais do direito. Já o Código Tributário Nacional, se necessário, deve ser integrado com aplicação da analogia, dos princípios gerais do direito tributário, dos princípios gerais de direito público e da equidade, nessa mesma ordem, pois é isso o que determina seu artigo 108.
Nos casos em que a própria lei a ser integrada deixa de listar os instrumentos a serem utilizados, costumam-se utilizar aqueles indicados no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil ou artigo 126 do Código de processo Civil, nesta ordem: analogia, costumes e princípios gerais de direito.
Da analogia:
Dentre esses instrumentos de integração, o mais utilizado é a analogia. Mais raramente são usados princípios. A analogia consiste em atribuir, àquele evento não previsto em hipótese normativa da lei aplicável , a mesma conseqüência atribuída em norma derivada de outra lei que contenha hipótese de ocorrência de evento semelhante. Em outras palavras: para hipóteses normativas semelhantes, mesma conseqüência.
O uso da analogia deve obedecer a alguns critérios. Nos ramos do direito público em que a conseqüência normativa envolve direito ou garantia fundamental do particular em face do Estado, como no Direito Tributário e no Direito Penal, há necessidade de que haja tipicidade cerrada, isto é, o aplicador da norma só pode decretar a conseqüência normativa no caso de ocorrência de fato exatamente como está previsto na hipótese normativa. O Estado não pode, por exemplo, exigir tributo ou condenar alguém à prisão com base em analogia, eis que a liberdade e a propriedade são direitos fundamentais.
Das especificidades do processo tributário:
O lançamento tributário de ofício reveste-se da mais alta importância, pois é o ato administrativo que dá partida ao processo de transferência litigiosa de riqueza do particular para o Estado. Precisa ser praticado por agente detentor de competência privativa específica, com provimento mediante concurso público também específico. Tanto o lançamento, como o processo tributário dele decorrente precisam circunscrever-se aos exatos contornos das normas próprias, materiais e formais. A tipicidade precisa ser rigorosamente fechada.
Das cautelas necessárias à integração:
Por isso, antes de proceder à integração durante o processo administrativo tributário, precisa o aplicador da lei certificar-se de sua necessidade, vale dizer, certificar-se da real existência de lacuna. Se não houver lacuna, é óbvio que não há que se fazer integração alguma: não há que se utilizar analogia, muito menos falar-se em princípios.
A existência da lacuna é condição necessária para a integração, seja por meio de analogia, seja por meio de princípios.
A simples ausência, em uma lei, de determinada norma constante em outra lei, não caracteriza necessariamente uma lacuna, principalmente se essa norma for uma norma específica ou de exceção.
A norma geral tem campo de abrangência maior. A norma específica tem campo de abrangência menor. A norma de exceção ou específica está contida dentro do campo de abrangência da norma geral. A norma geral abarca todo o espectro normativo possível. Naquele espaço que fica dentro do campo maior de abrangência da norma geral, mas fora dos campos menores de suas normas específicas, não há lacunas. Não há ali vazio normativo em que caiba inserção de outra norma específica trazida de outra lei qualquer.
No CPC, por exemplo, que é a lei processual que regula os processos judiciais cíveis, há várias normas gerais. Tem-se como norma geral o duplo grau de jurisdição. Dentro do campo dessa regra geral, há várias normas especiais restritivas que autorizam a ausência de julgamento num ou noutro grau de jurisdição. Como exemplo dessas restrições já citamos a de "teoria da causa madura" e de "efeito translativo dos recursos".