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O princípio constitucional da eficiência e a implantação de sistema de custos no setor público: uma abordagem prática

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1. Introdução

A Emenda Constitucional n. 19/1988 inovou o ordenamento jurídico brasileiro, ao incluir, de maneira expressa no caput do artigo 37, a eficiência como princípio norteador da Administração Pública.

Segundo magistério de Alexandre de Moraes [01], "o princípio da eficiência é o que impõe à administração pública direta e indireta e a seus agentes a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, rimando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitarem-se desperdícios e garantir-se maior rentabilidade social". (grifo nosso)

Bem assim, a ampliação da eficiência das políticas públicas é uma das diretrizes a serem observadas nas contratações públicas das microempresas e empresas de pequeno porte, conforme artigo 1°, inciso I, do Decreto n. 6.204/07.

Com vistas ao cumprimento de tal princípio, a Lei de Responsabilidade Fiscal determina que o administrador público mantenha um sistema de custos para a avaliação e o acompanhamento da gestão orçamentária, financeira e patrimonial (artigo 50, § 3º) [02].

Muito embora o setor público, nas três esferas governamentais, possua sistemas informatizados de contabilidade, o controle é focado muito mais no desembolso financeiro e nos procedimentos formais do que no custo propriamente dito do serviço público ofertado ao cidadão.

Questões relativas ao custo total de uma aula, de um aluno, da merenda escolar, da coleta e destinação final de resíduos sólidos, do atendimento em uma unidade básica de saúde, dos serviços dos setores administrativos, entre outras, são respondidas, quando muito, de maneira precária.

Demais disso, a comprovação do atendimento aos princípios da economicidade (artigo 70, caput, da Constituição Federal) e da vantajosidade (artigo 16, caput, da Lei Federal n. 4.320/64), por ocasião de repasses públicos a entidades do terceiro setor, resta prejudicada face à ausência de indicadores confiáveis de custos.

Assim sendo, a alocação dos recursos públicos torna-se, na grande maioria das vezes, ineficiente, fazendo com que os mesmos sejam gastos em excesso ou contingenciados onde não há margem para tanto, divorciando-se, consequentemente, do interesse público presente.

Além do que a ausência de um sistema de custos, a nosso ver, é um dos fatores impeditivos para avaliação da eficiência (fazer certo a "coisa"), eficácia (fazer a "coisa" certa) e efetividade (fazer a "coisa" que precisa ser feita), relativamente aos serviços entregues pela gestão pública. Como diria Robert Henry Srour, "difícil não é fazer o que é certo, é descobrir o que é certo fazer".

Tendo em conta a problemática ora exposta, propomos a aplicação, no âmbito da Administração Pública, dos conceitos trazidos pela contabilidade de custos, com vistas a viabilizar um sistema gerencial para otimização e aperfeiçoamento da aplicação e do controle dos dinheiros públicos.


2. Contabilidade e Sistemas de Custos

2.1. Definição da Contabilidade Custos aplicada ao Setor Público

A contabilidade de custos é definida como o ramo da ciência contábil que coleta, classifica, registra e produz informações acerca dos produtos e serviços da entidade, pública ou privada, com fins de mensuração de desempenho e auxílio na tomada de decisão dos respectivos gestores. Cabe destacar que a fonte primária de dados da contabilidade de custos é a contabilidade geral, nos termos das normas e legislação inerentes à matéria.

Para tanto, a contabilidade de custos classifica os dispêndios, inclusive os públicos, em diretos e indiretos, bem assim variáveis e fixos.

Considera-se, no âmbito governamental, como custo direto aqueles gastos relacionados diretamente ao bem e/ou serviço final entregue à população e que, portanto, podem ser alocados diretamente, sem a necessidade de estabelecer-se uma metodologia de rateio. Como exemplos, citamos os seguintes gastos:

- professores numa sala de aula;

- médicos numa unidade básica de atendimento;

- guardas municipais em policiamento ostensivo numa praça;

- cestas básicas na distribuição de mantimentos para população carente;

- sementes em programas da secretaria de agricultura com vistas a incentivar o plantio do pequeno produtor;

- medicamentos para serem distribuídos em farmácia municipal.

Relativamente aos custos indiretos, são aqueles gastos não relacionados diretamente ao bem e/ou serviço final entregue à população, mas que contribuem para a viabilidade do mesmo. Desta maneira, não podem ser alocados diretamente ao custo do serviço público entregue, razão pela qual são utilizados critérios de rateio para sua correta distribuição. De maneira genérica, incluem-se aqui os serviços de suporte administrativo (as chamadas "atividade-meio"), dentre os quais citamos:

- administração contábil-financeira;

- gestão dos recursos humanos;

- licitações e compras;

- controle interno;

- coordenação política;

- assessorias;

- vigilância patrimonial;

- limpeza dos próprios públicos.

Já os custos são considerados variáveis quando aumentam de acordo com a população atendida; fixos, quando, até certo ponto, independentemente da quantidade beneficiada, não sofrem variação.

Como exemplo, citamos a quantidade de material escolar distribuído em sala de aula (custo aumenta conforme o número de alunos beneficiados, portanto, variável) e o professor que leciona na mesma (até que seja atingida a capacidade máxima de alunos na classe, o custo do magistério permanece fixo, seja para uma classe com 10 ou 50 estudantes).

2.2. Sistema de custeio baseado em atividades (ABC)

Uma vez implantada a metodologia de classificação dos gastos públicos, é necessária a adoção de um sistema de custeio que aloque todos os custos aos bens e serviços entregues à população.

Os modernos sistemas de custos partem da premissa de que não são os produtos e serviços finais que consomem recursos, mas sim os processos e as atividades desenvolvidas no bojo da organização. Os produtos e serviços consumiriam atividades e não recursos. Desta feita, por meio de direcionadores de gastos (os chamados "cost drivers"), os custos são acumulados em atividades e, posteriormente, alocados aos produtos e serviços finais. Eis o custeio baseado em atividades (ABC), desenvolvido pelos professores norte-americanos Robert Kaplan e Robin Cooper, em meados da década de 80 [03].

Demonstramos, a seguir, a estrutura conceitual básica do sistema de custeio ABC:

2.2.1. Passos para implantação do sistema de custeio baseado em atividades (ABC)

2.2.1.1. Mapeamento dos Processos e Atividades

O primeiro passo para a implantação de um sistema de custeio ABC consiste no mapeamento dos processos e atividades do ente público. Para tanto, cabe a cada secretaria, diretoria e/ou departamento integrante da Administração Pública especificar suas principais atividades.

Na implantação de sistema de custos no Banco Central do Brasil - BACEN [04], por exemplo, privilegiou-se os macroprocessos finalísticos [05], sendo que os processos de trabalho dos departamentos e as macroatividades foram relacionados de forma a terem seus custos direcionados aos macroprocessos. Como exemplo deste mapeamento, citamos o macroprocesso finalístico de regulamentação e supervisão do Sistema Financeiro Nacional – SFN, conforme segue:

Macroprocesso finalístico: regulamentação e supervisão do Sistema Financeiro Nacional.

Processos de trabalho dos departamentos: regulamentação; supervisão; reestruturação do sistema financeiro estatal.

Macroatividades: fundamentação e regulamentação (regulamentação); supervisão, processos administrativos, e regime especial (supervisão).

Outra experiência digna de nota, inclusive prévia ao advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, foi o caso do Hospital Naval de Salvador – HNSA [06], que mapeou seus processos a partir dos principais atendimentos realizados:

1. MEDICINA: cardiologia; clínica médica; pediatria; ginecologia e obstetrícia; gastroenterologia; otorrinolaringologia; oftalmologia; ortopedia; psiquiatria e cirurgia geral; e, ainda, os seguintes procedimentos: raios X, ultrassonografia geral, ECG (eletrocardiograma) e prova de esforço;

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2. ODONTOLOGIA – Especialidades: prótese; endodontia; dentística restauradora; cirurgia e odontopediatria; e,

3. PATOLOGIA CLÍNICA - Atendimento laboratorial nas especialidades: bioquímica; hematologia; uroanálise; parasitologia; imunologia; e microbiologia.

2.2.1.2. Direcionadores de Custos

Uma vez mapeados os processos e atividades organizacionais, objetos do controle de sistema de custos, devem ser definidos os direcionadores de custos, que determinarão a apropriação dos mesmos aos processos e atividades e destas para os produtos e serviços entregues pelo ente público.

Os direcionadores de custos podem ser entendidos como aquelas unidades de medida que determinam o custo das atividades ou processos de uma organização. Dito de outra maneira é o fato gerador dos custos das atividades, consumidoras dos recursos do ente.

Como exemplos, citamos:

ATIVIDADE

DIRECIONADOR DE CUSTO

Transporte escolar

Crianças transportadas

Atendimento ambulatorial

Pacientes atendidos

Assistência social

Munícipes assistidos

Manutenção do ensino

Alunos atendidos

Aperfeiçoamento do magistério

Docentes ativos

 

PROCESSO

DIRECIONADOR DE CUSTO

Administração de recursos humanos

Quantidade de servidores

Vigilância e limpeza predial

Metragem do prédio público

Administração contábil-financeira

Orçamento da secretaria

Tal conceito é a principal inovação do sistema de custeio ABC, bem assim a mais dispendiosa etapa, posto que demanda um rastreamento detalhado da dinâmica envolvida em determinado processo ou atividade. Assim, como muitas vezes não é possível conciliar-se exatidão com economia, é comum utilizar-se o mesmo direcionador de custos para diversas atividades e processos, haja vista a limitação dos recursos orçamentários.

2.2.2. Benefícios

A implantação de um sistema de custos, com foco nos resultados da gestão pública, pode trazer os seguintes benefícios [07]:

- redução de custos com melhoria da qualidade dos serviços prestados;

- combate ao desperdício e identificação das atividades que não agregam valor ao usuário dos serviços públicos;

- guia para avaliar o impacto efetivo das decisões tomadas;

- mudança da cultura organizacional, introduzindo a dimensão de accountability [08]e de value of money [09];

- subsídio ao processo orçamentário (no conceito original de orçamento-programa);

- subsídio à avaliação de planos de reestruturação e melhoria de gestão;

- parâmetro para a competição administrada entre unidades prestadoras de serviços similares.

Muito mais do que o atendimento ao ordenamento jurídico vigente, o sistema de custeio baseado em atividades é uma verdadeira ferramenta de gestão, subsidiando o administrador público no processo de tomada de decisão e orientando-o para o alcance de resultados efetivos na satisfação dos legítimos anseios da população local.

Demais disso, conhecendo-se a qualidade do gasto governamental, otimiza-se a distribuição dos recursos entre as diversas unidades orçamentárias, a partir de critérios técnicos e transparentes que respaldarão o ato administrativo (princípio da motivação).


3. Considerações Finais

As demandas da sociedade, aliada à escassez dos recursos orçamentários, têm forçado a Administração Pública a se reinventar.

Dentro desse contexto de mudança, reforçando o movimento em âmbito mundial conhecido como new public management, os gestores públicos vêm adotando, cada vez mais, práticas consagradas no setor privado, como é o caso do sistema de custeio por atividades (ABC).

Ainda incipiente em âmbito nacional, não obstante previsão no ordenamento jurídico vigente, o sistema de custos oferece valiosa ferramenta para o administrador público, relativamente ao controle e avaliação de resultados sob o prisma da eficiência, eficácia e efetividade.


4. Bibliografia

ALONSO, Marcos. Custos no Serviço Público – Revista do Setor Público: Ano 50, Número 1, Jan-Mar 1999.

ATKINSON, Anthony A. … [et. al]. Management Accounting. 3 ed. New Jersey: Prentice Hall.

MALTEZ, Emílio. "Implantação de Sistemas de Custos no Setor Público: um caso real antes da Lei de Responsabilidade Fiscal".

MORAES, Alexandre de. Reforma Administrativa: Emenda Constitucional nº 19/98. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

Equipe da Consultoria de Custos e Informações Gerenciais do Departamento de Planejamento e Orçamento, intitulado "O Sistema de Custos do Banco Central do Brasil – Um Estudo do Caso".


Notas

  1. MORAES, Alexandre de. Reforma Administrativa: Emenda Constitucional nº 19/98. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 30.
  2. O Projeto de Lei de Qualidade Fiscal aborda a questão do sistema de custos, obrigando inclusive o administrador a apresentar os custos estimados por programa de governo.
  3. Além do sistema de custeio baseado em atividades (ABC), anotamos a existência de outras metodologias (custeio direto e por absorção), baseadas, especialmente, no conceito de centros de custos para acúmulo de gastos e posterior rateio. Dadas as constantes mudanças estruturais na Administração Pública, bem assim as especificidades do ramo de negócio (serviços públicos) e público-alvo (cidadãos), entendemos de difícil aplicação as assim chamadas metodologias tradicionais de custeio.
  4. Conforme trabalho elaborado pela equipe da Consultoria de Custos e Informações Gerenciais do Departamento de Planejamento e Orçamento, intitulado "O Sistema de Custos do Banco Central do Brasil – Um Estudo do Caso".
  5. Formulação e gestão das políticas monetária e cambial; regulamentação e supervisão do sistema financeiro nacional; e administração do sistema de pagamentos brasileiro e do meio circulante.
  6. Conforme trabalho elaborado por Emílio Maltez, professor e consultor da Fundação Visconde de Cairu, intitulado "Implantação de Sistemas de Custos no Setor Público: um caso real antes da Lei de Responsabilidade Fiscal".
  7. ALONSO, Marcos. Custos no Serviço Público – Revista do Setor Público: Ano 50, Número 1, Jan-Mar 1999, p. 44.
  8. Termo em inglês, sem tradução exata para o português, que significa a obrigação de prestação de contas por parte dos responsáveis pela administração pública ou privada. Pode também ser entendido como responsabilização.
  9. Valor do dinheiro.
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Sobre o autor
Leandro Luis dos Santos Dall'Olio

Pós-graduado em Finanças pela Fundação Getúlio Vargas, atualmente Chefe Técnico da Fiscalização no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DALL'OLIO, Leandro Luis Santos. O princípio constitucional da eficiência e a implantação de sistema de custos no setor público: uma abordagem prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2663, 16 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17610. Acesso em: 16 abr. 2024.

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