4. O PAPEL DA RETÓRICA NA FORMULAÇÃO DAS TESES JURÍDICAS, ESPECIALMENTE, NA CONSTRUÇÃO DA TESE DA INSIGNIFICÂNCIA DOS DELITOS DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA
Raimundo Bezerra Falcão (2000, p.48) ensina que:
Entende-se a linguagem como sendo o uso de sinais que possibilitam a comunicação, isto é, o conjunto dos sinais intersubjetivos. Assim, abre-se a linguagem num leque de possibilidades. Possibilidades de escolha desses sinais, mas também possibilidades de combinação de tais sinais, em moldes abundantes[...]
Tecer sobre linguagem é também tecer direta ou indiretamente sobre retórica porquanto esta é imanente àquela. A arte da argumentação, como é também conhecida a retórica, é utilizada pelos órgãos judicantes desde épocas remotas.
Muitas das vezes, as decisões do Poder Judiciário não passam de um silogismo ancorado em argumentos construídos com base na retórica aristotélica. Assim, o órgão judicante cumpre seu poder/dever de fundamentar suas decisões, inserto no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988, ficando "justificadas" suas decisões perante os jurisdicionados, independente do que diga a Lei.
Nesse contexto, a retórica pode ser utilizada para os mais variados fins.
Zélio Furtado da Silva (2009, p. 15) argumenta que "não há decisões impossíveis nem irrefutáveis, o julgador não depende necessariamente da lei para deliberar, basta que apresente um fundamento, toda decisão é possível".
Para bem falar de retórica é preciso buscá-la desde a perspectiva de Aristóteles.
O professor Zélio Furtado da Silva (2009, pp. 15 e 16), a partir de estudos acerca da retórica aristotélica, relata que o filosofo grego Aristóteles definiu a retórica como sendo:
[...] a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão. Nenhuma outra arte possui essa função, porque as demais artes têm, sobre o objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e persuadir.
Na perspectiva de Silva (2009, p. 16), o pensamento aristotélico evoluiu, sendo a retórica atualmente compreendida em três sentidos: primeiro, o da própria linguagem, que são as retóricas materiais, segundo, o das técnicas de aplicação da linguagem, o que se denomina retórica prática, terceiro, o do ponto de vista do estudo da relação entre as duas retóricas sob uma perspectiva epistemológica, o que se chama retórica analítica.
Por ora, ante os objetivos colimados com este trabalho, sobressai em importância a análise da retórica do ponto de vista prático.
Na acepção aristotélica, a retórica dispõe de recursos como o entimema, os lugares-comuns e os específicos – isto é, particulares ou específicos a determinada área de conhecimento, por exemplo, ao Direito, à Filosofia, à Economia.
O entimema, ensina Silva (2009), é uma espécie de silogismo incompleto, abreviado, isto é, curto, cuja conclusão já está subentendida, sendo constituído de duas ou mais premissas. Para ele, "a opção de manter em silêncio uma das premissas constitui uma estratégia persuasiva e não um defeito"
As técnicas da argumentação inspiradas na retórica de Aristóteles fazem parte do cotidiano e é através do "saber utilizar as retóricas práticas que se pode construir soluções jurídicas capazes de transformar e fazer evoluir o pensamento jurídico", argumenta o professor Zélio (2009, p. 16).
Como exemplo disso, note-se que o manuseio das retóricas práticas foi que estabeleceu as condições necessárias para a criação da teoria da imprevisão no âmbito do Direito Civil, tese proposta numa época totalmente adversa por vigorar o vetusto princípio romano da pacta sunt servanda, mas hoje amplamente aceita nos sistemas jurídicos mais diversos. A referida teoria da imprevisão parte de lugares particulares ao Direito como princípio da boa-fé e a equidade, para defender a flexibilização dos contratos de trato sucessivo (o que não era permitido por força da cláusula pacta sunt servanda), quando modificadas as circunstâncias que viabilizariam o adimplemento do contrato.
Assim, em contrapartida ao velho princípio romano da pacta sunt servanda, (os pactos devem ser cumpridos) a teoria da imprevisão construiu a cláusula rebus sic stantibus que representa uma abreviação da expressão: Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur.
No caso da teoria da imprevisão o interprete do Direito partiu de princípios religiosos e outras premissas implícitas de ordem moral e ética, para defender que a execução dos contratos de trato sucessivo não podem gerar a ruína do devedor, devendo-se primar antes de qualquer coisa pela equidade e boa-fé (lugares particulares ao direito).
No caso da tese que defende a descriminalização do crime de apropriação indébita com arrimo no princípio da insignificância não é diferente.
De igual sorte, não existe regramento legal para a matéria. O que o aplicador do direito faz é valer-se de entimemas ou premissas incompletas que somadas passam a justificar uma certa decisão, que por sua vez não está fundada na Lei escrita.
Entre as premissas ocultas e incompletas insertas nas decisões que passam a considerar insignificante o delito de apropriação indébita previdenciária até o valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) podem se elencar dentre outras, quatro: o juiz não cuidará de coisas insignificantes (princípio da insignificância); como o crédito até esse valor não é relevante para fins fiscais, com muito maior razão não o é para efeitos criminais; a responsabilidade penal é secundária em relação à responsabilidade civil; a renúncia ao direito de fazer valer a responsabilidade civil significa renúncia da responsabilidade penal (princípio da subsidiariedade do Direito Penal).
CONCLUSÃO
Pelo esboço traçado é possível concluir que a Seguridade Social desempenha papel fundamental no tocante aos fins colimados pelo Estado Democrático de Direito.
De notar-se também que por conta dessa importância, instituiu-se o crime de apropriação indébita previdenciária no intuito de resguardar esse bem jurídico de especial relevo: a Seguridade Social.
Conclui-se ainda que, por inexistir um critério e um valor traçados previamente em Lei destinados a qualificar como insignificantes certos delitos praticados contra a Previdência Social, a tese que defende a descriminalização do delito de apropriação indébita previdenciária cujo valor seja inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) ou a R$ 10.000,00 (dez mil reais) decorre da junção de premissas incompletas tendentes a persuadir de que o crime praticado nessas condições seria atípico, sob pena de ofensa aos princípios da intervenção mínima, da insignificância e da subsidiariedade do Direito Penal.
Trata-se de uma típica argumentação retórica semelhante ao que sói acontecer à teoria da imprevisão na seara da execução dos contratos civis de trato sucessivo. Para a criação da teoria da imprevisão com a adoção da clausula rebus sic stantibus partiu-se de lugares particulares ao direito, como boa-fé e eqüidade.
Já na formulação da tese da atipicidade do delito de apropriação indébita previdenciária considerada de valor insignificante, quatro idéias principais (que desempenham a função de lugares particulares) se sobressaem, a saber: primeiro, minimis non curat praetor (das coisas pequenas não deve cuidar o juiz) que representa o principio da insignificância; segundo, a responsabilidade penal é secundária em relação à responsabilidade civil; terceiro, se determinado crédito não é relevante para fins fiscais, com muito maior razão não o é para efeitos penais; quarto, a renúncia ao direito de fazer valer a responsabilidade civil – através do art. 21 da Lei 11.033/2004 e da Portaria nº 4.910/1999 do Ministério da Previdência Social, no que toca aos débitos fiscais da União e aos débitos previdenciários, respectivamente - significa renúncia da responsabilidade penal por força do princípio da subsidiariedade do Direito Penal.
É, pois, com estas premissas, organizadas dentro de um discurso retórico, que vem se tornando cada mais forte a tese da insignificância, no âmbito da jurisprudência nacional, pertinente aos delitos de apropriação indébita previdenciária, delitos tributários, crimes de descaminho e de contrabando.
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Notas
1 Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.