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A inconstitucionalidade da Emenda à Constituição nº 29/2000, que instituiu o IPTU com alíquotas seletivas

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19/10/2010 às 07:18
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5 - A INCONSTITUCIONALIDADE DA SELETIVIDADE FISCAL DO IPTU

Toda a narrativa desenvolvida em linhas pretéritas dá suporte à constatação da patente inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, a qual, dentre outras alterações normativas, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade dos municípios instituírem a progressividade fiscal do Imposto Territorial e/ou Predial Urbano (IPTU), bem assim a possibilidade de cobrança de alíquotas seletivas de tais exações dependendo do uso e localização dos imóveis.

De plano, é fácil verificar que, como dito, os vocábulos "seletividade" e "fiscalidade" são incompatíveis, uma vez que possuem fundamentos jurídicos totalmente díspares. O primeiro, atrelado ao postulado da essencialidade ou imprescindibilidade do bem, impõe a graduação da tributação, visando, dentre outras coisas, a regulação do mercado de consumo e fomento do princípio da capacidade contributiva. O segundo, por sua vez, destina-se tão-somente a abastecer o Erário.

Portanto, percebe-se que a incompatibilidade da seletividade fiscal do IPTU acarreta sua inexorável inconstitucionalidade, uma vez ir de encontro com a sistemática jurídica constitucional, notadamente no campo principiológico, conforme dito em linhas volvidas.

Noutro flanco, podemos destacar, de igual forma, a desarmonia entre a diversidade de alíquotas instituída pela Emenda à Constituição nº 29/2000 e o princípio da capacidade contributiva, uma vez que estar o imóvel situado em determinado lugar ou ter uma destinação específica não traduz em um signo presuntivo de capacidade econômica do contribuinte, bem assim não estar alinhado à natureza real da exação em comento.

Corroborando tais assertivas, ou seja, espancando qualquer possibilidade de compatibilizar imposto de caráter real (IPTU) com o princípio da capacidade contributiva, destacamos mais uma vez o entendimento do Supremo Tribunal Federal, materializado no brilhante voto do Ministro Moreira Alves (RE nº 153.771/MG), que assim consignou, mutatis mutandis:

"EMENTA: - IPTU. Progressividade. - No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real. - Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico). - A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 é a explicitação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º. - Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o sub-item 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de 22.12.89, no município de Belo Horizonte." [14]

Tal entendimento, portanto, permanece hígido, induzindo à conclusão de que a pretensão de uma seletividade fiscal incidente sobre um imposto real conflita com o texto da Lei Maior, razão pela qual tem-se que a Emenda Constitucional nº 29/2000, na parte em que alterou o artigo 156, § 1º da Constituição Federal, é ilegal e inconstitucional.

Noutro plano, a título meramente argumentativo, em que se perfilhe uma posição mais moderada, para admitir a possibilidade de incidência da seletividade fiscal do IPTU, mesmo em se tratando de imposto real, e aqui sim mediante a imprescindível observância da capacidade econômica do contribuinte, não se afigura possível que seja levado em conta apenas um signo presuntivo desse caráter pessoal (uso ou localização do imóvel), sob pena de manifesta violação à sistemática constitucional, incluído, certamente, o princípio da isonomia.

A Emenda à Constituição nº 29/2000, que deu nova redação ao artigo 156, § 1º da Constituição da República, permitiu aos municípios a cobrança de IPTU com alíquotas seletivas em razão do uso ou localização do imóvel. Contudo, esse dispositivo legal, para atender ao organograma de regras da Constituição Federal, e não incorrer em inconstitucionalidade, deve ser interpretado em consonância com os princípios da isonomia e da capacidade contributiva.

Comece-se, então, pelo princípio da isonomia cuja abrangência, no "Estado de Direito", obriga sua observância tanto pelo aplicador como pelo criador da lei, consoante escólios pinçados da obra de Luciano Amaro, in verbis:

"Esse princípio implica, em primeiro lugar, que, diante da lei ‘x’, toda e qualquer pessoa que se enquadre na hipótese legalmente descrita ficará sujeita ao mandamento legal. Não há pessoas ‘diferentes’ que possam, sob tal pretexto, escapar do comando legal, ou ser dele excluídas. Até aí, o princípio da igualdade está dirigido ao aplicador da lei, significando que este não pode diferenciar as pessoas, para efeito de ora submetê-las, ora não, ao mandamento legal (assim como não se lhe faculta diversificá-las, para o fim de ora reconhecer-lhes, ora não, benefício outorgado pela lei). Em resumo, todos são iguais perante a lei" [15]

O princípio da igualdade ganha especial relevo no âmbito do Direito Tributário, sobretudo porque por meio dele é que, nas palavras de Ives Gandra Martins, se faz respeitar o princípio da capacidade contributiva, propiciando a justiça fiscal:

"O princípio da isonomia é maculado sempre que dois empreendimentos idênticos passam a ter incidências tributárias distintas, mas se compõe na força maior de conjunção dos dois primeiros princípios, pois nem a capacidade contributiva do mais onerado é atingida pelo encargo acrescido, por pressupor maior potencialidade de suporte, nem a redistribuição de riquezas deixa de se fazer, pela incidência menor, a justificar a procura do desenvolvimento pretendido." [16]

A Constituição da República, em seus artigos 145, § 1º, e 150, II, com o fito de oferecer os meios de garantir a efetividade dos direitos individuais do contribuinte e assim viabilizar a "justiça social", determina ao constituinte derivado e ao legislador ordinário a observância dos princípios da isonomia e da capacidade contributiva, com este último se apresentando, em matéria tributária, como um coeficiente do primeiro, de molde a contribuir para sua máxima aplicabilidade.

Como dito em linhas volvidas, o princípio da capacidade contributiva veda o tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação de equivalência. Nesse passo, este princípio funciona como desdobramento da regra isonômica, indicando como fator de discriminação a capacidade econômica de quem deve pagar o imposto. "Quem ganha mais paga mais".

A capacidade contributiva deve ser aferida em termos subjetivos, considerando a pessoa do sujeito passivo e não o fato objetivo tributário. Por outras palavras, deve buscar-se, como determina a Constituição Federal em seu artigo 145, § 1º, a aptidão concreta de alguém para suportar a carga tributária. Sem isso, restará violado o princípio da igualdade, pois discriminará indevidamente contribuintes que possam estar em idêntica situação, como no caso do IPTU, quando se leva em consideração o valor isolado de unidades imobiliárias, que para uns, pode ser o único patrimônio, mas, para outros, pode ser apenas um minúsculo componente percentual.

Admitir a capacidade econômica objetiva é aceitar a tributação às cegas, que não distinguirá aquele que tem daquele que não tem, uma vez que o valor venal do imóvel, sua destinação ou localização não exprime a verdadeira situação econômica do contribuinte. É preciso, conforme estatuído no § 1º do art. 145 da Constituição da República que a administração tributária identifique o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, para aí sim exigir o IPTU com alíquotas seletivas.

A cobrança do tributo, nos moldes autorizados pela Emenda à Constituição nº 29/2000 incorre em inconstitucionalidade, porquanto, repita-se, a seletividade com caráter fiscal somente pode ser concebida se observados os princípios constitucionais aplicáveis em matéria tributária, sobretudo os da "capacidade contributiva" e da "isonomia".

Por outras palavras, o § 1º, incisos I e II do artigo 156 da Constituição da República deve, necessariamente, receber interpretação sistemática, em observância ao disposto no artigo 145, § 1º e no artigo 150, II da Carta Política, de modo a viabilizar a constitucionalidade da exação.

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Resumidamente, podemos afirmar que a malfadada Emenda Constitucional nº 29/2000, na parte em que instituiu a possibilidade de cobrança do IPTU com alíquotas seletivas e com caráter meramente fiscal, padece do vício da inconstitucionalidade, seja pela incompatibilidade dos institutos da "seletividade" e da "fiscalidade", seja pela impropriedade de se atrelar um imposto real ao princípio da capacidade contributiva.


CONCLUSÃO

Conforme visto ao longo deste trabalho, percebe-se que a mudança legislativa atinente à instituição do IPTU com alíquotas seletivas em razão da localização ou uso do imóvel ofende uma gama de normas de cunho constitucional, colocando em xeque toda a sistemática normativa tributária.

Com efeito, urge destacar que predita alteração da Carta Política veio a atender somente aos interesses dos municípios brasileiros, os quais buscam de todas as formas, inclusive por intermédio de meios escusos, a calibração do Erário Público em detrimento da tão sofrida parcela da população que paga seus impostos.

Todavia, não pode o Poder Judiciário ser conivente com tamanha armadilha, uma vez que, no caso, foram suprimidas diversas normas e garantias constitucionais na confecção da Emenda Constitucional nº 29/2000 na parte em que este ensaio doutrinário faz sua abordagem (seletividade fiscal do IPTU), o que torna mencionado ato legislativo absolutamente colidente com os preceitos da Lex Legum, acarretando o vício da inconstitucionalidade.

Nosso atual sistema tributário necessita de uma profunda modernização para atender aos anseios da sociedade. Mas não podemos ter o pensamento limitado de que tais mudanças devem partir apenas dos poderes constituídos, mormente não raras vezes estarem contra o administrado.

Com efeito, imperioso se torna uma maior participação popular nas decisões políticas da nação, uma vez que o "poder emana do povo". Mas não é uma tarefa fácil, dada as características culturais do Brasil.

Hodiernamente, o modelo tributário brasileiro se apresenta totalmente desfavorável ao cidadão contribuinte, o qual é subjugado ao domínio estatal. Necessitamos de uma reviravolta normativa na qual o sujeito passivo da obrigação tributária deixe de ser objeto de opressão e se torne um sujeito de direitos.

Neste ponto reside a importância de se efetivarem políticas públicas em favor dos menos favorecidos, aplicando-se, antes de tudo, os preceitos da própria Constituição Federal em detrimento da voraz ânsia arrecadadora do governo. Toda mudança é traumática e traz profundas conseqüências; Todavia, são necessárias ao desenvolvimento do país na busca do ideal de justiça.

Neste contexto, a coletividade deve se mobilizar para uma eficiente implantação das garantias e direitos fundamentais. Tal tarefa não é exclusiva do Poder Judiciário, mas, igualmente, do Legislativo e Executivo.

O Princípio do Devido Processo legal é a viga mestra de todas as normas principiológicas e tem especial relevo; assim, merece observância por parte de todos os poderes constituídos. Ao Legislativo, com expressão máxima do poder popular, deve atenção ao princípio alhures citado na elaboração das normas, tudo com vistas à Constituição Federal, lei maior do país. Ao Executivo é imputado o dever de submissão à vontade popular expressada pelos seus representantes eleitos, agindo nos estritos limites do devido processo legal e imposto pela Lei. Por fim, ao Judiciário, cabe o munus de dar efetividade às normas legais, intervindo no nascedouro dos conflitos sociais.

Assim sendo, conclui-se de que o ideal de justiça, em especial a tributária, deve ser buscado por todos os membros da sociedade, administradores e administrados, os quais devem comungar esforços no sentido de dar aplicabilidade incondicional aos preceitos constitucionais para, após um devido processo legal tributário, alcançar o fim colimado pelo direito, qual seja a Justiça Fiscal.


REFERÊNCIAS

AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualização de Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

LACOMBE, Américo Masset. IPTU, Aspectos Jurídicos Relevantes, coor. Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2002.

MARTINS, Ives Gandra. Teoria da Imposição Tributária. São Paulo: Saraiva, 1983.

MELO, José Eduardo Soares de apud TILBERY, Henry. ICMS Teoria e Prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005.

OLIVEIRA, José Jayme de Macêdo. Código Tributário Nacional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário, Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009.


Notas

  1. "O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade."
  2. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 139.
  3. idem, p. 139.
  4. MELO, José Eduardo Soares de apud TILBERY, Henry. ICMS Teoria e Prática. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 277.
  5. STF, Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 515.168/MG. Ement. vol. 02210-06, pp-01061.
  6. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Atualização de Misabel Abreu Machado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 348.
  7. SABBAG, Eduardo. op. cit., p. 917 et seq.
  8. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário, Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.p. 448-449.
  9. idem, p. 450.
  10. STF, Recurso Extraordinário nº 248.892/RJ. Ement. vol. 01985-06, pp-01265.
  11. SABBAG, Eduardo. op. cit., p.p. 108-109 et seq.
  12. LACOMBE, Américo Masset. In IPTU, Aspectos Jurídicos Relevantes, coor. Marcelo Magalhães Peixoto. São Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 36.
  13. OLIVEIRA, José Jayme de Macêdo. Código Tributário Nacional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.p. 47/48.
  14. STF, Recurso Extraordinário nº 153.771/MG. Ement. vol. 01881-03, pp-00496.
  15. AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 132.
  16. MARTINS, Ives Gandra. Teoria da Imposição Tributária. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 38.
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Sobre o autor
Fabrício Cardozo de Lima

Assessor Técnico de Desembargador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fabrício Cardozo. A inconstitucionalidade da Emenda à Constituição nº 29/2000, que instituiu o IPTU com alíquotas seletivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2666, 19 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17623. Acesso em: 26 abr. 2024.

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