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Área de Livre Comércio das Américas - ALCA

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16/10/2010 às 17:59
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A Alca nunca teve sentido do ponto de vista de um país como o Brasil. Ela sempre foi, no essencial, um projeto dos Estados Unidos, concebido para atender os seus interesses estratégicos e consolidar a sua influência nas Américas.

SUMÁRIO: 1. Parte Introdutória 1.1 Características da Alca 1.2 Tipo de integração: Zona de livre comércio 1.3 Perspectivas de análise 2. Regionalismo 2.1 Perspectiva histórica 2.2 Tendências 2.2.1 Abrangência X Políticas de desenvolvimento 2.3 O mito do isolamento 2.3.1 A estratégia: o "G20", "G23", "G20 plus", e agora "GX" (Cancún) 2.3.2 Limitações do "GX": OMC X Alca 3. Evolução das Negociações da Alca 3.1 Iniciativas hemisféricas precedentes 3.2 O Processo preparatório da Alca (1994-1998) 3.2.1 Cúpula das Américas, Miami, dezembro de 1994 3.2.2 Reuniões Ministeriais realizadas entre 1994 e 1998: Denver em 1995, Cartagena em 1996, Belo Horizonte em 1997 e San José em 1998 3.2.3 Quarta Reunião Ministerial, em San José, março de 1998, e adoção de princípios problemáticos para o Brasil 3.3 Avanço das negociações 3.3.1 Segunda Cúpula das Américas, Santiago, abril de 1998 3.3.2 Quinta Reunião Ministerial, em Toronto, novembro de 1999 3.3.3 Sexta Reunião Ministerial, em Buenos Aires, abril de 2001 3.3.4 Terceira Cúpula das Américas, Cidade de Quebec, abril de 2001 3.3.5 Obtenção do fast track: julho de 2002 3.3.6 Sétima Reunião Ministerial, Quito, novembro de 2002 3.3.7 Oitava Reunião Ministerial, Miami, novembro de 2003 3.4 Estrutura e Organização das Negociações 3.5 Formato das negociações 4. Análise da Alca como acordo comercial 4.1 Fonte inspiradora: Nafta 4.2 Desequilíbrio e heterogeneidade dos países negociadores 4.3 O Brasil ganha ou perde com a Alca? 4.4 Alca "abrangente" ou "teológica" X Alca "light" 4.4.1 Abrangência relativa 5. Conclusões 6. Bibliografia


1. Introdução

A ALCA, Área de Livre Comércio das Américas [01], é um trabalho em desenvolvimento, uma obra em processo de execução. É o que em inglês se denomina work in progress [02].

A ALCA pretende ser a maior área de livre comércio existente, abrangendo 34 países do continente americano com exceção de Cuba, com um tamanho de 800 milhões de pessoas, um volume de comércio de US$ 3,4 trilhões e uma produção econômica conjunta de US$ 11 trilhões [03].

Em matéria ideológica, o debate sobre a ALCA constitui o ponto de enfrentamento entre os partidários e adversários do "neoliberalismo". Observa Rubens Ricupero que "nenhum outro tema é capaz de lançar uma ponte entre o combate contra o mundo unipolar, no plano político-estratégico, e a luta contra a globalização e o "pensamento único", no domínio econômico-social". Para os adversários da ALCA, ela implicaria, em termos práticos, a "porto-ricanização" do continente [04].

No entanto, o debate sobre a ALCA também pode partir de outro foco, como a tentativa de examiná-la de forma empírica como uma proposta comercial, desde o processo negociador, sua estrutura e organização, até a própria minuta do Acordo. Assim, afasta-se a posição apriorística ("antes da experiência"), ou seja, o julgamento que precede a negociação efetiva [05]. É a partir desta perspectiva que o presente estudo pretende se pautar.


2. Tipos de integração econômica regional

O GATT de 1994, inserido na Organização Mundial do Comércio, conta com um dispositivo que versa sobre o tema da integração regional. Trata-se do Artigo XXIV. A concepção de regionalismo econômico do GATT de 1947 permaneceu no GATT de 1994, que apenas acrescentou alguns esclarecimentos em um "Entendimento sobre a interpretação do Artigo XXIV". Esse Entendimento oficializou algumas formas de integrações econômicas regionais que, para serem lícitas deverão respeitar certas condições e não atentar contra os direitos dos terceiros. O fundamento dessa exigência explica-se pelo objetivo dos acordos de integração econômica, que deverão "facilitar o comércio" entre os participantes, abstendo-se de impor obstáculos ao comércio com terceiros países. Em outras palavras, trata-se de criar correntes comerciais (trade creating), e não de desviar correntes comerciais preexistentes (trade diverting). Dividem-se, então, as integrações econômicas em "boas" e "más", somente aquelas sendo válidas. Todas as condições impostas pelo GATT à licitude das integrações econômicas regionais estão fundadas nessa distinção, devendo assegurar que apenas as "boas" perdurem [06].

Por outro lado, o GATT de 1994 baseia-se na cláusula da nação mais favorecida, ou na idéia de que se deve estender os benefícios que se concedem a um país a todos os demais países, o que é feito no contexto das rodadas de negociações multilaterais. O Artigo XXIV estabelece as situações de exceção da aplicação do princípio consagrado no Artigo I do Acordo sobre o tratamento de nação mais favorecida, levando em conta a conveniência de aumentar a liberdade do comércio, desenvolvendo, mediante acordos livremente celebrados, uma integração maior das economias dos países que participam desses acordos. O referido Artigo XXIV foi inserido no GATT visando à convivência entre as áreas de livre comércio e as uniões aduaneiras com o sistema multilateral de comércio.

O GATT oficializa certos tipos de acordos econômicos regionais. Assim, não se interessa pelos acordos de cooperação econômica que visam simplesmente uma melhor coordenação das políticas seguidas pelos países membros, como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). O regionalismo econômico que interessa ao GATT é aquele que exige o desmantelamento de obstáculos ao comércio ou a instituição de políticas comuns aos membros. Nesse sentido, a exceção à cláusula de nação mais favorecida prevista no artigo XXIV aplica-se a dois tipos de acordos: "zonas de livre comércio" e "uniões aduaneiras". Embora não haja especificação, nada impede a formação de formas mais elevadas de integração econômica, como os "mercados comuns" ou as "uniões econômicas e monetárias".

Faz-se mister distinguir entre zona de livre comércio e união aduaneira. Ambas objetivam facilitar ou aumentar o comércio dos países participantes. O artigo XXIV do GATT de 1994 traz a seguinte previsão: "Entende-se por zona de livre comércio um grupo de dois ou mais territórios aduaneiros que decidem eliminar entre si os direitos aduaneiros e as outras regulamentações comerciais restritivas, em relação ao essencial do intercâmbio comercial dos produtos originários dos territórios constitutivos da referida zona de livre comércio". Assim, para que um acordo de preferências comerciais seja considerado como uma zona de livre comércio, deverá incluir a maior parte do comércio entre os Estados que dela participam, mantendo cada um a liberdade para realizar acordos com terceiros países.

Essa definição deixa lacunas, como a ausência de precisão acerca do que se deve entender por "essencial do intercâmbio comercial [07]". A tendência tem sido a de interpretar o termo "essencial" como constituindo pelo menos 85% do intercâmbio comercial. No entanto, há que se salientar que, em alguns casos, a exclusão de 1% do comércio basta para que o "essencial" do protecionismo seja mantido, uma vez que este opera, em geral, seletivamente, e não generalizadamente. Assim, os 15% deixados de fora podem constituir um rombo de enormes proporções [08].

Nas palavras de Samuel Pinheiro Guimarães, "uma zona de livre comércio simples é um acordo internacional em que os Estados eliminam, em um determinado prazo e de acordo com o cronograma negociado entre si, todos os obstáculos tarifários e não-tarifários ao comércio recíproco de todos os bens, enquanto mantêm em relação aos demais Estados, que não fazem parte do acordo, as suas respectivas tarifas aduaneiras nacionais [09]".

Além disto, este autor observa que seria correto entender no conceito de zona de livre comércio a inclusão dos produtos agrícolas e que, dessa forma, o disposto no Acordo de Agricultura da OMC deveria ser respeitado, principalmente devido à importância do comércio de bens agrícolas para determinados países. Em seu entender, "limitar uma área de livre comércio a bens industriais em casos de fortíssima assimetria na composição da pauta de exportação dos diversos participantes, como ocorre nas Américas, seria profundamente desigual e desfavorável aos países que dependem principalmente ou de forma importante das suas exportações de bens agrícolas [10]".

Por sua vez, a união aduaneira ocorre sempre que um só território aduaneiro substitui dois ou mais territórios, unificando-os e estabelecendo um mesmo regime aduaneiro para todo o conjunto. Neste caso, além da liberalização do essencial do comércio entre os países participantes, institui-se uma "tarifa externa comum". A união aduaneira consiste em projeto mais ambicioso que a zona de livre comércio, motivo pelo qual vislumbra também a integração política. Possui uma personalidade aduaneira única, ao contrário da zona de livre comércio, em que os países mantêm suas competências comerciais externas. Conseqüentemente, nesse último caso a liberalização do comércio incidirá tão somente sobre os produtos originários da zona, que serão determinados por meio de regras de origem baseadas no grau de transformação dos produtos. Em razão de sua proteção tarifária externa comum, os membros de uma união aduaneira deverão conferir o benefício da livre circulação a todos os produtos, seja qual for sua origem, local ou não.

No entanto, uniões aduaneiras e zonas de livre comércio partilham de um objetivo comum fundamental, que consiste na eliminação das barreiras tarifárias e não tarifárias que incidem sobre o "essencial" de seu intercâmbio comercial. O parágrafo 4 do Artigo XXIV estabelece que podem ser formadas uniões aduaneiras e zonas de livre comércio desde que, no todo, os direitos aduaneiros não sejam mais elevados, nem os outros regulamentos comerciais sejam mais restritivos do que os aplicados pelos membros antes da formação da união aduaneira ou da zona de livre comércio. Em outras palavras, o propósito das uniões aduaneiras e das zonas de livre comércio deve ser o de facilitar o comércio entre seus partícipes, e não construir barreiras comerciais em relação aos demais países. Por sua vez, o parágrafo 8 do mesmo dispositivo dispõe que para serem consideradas como tais, as uniões aduaneiras ou áreas de livre comércio deverão implicar eliminação substantiva dos direitos aduaneiros e dos outros regulamentos comerciais para a parcela mais significativa do comércio entre os países membros.

Os países em desenvolvimento desfrutam de regras mais flexíveis para os acordos de integração regional celebrados entre si, em virtude da Cláusula de Habilitação. Trata-se de uma cláusula adotada pelo GATT em 1969, que confere aos países em desenvolvimento o direito de manter acordos que não se conformam totalmente às exigências do artigo XXIV, como por exemplo, o direito a prazos mais longos para abolir as restrições comerciais.

O Artigo XXIV, como boa parte das normas do direito internacional, não é norma rigidamente tipificadora de condutas, como são as normas do direito penal, mas sim constituem padrão jurídico a ser seguido. Visa avaliar, em circunstâncias de especificidade variada, se os membros estão se conduzindo, no âmbito de um acordo regional determinado, segundo critérios multilateralmente controlados.

No que diz respeito ao processo de integração regional atualmente em negociação no continente americano, vale observar que a ALCA terá de ser compatível com as regras previstas pelo GATT de 1947, pelo GATT de 1994, pelo Acordo de Agricultura e pelo GATS (Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços). Os Estados Unidos desejam que a ALCA, a exemplo do NAFTA, inclua normas sobre acesso a mercados, compras governamentais, investimentos e capital, serviços, propriedade intelectual (o que inclui patentes), meio-ambiente, trabalho, entre outros. Assim, o eventual acordo da ALCA terá de ser compatível com as normas da OMC sobre estes temas. Essas normas se encontram consagradas em acordos, a maioria dos quais o Brasil faz parte, tais como o TRIMS (Acordo sobre Medidas de Investimentos Relacionadas ao Comércio) e o TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), e em normas sobre anti-dumping e subsídios. Tal não ocorre com o acordo de compras governamentais, tema sobre o qual o Mercosul vem legislando, prevendo inclusive uma preferência interna. Já os assuntos relacionados ao meio-ambiente (cláusula ambiental) e trabalho (cláusula social) que os Estados Unidos desejam fazer incluir na Alca não foram regulados até o momento no âmbito da OMC.

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Resta observar que a instituição de acordos de integração regional vai de encontro ao princípio cardinal do comércio internacional, o princípio da nação mais favorecida, por serem aqueles acordos por essência discriminatórios. O Artigo XXIV traz uma exceção restrita aos dispositivos da Parte I do GATT, ou seja, os Artigos I e II. Por conseguinte, todos os demais dispositivos permanecem sendo aplicáveis aos participantes de tais acordos. Diante da proliferação das integrações econômicas regionais vemos que a exceção virou regra, e que o comércio internacional regido pela cláusula de nação mais favorecida é hoje minoritário e não representa mais que um terço do comércio mundial. Nos dias atuais, quase todos os membros da OMC notificaram a participação em pelo menos um acordo de integração regional, enquanto alguns Estados notificaram a participação em mais de 20 acordos. De 1948 a 1994, o GATT recebeu 124 notificações do tipo, relativas ao comércio de bens. Desde a criação da OMC, em 1995, mais de 130 acordos abrangendo o comércio de bens ou de serviços foram notificados. Hoje, existem 170 acordos em vigor, embora se estime que 70 acordos estejam operantes, embora não tenham sido notificados. Por outro lado, estima-se ainda que no final de 2005, se os acordos de livre comércio planejados ou em negociação forem concluídos, o número total de acordos do gênero será de aproximadamente 300 [11].


3. Considerações sobre o regionalismo

No período que compreende o século XV ao século XVIII, os países ocidentais praticavam o mercantilismo, em que o objetivo era exportar o máximo e importar o mínimo, visando acumular saldos para a aquisição de metais preciosos, ouro e prata. A idéia era de que a riqueza de um país era medida pelo volume daqueles metais.

A revolução industrial levou à Grã-Bretanha a adotar o livre comércio, embasada teoricamente pelas doutrinas de Adam Smith e David Ricardo que pregavam a importância da tese das vantagens comparativas para o alcance do bem-estar generalizado, desde que todos os países abolissem as barreiras e adotassem a liberdade comercial. Inicialmente, os países ocidentais, incluindo os recém-independentes Estados Unidos, atrasados com relação à Inglaterra, tomaram a teoria com certo ceticismo, apenas mudando de orientação progressivamente. No início do século XIX, cada Estado empenhava esforços para obter a outorga da cláusula da nação mais favorecida, até que a cláusula passou de bilateral a multilateral, hoje institucionalizada na Organização Mundial de Comércio.

O ideal de abolição completa e definitiva de todas as barreiras comerciais, com o intuito de integrar todos os países num mercado sem discriminações não é exeqüível a curto prazo. Por conseguinte, admite-se a existência de prazos especiais, que permite a certos países a concessão de um tratamento mais favorável, sem que o mesmo seja estendido aos demais, enquanto exceção à regra geral. Essa exceção, todavia, só se justificará se tiver o intuito de avançar na busca da liberdade comercial mais do que os outros.

Os Estados Unidos foram, durante muito tempo, hostis aos acordos de livre comércio e de união aduaneira, por serem discriminatórios e por dificultarem a construção de um sistema multilateral mais livre. Foi apenas em decorrência de motivos políticos, relacionados à necessidade de conter o expansionismo soviético durante a Guerra Fria, que aquele país aceitou o Tratado de Roma de 1957, constitutivo do Mercado Comum Europeu, então com seis membros (Alemanha Ocidental, França, Itália, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo) [12]. Somente em 1985 os Estados Unidos assinaram um acordo bilateral de livre-comércio com Israel. Ao longo da Rodada Uruguai, lançada em 1986 com conclusão prevista para 1990, os Estados Unidos afastaram-se gradualmente da defesa intransigente do multilateralismo, ao perceberem que em muitas áreas os progressos seriam mais rápidos com menor número de participantes, com maior afinidade e comunidade de interesse. O passo seguinte foi a conclusão de um acordo de livre comércio com o Canadá, vigente desde 1988 e, em seguida, a negociação do Nafta com o Canadá e o México, em vigor desde 1994, prosseguindo com a celebração de outros acordos bilaterais, e finalmente culminando com o lançamento de uma Área de Livre Comércio das Américas, em dezembro de 1994.

O fator que mais contribuiu para o regionalismo foi o sucesso do Mercado Comum Europeu, hoje União Européia, que inicialmente contava com seis membros, e que desde 1º de maio de 2004 passou a somar vinte e cinco integrantes. A UE mantém acordos de livre-comércio com nações do Mediterrâneo, do norte da África, do Oriente Médio. Mais de 70 nações da África, do Caribe e do Pacífico (as "ACP"), na maioria ex-colônias européias, pertencem ao acordo de comércio e cooperação firmado em Cotonou com a UE.

Examinando-se os dados da OMC, conclui-se que a tendência para celebrar acordos regionais mais que triplicou nos últimos dez anos.

Os Estados Unidos assinaram acordos com Israel, Canadá, o NAFTA, a Jordânia, o Chile, propuseram a ALCA iniciaram negociações com Cingapura, Austrália, os países-membros do acordo da África meridional e as nações da América Central [13].

Há uma tese que acredita na provável emergência de três grandes blocos comerciais no mundo. O primeiro, em torno da UE, o segundo formado pelas economias asiáticas, e um terceiro pan-americano, integrando todo o hemisfério ocidental, usando o dólar como moeda, e que se constituiria a partir da ALCA [14]. Por motivos geopolíticos, o destino do Brasil seria o terceiro bloco, comandado pelos Estados Unidos, e a participação na ALCA, o primeiro grande passo nessa direção.

Os partidários dessa tese, que se consideram realistas, vêem a ALCA como algo inevitável, e crêem que a hegemonia norte-americana acabará por alinhar todos os países do hemisfério numa zona de livre comércio, sendo que nenhum país poderia dela ficar de fora, pois acabaria isolado e discriminado tanto no mercado dos Estados Unidos quanto nos mercados dos demais participantes [15]. Paulo Nogueira Batista Jr. observa que "em países como o Brasil, propostas duvidosas, às vezes claramente nocivas, mas que atendem aos interesses de forças hegemônicas no plano internacional, logo adquirem o status de "inevitáveis" ou "inexoráveis"" [16].


4. Tendências atuais dos acordos de integração econômica regional

Além da proliferação de acordos regionais ou bilaterais de livre-comércio, há duas inovações. A primeira diz respeito ao rápido aumento do número de acordos que reúnem países desenvolvidos e países em desenvolvimento, já que até a década de 1980, a maioria dos acordos envolvia nações homogêneas (Mercado Comum Europeu, ALALC, ALADI, MERCOSUL) [17].

Quando o então Mercado Comum Europeu decidiu incorporar países mais atrasados, como a Espanha, a Irlanda, a Grécia e Portugal, houve significativa ajuda financeira às regiões mais pobres, generalizando-se as transferências que já existiam para zonas como o sul da Itália. No momento das negociações do NAFTA, o México invocou aquele exemplo, mas os Estados Unidos se recusaram a fornecer qualquer modalidade de ajuda, inclusive a criação de um banco ou fundo para financiar obras de infra-estrutura, no modelo do BID, insistindo que o acordo deveria ater-se exclusivamente aos aspectos comerciais e que os eventuais benefícios teriam de derivar do comércio, não da ajuda [18].

Nesses aspectos, a ALCA seguiria o modelo do NAFTA. Presume-se que uma eventual unificação monetária do continente se daria, caso a caso, por adesão unilateral dos demais países ao dólar dos Estados Unidos, como ocorreu com o Equador em 2000 e com El Salvador em 2001 [19].

A segunda inovação diz respeito à abrangência dos novos acordos de livre comércio. Contradizendo o exclusivismo comercial, a proposta da ALCA estende-se muito além do comércio, abrangendo diversos setores, como serviços, investimentos e outros temas, até pouco tempo atrás pertencentes à soberania de cada Estado. O NAFTA, por exemplo, é uma área de livre comércio que abrange os investimentos internacionais e os serviços. Seus dispositivos relativos a investimentos já influenciaram outros acordos, e a UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento) já explicitou que a inclusão de questões relativas ao investimento nas áreas de livre comércio pode ser considerada como uma tendência atual [20]. A Minuta de Acordo da ALCA [21] propõe um Capítulo XVII sobre Investimentos.

Observa Rubens Ricupero que "progressivamente, estreita-se a margem da liberdade dos governos na escolha de políticas de desenvolvimento, proibindo-lhes o recurso a soluções largamente utilizadas pelos ricos quando se encontravam em estágio mais atrasado e aplicadas até poucos anos atrás (com êxito) por nações como o Japão e a Coréia do Sul. Nesse sentido, acordos verdadeiramente restritos aos aspectos comerciais são, em geral, apenas os concluídos entre os países em desenvolvimento. O MERCOSUL, apesar de toda a sua ambição, quase nem alcança a área de serviços, que é usualmente a primeira a ser incorporada quando se expandem as fronteiras do sistema comercial. A proposta da ALCA contém tanto ou mais sobre áreas apenas indiretamente vinculadas ao comércio do que sobre o intercâmbio comercial propriamente dito [22]".

No entender de Paulo Nogueira Batista Jr, carecem de fundamento as suposições de que estaria em curso uma tendência à formação de três grandes blocos econômicos regionais e que ao Brasil caberia escolher entre a marginalização [23] e a adesão a um bloco pan-americano, comandado pelos Estados Unidos, uma vez que não há movimento no sentido de constituir um bloco asiático. Por outro lado, duvida que um bloco pan-americano possa se formar com a exclusão do Brasil, país que responde por 42% da população e 50% do PIB da ALCA excluindo o NAFTA [24].

O autor acrescenta que esse argumento explora uma vulnerabilidade característica da psicologia brasileira, o pânico de ficar isolado. No entanto, o Brasil não tem qualquer obrigação internacional de participar de zonas de livre comércio com os Estados Unidos ou a União Européia. Segundo seu entendimento, perde-se de vista que, entre os extremos da subordinação e do isolamento, há outras possibilidades a explorar, como a ampliação das exportações brasileiras para esses e outros mercados, já que a expansão do comércio internacional não pressupõe o livre comércio. Nesse sentido, observa que as três maiores potências do planeta, Estados Unidos, União Européia e Japão, embora mantenham intenso relacionamento comercial, nunca tiveram e nem pretendem ter acordos de livre comércio entre si. Por fim, argumenta que os países que poderiam concorrer mais com o Brasil - Canadá e México - já fazem parte do NAFTA e que, portanto, a criação da ALCA não modificaria sua posição competitiva. Acrescenta que os países do continente têm, em geral, economias bem menores, menos desenvolvidas e menos diversificadas do que a brasileira [25].

No que diz respeito ao receio de que uma ALCA sem o Brasil nos levaria à perda de mercados sul-americanos para exportações norte-americanas, o autor argumenta que o governo brasileiro sempre teria a opção de negociar acordos de livre comércio com países vizinhos, sem ter que assinar um acordo desse tipo com os Estados Unidos. Isso porquê para os países sul-americanos, a economia brasileira constitui mercado muito importante, às vezes mais importante do que o norte-americano, sendo que nenhum desses países teria interesse em se isolar do Brasil [26].

Por outro lado, a formação, em outubro de 2003, de um grupo que defende a chamada "ALCA Light" desafia o argumento do suposto isolamento do Brasil. Esse grupo contou com o apoio dos países da Comunidade Caribenha (CARICOM), que são em número de 15, da Venezuela e de dois dos três sócios brasileiros no MERCOSUL (Argentina e Paraguai). Trata-se de 19 países de um total de 34, constituindo a maioria. No que diz respeito aos rumores acerca de divergências no MERCOSUL, em virtude de um documento uruguaio a favor de uma ALCA abrangente, é necessário ter o cuidado de lê-lo. O texto uruguaio cobra já no preâmbulo a eliminação dos subsídios à exportação de produtos agrícolas, enquanto os Estados Unidos preferem discutir agricultura na OMC. Também foi o Presidente uruguaio, Jorge Battle, o primeiro a propor o formato "4+1" para as negociações do MERCOSUL com aquele país. O 4+1 forma um dos três trilhos da proposta do Brasil-MERCOSUL para a ALCA.

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Sobre a autora
Larissa Ramina

Doutora em Direito Internacional pela USP, Coordenadora do Curso de Relações Internacionais e Coordenadora Adjunta do Curso de Direito, ambos da UniBrasil, Professora de Direito Internacional e de Direitos Humanos da UniBrasil e do UniCuritiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMINA, Larissa. Área de Livre Comércio das Américas - ALCA. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2663, 16 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17626. Acesso em: 26 abr. 2024.

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