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Uma análise crítica do direito penal do inimigo

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22/10/2010 às 15:45
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4. DIREITO PENAL DO INIMIGO

Günther Jakobs, em sua célebre obra Direito Penal do Inimigo, ao fazer algumas observações acerca do direito processual esclarece que "o acusado é, no caso básico do processo penal no Estado de Direito, sujeito processual, sujeito participante; é justamente isso o que distingue o processo reformado do processo inquisitório. Pode-se citar como exemplos: o direito ao contraditório, o direito de ofertar prova, de estar presente nos interrogatórios e, em especial, o direito de não ser ilicitamente induzido a erro em suas próprias declarações, constrangido ou aliciado." [26]

Por outro lado, para o renomado professor alemão, "o Direito Penal do Inimigo segue regras diferentes daquelas de um Direito Penal Interno no Estado de Direito, e ainda não está determinado se, expressado, ele se revela como Direito. São características típicas do Direito Penal do Inimigo: (...) supressão das garantias processuais, sendo que o isolamento total do preso vem constituindo, por assim dizer, o exemplo clássico." [27]

Ainda de acordo com Jakobs "o Direito Penal do Cidadão é o Direito de todos; o Direito Penal do Inimigo é o Direito daqueles que se contrapõem ao inimigo; em relação ao inimigo, ele é somente coação física, chegando até a guerra." Por isso, o renomado autor afirma: "o Direito Penal do Cidadão mantém a vigência da norma, o Direito Penal do Inimigo combate perigos (...)." [28]

Para fundamentar sua teoria, Jakobs invoca o pensamento de vários filósofos, tais como Rousseau, Fichte e Hobbes. Entretanto, sem sombra de dúvidas, o ponto crucial de sua tese encontra respaldo na filosofia de Kant, como se demonstrará a seguir.

"Kant, que utiliza o modelo do contrato como idéia reguladora na justificação e delimitação do poder estatal, situa o problema no limiar entre o estado natural (fictício) e o Estado estatal. Em Kant, toda pessoa está autorizada a coagir qualquer outra pessoa a uma constituição civil para possibilitar a proteção da propriedade. Imediatamente impõe-se a pergunta: o que diz Kant sobre aqueles que não se deixam coagir? Em seu escrito ‘Para a Paz Perpétua’, ele dedica uma longa nota de rodapé ao problema de quando se está autorizado a proceder de modo hostil contra uma pessoa: ‘o homem, ou o povo, no simples estado natural priva-me ... dessa segurança (necessária) e lesa-me já por se encontrar ao meu lado nesse estado, ainda que não efetivamente (facto), mas sim pela ausência de lei de seu estado (statu iniusto), que é uma constante ameaça para mim; e eu posso forçá-lo a entrar comigo num estado comunitário-legal ou a afastar-se do meu lado’. Assim sendo, aquele que não participa de uma vida num ‘estado comunitário-legal’ deve se afastar, o que significa que será expulso (ou lançado à custódia de segurança) ou que, em todo caso, não há que ser tratado como pessoa, podendo-se, como observa expressamente Kant, ‘tratá-lo como um inimigo’. Como acaba de citar-se, em Kant, não se trata como pessoa quem me ‘ameaça ... constantemente’, quem não se deixa coagir ao estado de civilidade." [29]

Conforme se pode perceber nitidamente, Kant utiliza a expressão estado civil-legal em contraposição ao termo estado natural, o que nos permite concluir que, para ele, estado civil-legal nada mais é do que aquilo que hoje conhecemos por Estado de Direito.

Para corroborar tal afirmação é conveniente a transcrição do seguinte trecho da obra de Marcus Cláudio Acquaviva: "a concepção tradicional do Estado de Direito provém de Emmanuel Kant (...), como se depreende de sua concepção individualista, racionalista e voluntarista do Direito, que cairia como uma luva nos interesses de uma nascente burguesia. Daí a expressão Estado de Direito Liberal Burguês (...)." [30]

Ainda com relação ao conceito de Estado de Direito, não obstante a doutrina aponte, e com razão, que tal expressão, sem outra adjetivação, como por exemplo liberal, social, etc., possa levar a concepções deformadas, na realidade deve-se invocar "a concepção formal do Estado de Direito à maneira de Forsthoff, ou de um Estado de Justiça, tomada a justiça como um conceito absoluto, abstrato, idealista, espiritualista (...)." [31]

No mesmo sentido a posição de Paulo Dourado de Gusmão, que se refere ao Estado de Direito como sendo "o Estado submetido ao Direito por ele mesmo criado ou reconhecido, dotado de eficácia e que, tendo estabilidade, possa servir de base para profecias de como decidirão as autoridades e os juízes." [32]

Por outro lado, o estado natural mencionado por Kant, de acordo com o próprio filósofo, é aquele caracterizado pela ausência de leis.

Lon L. Fuller, na obra O Caso dos Exploradores de Cavernas, tão conhecida da comunidade jurídica, ao se referir à lei da natureza (ou estado natural, nos dizeres de Kant), ensina o seguinte:

"Funda-se este entendimento na proposição de que o nosso direito positivo pressupõe a possibilidade da coexistência dos homens em sociedade. Surgindo uma situação que torne a coexistência impossível, a partir de então a condição que se encontra subjacente a todos os nossos precedentes e disposições legisladas cessou de existir." [33]

Realmente, no caso fictício dos exploradores, quando um grupo de espeleólogos fica preso por mais de 30 (trinta) dias no interior de uma caverna, em virtude de um desmoronamento de terra, sem nenhum contato com o mundo exterior, sem água, sem comida, etc., é perfeitamente defensável a tese de que tais homens, até então submetidos a um Estado de Direito, passaram a viver em um Estado Natural, a partir do momento em que ocorreu tal infortúnio.

Podemos contextualizar o que acaba de ser dito através de um lamentável exemplo real. Trata-se do terremoto que devastou o Haiti no dia 12 de janeiro de 2010, o qual atingiu mais de 7 graus na Escala Richtere ocasionou a morte de milhares de pessoas.

Após o incidente, o que se constatava através das imagens veiculadas pela mídia, bem como dos relatos das pessoas que estavam no local era que, praticamente todos os prédios onde funcionavam os órgãos governamentais viraram ruínas, o que dificultava sobremaneira a atuação estatal no sentido de fiscalizar o cumprimento das leis, coibir condutas irregulares, etc.

Dessa forma, tornaram-se freqüentes os saques aos poucos estabelecimentos que resistiram ao abalo, sem falar nos tumultos e brigas ocorridos quando os voluntários, vindos de todas as partes do mundo, tentavam distribuir as doações de alimento, água, medicamento, roupa, etc.

Isso ocorreu justamente porque, a partir do referido desastre, a população afetada pelo terremoto passou a viver em um verdadeiro estado natural, pois a luta pela sobrevivência fez com que as leis existentes deixassem de ser observadas.

Nesse momento é conveniente transcrever o pensamento de Hobbes sobre o assunto: "no estado de natureza, os homens, fundamentalmente egoístas e tendo necessidades dos mesmos bens, são fatalmente inimigos entre si (homo homini lupus), em luta perpétua e universal (bellum omnium contra omnes), em que nem sequer a vida está segura." [34]

Situação totalmente distinta é a narrada por Jakobs, em sua obra Direito Penal do Inimigo. Para o referido autor os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas devem deixar de ser tratados como cidadãos e passar a ser tratados como inimigos, a partir do momento em que deixam de oferecer segurança cognitiva suficiente de que se comportarão como pessoas.

É extremamente importante transcrever, in verbis, o que diz Jakobs sobre o assunto: "quem não pode oferecer segurança cognitiva suficiente de que se comportará como pessoa não só não pode esperar ainda ser tratado como pessoa, como tampouco o Estado está autorizado a tratá-lo ainda como pessoa, pois, de outro modo, estaria lesando o direito das outras pessoas à segurança. Assim, pois, seria totalmente incorreto condenar o que se está chamando aqui de Direito Penal do Inimigo; isso não resolve o problema de como se deve tratar os indivíduos que não se deixam coagir a uma constituição-civil." Por isso Jakobs defende uma "transição da legislação penal para a legislação de combate, que deve combater, por exemplo, a criminalidade econômica, o terrorismo, a criminalidade organizada, mas também – com a perda de certos contornos – os crimes sexuais e outras infrações penais perigosas, bem como – abarcando tudo – o crime em geral." [35]

É imprescindível esclarecer, entretanto, com base no que já foi mencionado em linhas pretéritas, que o próprio Jakobs diz que "Kant (...) situa o problema no limiar entre o estado natural (...) e o Estado estatal". Conclui-se, dessa forma, que para o filósofo de Königsberg, ou as pessoas se encontram em um estado natural ou, ao contrário, em um estado de direito, por ele chamado de estado civil-legal.

Por isso, não conseguimos entender como Jakobs, aparentemente tão fiel ao pensamento de Kant, justamente no ponto nodal de sua tese, se afasta das idéias do filósofo, dizendo que "a reação do Direito a essa criminalidade caracteriza-se – de modo paralelo à diferenciação kantiana, há pouco citada, entre estado de civilidade e estado natural – pelo fato de não se tratar, primariamente, de uma compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo: a punibilidade é amplamente antecipada para o âmbito da preparação, e a pena se presta ao asseguramento contra fatos futuros, não à punição de fatos consumados." [36]

Ademais, devemos ressaltar que ao fundamentar sua teoria, Jakobs não enfrenta a fundo uma questão extremamente importante, mencionada por Kant em sua obra À Paz Perpétua. Por isso é pertinente a transcrição completa de tal fragmento: "admite-se comumente que não se pode proceder hostilmente contra ninguém, a não ser quando ele de fato já me lesou, e isto também é inteiramente correto quando ambos estão no estado civil-legal. Pois, pelo fato de que entrou nesse estado, ele dá àquele (mediante a autoridade que possui poder acima de ambos) a segurança requerida. Mas o homem (ou o povo) no puro estado de natureza tira de mim esta segurança e me lesa já por esse mesmo estado, na medida em que está ao meu lado, ainda que não de fato (facto), pela ausência de leis de seu Estado, pelo que eu sou continuamente ameaçado por ele, e posso forçá-lo ou a entrar comigo em um Estado comum legal ou a retirar-se de minha vizinhança. O postulado, portanto, (...) é: todos os homens que podem influenciar-se reciprocamente têm de pertencer a alguma constituição civil." [37]

Conforme se pode verificar claramente, Kant somente concorda com a punição quando alguém, efetivamente, já tenha causado algum dano a outrem. Nesse ponto, o posicionamento do filósofo é diametralmente oposto ao adotado por Jakobs, que defende a antecipação da punibilidade, ou seja, a possibilidade da pessoa ser responsabilizada criminalmente mesmo antes de ter causado algum dano efetivo.

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Além disso, Jakobs se afasta novamente das idéias do filósofo de Königsberg em outro ponto crucial de sua obra, qual seja, ao afirmar que "a reação do Direito a essa criminalidade caracteriza-se – de modo paralelo à diferenciação kantiana, há pouco citada, entre estado de civilidade e estado natural".

Porém, na realidade, não podemos aceitar essa fórmula paralela por ele mencionada, simplesmente porque é impossível alterarmos a natureza das coisas.

Em outras palavras, ou as pessoas estão inseridas em um contexto que possa ser denominado estado natural, em virtude da ausência (ainda que temporária) de leis, ou elas estão vivendo sob a égide de um estado de direito (ainda que acompanhado por qualquer adjetivação, como por exemplo liberal, democrático, social, etc.) e, conseqüentemente, devem se submeter a tal ordenamento jurídico (ainda que as leis sejam consideradas brandas). Isso significa que não há uma terceira hipótese (ou um "modo paralelo", nos dizeres de Jakobs) possível.

Assim, como nos exemplos mencionados por Jakobs (crime organizado, crimes sexuais e crime em geral), os criminosos estão, efetivamente, inseridos em um Estado de Direito, ou seja, estão convivendo em sociedade, sob o império das mesmas leis que regem a vida das pessoas de bem, não deve haver espaço, no cenário jurídico, para aquilo que se convencionou chamar de Direito Penal do Inimigo.

Da mesma forma entendemos no que diz respeito à criminalidade internacional mencionada por Jakobs, como, por exemplo, nos casos de terrorismo ou de crimes econômicos, uma vez que o professor alemão tenta fazer crer que sua idéia foi retirada da obra de Kant mas, como já mencionado, o filósofo de Königsberg, em relação ao direito internacional (por ele chamado de cosmopolita), "sustenta que cada um de nós, por ser um cidadão de uma ordem civil ou de um Estado político determinado empiricamente, é também um cidadão de uma comunidade mundial única – nossa tentativa de realizar na Terra a idéia de um reino de fins ético, no qual a todos os seres racionais seja concedida uma dignidade que está além de todo preço (...)."


5. CONCLUSÃO

Diante de tudo que foi analisado ao longo do presente estudo, concluímos que a tese conhecida como Direito Penal do Inimigo não pode ser aceita, uma vez que carece tanto de fundamentação filosófica quanto jurídica.

A fragilidade, sob a perspectiva filosófica, reside no fato de que, não obstante Günther Jakobs tente demonstrar que sua idéia foi baseada na obra de Kant, o professor alemão se afasta do pensamento do filósofo conterrâneo justamente no ponto nodal de sua tese, haja vista que, para Kant, somente se pode proceder de forma hostil contra alguém "quando ele de fato já me lesou", enquanto Jakobs defende o posicionamento de que a punibilidade seja "amplamente antecipada para o âmbito da preparação."

Além disso, conforme cabalmente demonstrado, na obra de Kant, a discussão quanto ao tratamento que deve ser dispensado aos criminosos está circunscrita ao fato dessas pessoas estarem vivendo em um estado de direito (ainda que acompanhado por qualquer adjetivação, como por exemplo liberal, democrático, social, etc.) ou em um estado natural (as duas únicas hipóteses conhecidas da comunidade jurídica), enquanto Jakobs cria um "modo paralelo", como se fosse possível alterar a natureza das coisas.

Ademais, mesmo que Jakobs tivesse se mantido integralmente fiel ao pensamento kantiano (o que não ocorre em sua tese), ainda assim seria absolutamente impossível transportar as idéias de Kant para os dias de hoje, especialmente em virtude da nova concepção de direitos humanos.

Por fim, no que tange à fragilidade, sob o ponto de vista jurídico, é conveniente transcrever o art. 11, § 1° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja redação é a seguinte: "Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."

Já o art. 30 do mesmo documento coloca uma "pá de cal" sobre o assunto, ao estabelecer que "Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos."

Especificamente no ordenamento jurídico pátrio, o art. 5°, LV, da CR/88 dispõe que "aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."

Ao tratar da ampla defesa, Marcus Cláudio Acquaviva ensina que esta é a "expressão que denomina o princípio pelo qual a todos é garantido o direito de expor, desde que lícitas, quaisquer razões na defesa de direitos, ensejando ao juiz firmar sua convicção com base nos argumentos e provas apresentadas, devendo fundamentar sua decisão com base naquilo que for demonstrado pelas partes." [38]

Justamente por isso a idéia de Jakobs, no sentido da "supressão das garantias processuais", nas hipóteses de crimes cometidos por inimigos, jamais pode prevalecer, pois entendemos que tal posicionamento seria um dos maiores retrocessos da história da humanidade, no que tange aos direitos humanos fundamentais.

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Sobre o autor
Marcio Rodrigo Delfim

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Bolsista/pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás, Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Toledo de Presidente Prudente/SP, Especialista em Direito Público (com ênfase em Direito Penal) pela Universidade Potiguar/RN, Bacharel em Direito pela Faculdade Toledo de Presidente Prudente/SP, Ex-coordenador do curso de Direito da Faculdade Objetivo de Rio Verde/GO, Coordenador Pedagógico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás, Técnico Jurídico do MP/GO, Professor de Direito Penal da PUC/GO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFIM, Marcio Rodrigo. Uma análise crítica do direito penal do inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2669, 22 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17677. Acesso em: 18 abr. 2024.

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