6. CONTRATOS GRATUITOS
Uma nova modalidade de serviços de provedor vem surgindo com força devastadora e velocidade surpreendente: são os chamados provedores gratuitos, que permitem o acesso aos serviços do provedor da internet e seu portal sem qualquer remuneração direta pelo serviço, ou seja, sem precisar o usuário remunerar o servidor pelo número de acessos ou o número de horas que permaneceu conectado.
A questão, de grande importância prática que nos surge, é se tais contratos, gratuitos, estariam sujeitos às regras pertinentes ao Código de Defesa do Consumidor.
Primeiramente, trazemos o disposto no artigo 3º, § 2º da lei 8.078/90:
§ 2º : Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Numa interpretação literal e isolada, extraímos que, inexistindo remuneração, não há o que se falar em serviço e consequentemente relação de consumo para fins de aplicação da lei protetiva.
Eduardo Gabriel Saad12, em seus Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, nos traz que:
"Por derradeiro, de lembrar-se que há quem preste, gratuitamente, um serviço a outrem. Desnecessário frisar que, no caso, não há relação de consumo sujeita a este Código."
Pois bem, cabe analisar se o contrato de "internet gratuita" é realmente gratuito sob a ótica jurídica.
Maria Helena Diniz13 nos traz o conceito de tal espécie contratual:
"Os contratos benéficos ou a título gratuito são aqueles que oneram somente uma das partes, proporcionando à outra uma vantagem, sem qualquer contraprestação. Logo, apenas um dos contratantes obtém proveito, que corresponde a um sacrifício do outro, como ocorre, por ex., com a doação pura e simples, com o depósito ou com o mutuo sem retribuição. Em regra, esse tipo de contrato encerra uma liberalidade, em que uma das partes sofre redução no seu patrimônio em benefício da outra.
Geralmente, todos os contratos onerosos são bilaterais, e os gratuitos, unilaterais, porém nem sempre, pois pode haver um contrato que seja, concomitantemente, unilateral e oneroso, como, p. ex., o mútuo sujeito a pagamento de juros."
Realmente, o usuário dos serviços do provedor gratuito, não o remunera de forma direta, pagando pelo acesso. Todavia, essa característica não retira a onerosidade do contrato, posto que o usuário consume do provedor outros serviços diversos, como programas fornecidos, aquisição de arquivos e produtos e, principalmente a publicidade ali disponibilizada de uma forma até agressiva e indiscreta.
Publicidade esta, que é o carro forte destes provedores. É o que os mantém e de onde retira-se seu faturamento, dando margem, conforme o caso, a projeções de valores para o serviço com base justamente no número de usuários que estão ligados ao servidor e que o acessam diariamente.
O acesso "gratuito" não traz, portanto, qualquer diminuição no patrimônio do provedor. Tão pouco há uma ausência de contraprestação. Muito pelo contrário: o provedor / servidor lucra e muito com o acesso do usuário. Sem ele, seu negócio fracassa, pois é o internauta que consome seus serviços, seus produtos, sua propaganda e softwares no provedor hospedados ou divulgados, disponibilizando seu tempo e tornando-se dependente dos serviços por este prestados.
A relação de dependência é tamanha ao ponto de que uma ruptura no fornecimento dos serviços de acesso poder causar ao usuário transtornos e prejuízos mil, ante justamente a importância que o serviço lhe causa em hábito adquiridos mediante o acesso diário e a troca de informações entre os usuários (e-mail, chat, etc.).
Da mesma opinião compartilha CERQUEIRA14, que nos traz a lição de que:
"Nenhum serviço poderá ser descontinuado - mesmo que seja gratuito - sem que o usuário seja avisado com certa antecedência. Isto porque usuários acabam se fiando em certos serviços, mesmo que não paguem por eles, e podem ser prejudicados em caso de corte abrupto. Em certos casos, mesmo que não seja uma violação contratual, quando há cláusulas contratuais que o prevejam, o corte repentino de um determinado serviço pode gerar obrigações de indenizar, do âmbito do direito civil, e ser péssimo negócio para as relações entre provedor e usuário."
A onerosidade e contraprestação por parte do usuário está, assim, mais que caracterizada.
Vejamos, ainda, o enquadramento dos contratos de prestação gratuita de acesso à internet e serviços afins entre a classe dos contratos bilaterais ou unilaterais:
Para tanto, frisamos que, como nos ensina o Prof. Orlando Gomes15, "Todo contrato bilateral é, entretanto, oneroso, por isso que, suscitando prestações correlatas, a relação entre vantagens e sacrifício decorre da própria estrutura do negócio jurídico."
Os contratos unilaterais caracterizam-se justamente pelo fato de apenas uma parte se obrigar, ficando a outra desincumbida de qualquer ônus. "O peso do contrato é todo de um lado, os efeitos são somente passivos de um lado, e somente ativos do outro" 16 .
Já os contratos bilaterais trazem obrigações para ambas as partes, obrigações essas que uma vez rompidas geram o rompimento do pacto.
Assim, cabe verificar, se, além da onerosidade já demonstrada, são os contratos de acesso à internet unilaterais ou bilaterais. Tal dúvida é suprida pela simples análise de qualquer desses contratos formulários exibidos nos sites de "internet gratuita". Ali, claramente se constata que não é só a parte contratada que tem obrigações, mas também o usuário contratante. Como exemplo, citamos a exigência do uso apropriado do serviço com vedações de práticas como a divulgação comercial de produtos ou serviços, a invasão de privacidade, a divulgação de textos e mensagens não desejadas, consideradas imorais ou indecentes.
Assim, percebe-se que os contratos de provedor de internet devem ser tidos como verdadeiros contratos de consumo, aplicando-se, da mesma forma que nos contratos onde existe uma contraprestação pecuniária direta, todas as normas presentes no Código do Consumidor. Caso contrário, a gratuidade serviria tão somente como uma máscara para eximir os provedores de suas responsabilidades legais
7. CONCLUSÃO
As relações inerentes aos contratos de serviço de provedores de internet trazem grande pertinência à relações comerciais e intra pessoais observadas em crescimento avançado nos últimos tempos.
Conflitos e problemas jurídicos oriundos de tais relações começam a ser percebidos e confrontam-se com a ausência de estudos aprofundados e principalmente de legislação específica que regule a matéria. Talvez tal ausência de regulamentação, que, usualmente, apenas define vantagens e distribui privilégios seja o grande impulso da própria rede mundial de computadores (www).
De qualquer sorte, a relação de consumo está caracterizada nas relações entre provedores e usuários. As dimensões da responsabilidade de tais provedores podem ser delimitadas de três formas distintas: respondem os servidores pelos serviços disponibilizados de forma direta a seus usuários (responsabilidade contratual); respondem de forma solidária pelos serviços disponibilizados de forma indireta por terceiros com vínculo ao provedor e conseqüente participação dentro da relação de consumo, dos quais o usuário do serviço acabou contratando, e não respondem por terceiros sem qualquer ligação com o provedor dos serviços, por inexistir qualquer capacidade de controle do provedor sobre as informações e o conteúdo de todo material existente na internet.
São aplicáveis às relações entre usuários e provedor o Código do Consumidor, inclusive para os casos dos chamados "provedores gratuitos" onde, embora não haja uma remuneração direta do usuário, há uma contraprestação indireta e uma dependência de consumo, que configura a bilateralidade e a onerosidade desses contratos atípicos.
Por fim, tem-se que os abusos existentes nos contratos de adesão de serviços de provedores de internet são passíveis de coibição pela lei 8.078/90 e demais legislações pertinentes, e a discussão de tais problemas, bem como a limitação dos campos de responsabilidades são essenciais para evitar-se abusos de proporções maiores oriundos do crescente comércio virtual, quer seja ente consumidores e fornecedores, quer entre empresas.
A finalidade do presente trabalho foi justamente traçar singelas considerações sobre o tema, procurando clarear um pouco a obscuridade que paira sobre tão recente e inexplorada matéria. Se o objetivo não foi alcançado, essa foi a intenção, ainda que de boas intenções estejam forradas as entranhas do inferno.
NOTAS
1 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software: lei, comércio, contratos e serviços de informática. Rio de Janeiro, Ed. Esplanada, 2000. p. 235.
2 Aqui um exemplo típico de privilégios de acesso e conseqüente diferenciação de classes de consumidores dos serviços, dependendo do contrato firmado entre o usuário.
3 Especialmente para fins de configuração de competência territorial para ajuizamento de demanda com cunho reparatório, na orientação do art. 9º da LICC e do art. 1087. do Código Civil.
4 CERQUEIRA, T.Q., p. 83.
5 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do consumidor. 2ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 98
6 Sustentada por alguns doutrinadores, segundo a qual qualquer destinação do produto ou serviço, que não seja com cunho exclusivamente de consumo final, sem qualquer repasse a terceiros, direta ou indiretamente, excluiria a relação de consumo bem como a incidência das regras do Código do Consumidor.
7 GRINOVER, Ada Pelegrini . (et al.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 40.
8 GRINOVER, Ada Pelegrini . (et al.). Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. p. 300.
9 GRINOVER, Ada Pelegrini, (et al). Código Brasileiro do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1998., 5ª Ed. Pág. 126.
10 NERY, Nelson Júnior; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo Civil Comentado e Legislação Processul Extravagante em vigor. 3º Ed. São Paulo, RT, 1997, pág. 1380.
11 CORRÊA, Gustavo Testa. Aspectos Jurídicos da Internet. São Paulo. Saraiva, 2.000, p. 24;
12 SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Lei nº 8.078, de 11.09.90. 3º Ed., - São Paulo: LTr Editora Ltda., 1998, pág. 88.
13 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 3º volume. São Paulo: Saraiva. 1995. Pág. 63.
14 CERQUEIRA, Tarcísio Queiroz. Software: lei, comércio, contratos e serviços de informática. Rio de Janeiro: Ed. Esplanada, 2000. p. 240.
15 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro. Forense, 1995. Pág. 74
16 GOMES, Orlando, p. 71
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