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A condição da vítima no âmbito do novo Código de Processo Penal

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5.Justiça Restaurativa: a evolução de um sistema

Embora deva ser reconhecida e aplaudida a tentativa de mudança do panorama processual penal brasileiro por meio do Novo Código de Processo Penal, o legislador pode estar perdendo a oportunidade de introduzir, em definitivo, na ordem jurídico-penal pátria, um instituto de há muito utilizado em diversos países do mundo. A Justiça Restaurativa, pouco debatida em nosso cenário, tem se mostrado bastante eficaz na busca pela superação de um sistema penal eminentemente retribucionista, passando a ter em vista, especialmente, à reparação à vítima por meio de institutos como mediação e conciliação, questionando as práticas da justiça criminal, nos moldes em que se encontra atualmente.

A Justiça Restaurativa é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes interessadas principais’, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão. Há, pois, uma resolução coletiva, que trata, também, das implicações futuras do delito.

Segundo o professor Damásio E. de Jesus, em seu artigo "Justiça Restaurativa no Brasil",

"a essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal. [...] O engajamento cooperativo é elemento essencial da justiça restaurativa". (JESUS, 2005)

Percebe-se, pois, que o objetivo primordial do instituto é satisfazer as necessidades da vítima, sejam materiais, sejam emocionais, mas, também, fazer com que o infrator assuma a responsabilidade pelos seus atos.

Os estudos acerca da justiça restaurativa ganharam fôlego na década de 90, impulsionado, em muito, pela constatação da ineficiência e altos custos, humanos e financeiros, da justiça tradicional, além do seu fracasso na responsabilização dos criminosos e atenção às necessidades da vítima. Esse impulso foi diretamente influenciado por diversas teorias que já vinham sendo discutidas e analisadas. Abolicionismo e vitimologia se mostraram bases para o surgimento de uma doutrina diametralmente oposta ao sistema retributivo predominante, que estaria em colapso.

Essa diferenciação da justiça criminal é, sem dúvida, a principal característica da justiça restaurativa, embora haja pontos de aproximação.

Outro ponto relevante do restaurativismo é a aproximação não apenas entre vítima e agressor, mas também entre os familiares, que, inevitavelmente, são afetados pelo evento criminoso. Nas palavras de Damásio de Jesus:

"Aqueles que têm uma relação emocional significativa com uma vítima ou transgressor, como os pais, esposos, irmãos, amigos, professores ou colegas, também são considerados diretamente afetados. Eles constituem as comunidades de assistência a vítimas e transgressores. As partes secundárias, por outro lado, são integradas pela sociedade, representada pelo Estado, pelos vizinhos, "aqueles que pertencem a organizações religiosas, educacionais, sociais ou empresas cujas áreas de responsabilidade incluem os lugares ou as pessoas afetadas pela transgressão". O dano sofrido por essas pessoas é indireto e impessoal, e a atitude que deles se espera é a de "apoiar os processos restaurativos como um todo". (JESUS, 2005)

É certo que a Justiça Restaurativa não está isenta de críticas, e que ainda há muito para ser melhorado e adequado à realidade brasileira. Apresentar tais críticas e adequações, bem como fazer aprofundamento teórico a respeito do tema, desborda da finalidade precípua do presente trabalho. Todavia, ela tem, sim, se mostrado uma alternativa de punição capaz de promover uma revolução no sistema penal e processual penal brasileiro, na medida em que irá privilegiar a reparação à vítima de maneira satisfatória, além de criar mecanismos mais eficazes para a ressocialização do indivíduo ofensor, tão desprestigiada pela atual conjuntura jurídico-penal.


6.Conclusão

No sistema processual penal brasileiro vigente há uma grande lacuna no que diz respeito à vítima do delito. Promulgado em 1941, o Código de Processo Penal, mesmo recortado por diversas leis supervenientes, não dispensa um tratamento adequado àqueles que tiverem seus bens jurídicos diretamente atingidos em conseqüência da prática criminosa. O máximo que se observa é a consideração destes indivíduos durante a instrução probatória, embora lhes sejam conferidas mínimas prerrogativas, principalmente com o advento da lei nº. 11.690/08 que alterou o teor do art.201 e seus parágrafos do CPP.

O que se busca, no entanto, com base na experiência teórica da Ciência Vitimológica, é o reconhecimento do ofendido como sujeito de direitos, como parte integrante necessária do procedimento criminal, que possui interesse direto no resultado do processo e cuja expectativa de reparação não reside apenas na apenação vingativa do acusado pelo Estado- juiz. Essa mesma vitimologia serviu de base para o surgimento da Justiça Restaurativa, uma alternativa à punição retributiva estatal, que, embora pouco discutida no âmbito jurídico brasileiro, tem se mostrado apta a promover mudanças necessárias no paradigma processual penal dominante, vez que prima pela compensação à vítima, punição do delito e ressocialização do agressor, numa aproximação entre vítima-agressor-comunidade, que tem se mostrado bastante satisfatória nos países onde essa prática é adotada através de técnicas processuais eficazes tais como mediação e conciliação.

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Faz-se mister instituir um sistema que não gere a "vitimização secundária" de quem já se encontra em estado psicológico e emocional fragilizado. Isso vai de encontro a todas as preleções contidas na Constituição Federal, que erige uma gama de direitos e garantias fundamentais a ser assegurado pelo Estado democrático a todos os cidadãos.

A adoção de medidas protetivas às vítimas do delito não significa um recrudescimento das garantias conquistadas pelos réus, muito menos uma forma de tornar sentimental ou parcial o órgão jurisdicional. A verdade deve ser buscada para concretização da justiça por meio de um juízo imparcial, mas isso não significa que, durante todo este processo, cerrem-se os olhos ao sofrimento de um indivíduo que pode ser minimizado com a simples instituição de algumas medidas.

Ademais, é notório que a superação de um modelo penal estritamente retributivo, com vistas à utilização de métodos de recomposição dos danos, além de proporcionar efetiva reparação à vítima também agracia o acusado que se vê distante da face vingativa do jus puniendi.

Embora de forma tímida, o projeto do Novo Código de Processo Penal, com a inserção do Título V – Dos Direitos da Vítima, dá o primeiro passo na busca pelo reconhecimento da importância do ofendido no Processo Penal, ao reconhecer direitos específicos a esse grupo que por tanto tempo quedou ignorado. Muito ainda precisa ser feito, pensado, discutido e analisado até que se alcance um nível realmente satisfatório de proteção e valorização do ofendido. Contudo, os avanços, ainda que mínimos, devem ser comemorados e valorizados, até que o objetivo maior seja alcançado, com o descaso em relação às vítimas de delitos finalmente superado.


7.Referências bibliográficas

  1. AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  2. CALHAU, Lélio Braga. Vítima, Direito Penal e Cidadania. Jus Navigandi, 2005. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/1124. Acesso em: 29 de junho de 2010.
  3. JESUS, Damásio E. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, 2005. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/7359. Acesso em: 02 de julho de 2010.
  4. LOBATO, Joaquim Henrique de Carvalho. CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. Vitimização e Processo Penal. Busca Legis, 2008. Disponível em http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/Vitimiza%E7%E3o%20e%20processo%20penal.pdf.
  5. Acesso em: 01 de julho de 2010.
  6. PABLOS DE MOLINA, Antonio García. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. Ed. 4ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
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  8. PALMA, Fernanda. A vítima no Processo Penal. In verbis, 2008. Disponível em: http://www.inverbis.net/opiniao/fernandapalma-vitima-processo-penal.html. Acesso em: 01 de julho de 2010.
  9. PREUSSLER, Gustavo de Souza. Vítima no Direito Penal. Jus Vigilantibus, 2007. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/28382. Acesso em: 02 de julho de 2010.
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  11. RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. Vitimologia: Revista Síntese de direito penal e processual penal, n.º 7, abr/mai, 2001.
  12. WUNDERLICH, Alexandre. A Vítima no Processo Penal. Disponível em: http://jusvi.com/artigos/28382. Acesso em: 30 de junho de 2010.
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Sobre os autores
Ana Carolina Araújo Mazzafera

Estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Silas Oliveira de Lima

Estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia

Renata Tavares de Alcântara

Estudante da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAZZAFERA, Ana Carolina Araújo ; LIMA, Silas Oliveira et al. A condição da vítima no âmbito do novo Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2687, 9 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17786. Acesso em: 26 abr. 2024.

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