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A (im)possível inclusão do "outro" na sociedade excludente

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Buscam-se caminhos alternativos visando à difusão de práticas verdadeiramente inclusivas, contrárias à desumanização dos setores socialmente alijados.

RESUMO

O artigo analisa a possibilidade de inclusão do "outro" em uma sociedade excludente, dilacerada pela desigualdade e, sobretudo, pela diferença. A partir da realidade brasileira, tenta-se estabelecer caminhos alternativos visando à difusão de práticas verdadeiramente inclusivas, contrárias à desumanização dos setores socialmente alijados, condição para a consolidação de um autêntico Estado Democrático de Direito, incompatível com o fascismo social que se espraia atualmente pelos países periféricos e com políticas criminais maximalistas pautadas na hipercriminalização.

Palavras-chave: Sociedade Excludente. Direitos Fundamentais. Estado Democrático de Direito. Ética da Alteridade. Criminologia Crítica.


INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste artigo [01] é promover a reflexão acerca da exclusão social que permeia a sociedade brasileira, expondo, paralelamente, a possibilidade de se estabelecer práticas capazes de incluir o "outro" – cotidianamente marginalizado e desumanizado –, condição para a consolidação de um autêntico Estado Democrático de Direito.

A inclusão do outro, obra de Jürgen Habermas (2002), nos estimulou a tentar estabelecer um diálogo com o criminólogo Jock Young (2002) que em seu trabalho A sociedade excludente se debruçou sobre a realidade de sociedades divididas pela desigualdade e, sobretudo, pela diferença.

É importante frisar que não almejamos conciliar as teorias de ambos os autores, mas, a partir de temas tão instigantes e atuais, estabelecer conexões que possam incentivar o debate visando à construção de um pensamento eminentemente crítico e genuinamente "subalterno" e "insurgente", desenvolvido segundo a realidade dos países periféricos.

Embora nosso ponto de partida sejam obras de autores que elaboraram seus pensamentos num contexto diverso do exposto neste texto, tentamos estabelecer um diálogo que permita desvelar as características de uma sociedade excludente em território brasileiro, fundada sobre uma cultura de matriz senhorial, onde a parte atuante da sociedade opera sem o envolvimento dos excluídos, sem a efetiva participação dos afetados.

Em países com formações sociais autoritárias e hierarquizadas como a nossa, a exclusão social tem sido ampliada e naturalizada pela mundialização do capitalismo e por um pensamento que Santos (2008a) conceituou como abissal, tipicamente moderno e ocidental, constitutivo das relações políticas e culturais excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo.

Em consonância com Habermas (2002, p. 293), acreditamos que "no processo legislativo os cidadãos só podem tomar parte na condição de sujeitos de direito", todavia, verificamos hodiernamente a coisificação do ser humano, transformado em "inimigo", sendo-lhe negada juridicamente até mesmo a condição de pessoa.

O "outro", despojado de seus direitos, se vê excluído do processo legislativo, impossibilitado de exercer plenamente o seu direito político de participação [02] visando fundamentar o sistema de direitos e conferir-lhe legitimidade. Além disso, as exclusões econômicas e sociais, oriundas de níveis extremos e persistentes de desigualdade, causam a erosão do Estado de Direito, transformando a lei e os direitos numa farsa, numa questão de poder, para que os mais afortunados possam negociar os termos de suas relações com os excluídos (VIEIRA, 2008).

Observamos assim a necessidade de (re)conhecimento do outro, bem como de garantia dos seus direitos fundamentais como pressupostos para a sua inclusão objetivando a implementação e a legitimação do Estado Democrático de Direito consagrado em nossa Constituição Federal.


1 EXCLUSÃO SOCIAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NOS PAÍSES PERIFÉRICOS

O Brasil é um "monumento de negligência social". A frase de Eric Hobsbawm (1995, p. 397) ilustra bem a realidade não só do nosso país, mas de boa parte das nações que compõem a chamada periferia do "sistema-mundo", como diria Wallerstein.

É exatamente nos países periféricos ao capitalismo central, dependentes das potências centrais e, por isso, subdesenvolvidos, que se encontra a maior parte da população mundial e a desigualdade econômica e social afloram com maior intensidade.

Com os 20% mais pobres da população brasileira dividindo entre si 2,5% da renda total da nação e os 20% mais ricos ficando com quase dois terços dessa renda (HOBSBAWM, 1995), o Brasil caminha a passos largos, sob a égide da onda neoliberal, rumo ao "apartheid social", ou, nas palavras de Santos (2007, p. 38), "fascismo do apartheid social".

Uma das quatro formas principais de fascismo social [03], o fascismo do apartheid social pode ser entendido como:

[...] a segregação social dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado natural hobbesiano. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, encontrando-se sob a ameaça permanente das zonas selvagens (SANTOS, 2007, p. 38).

Essa divisão das cidades em zonas selvagens e civilizadas amplia a segregação e reforça a percepção do "outro" como "estranho". Se todas as sociedades produzem estranhos e cada sociedade produz sua própria espécie de estranhos, o fascismo do apartheid social tem acelerado esse processo nas nações periféricas.

O estranho, excluído da comunidade de comunicação e de produtores, é o "outro" oprimido e explorado a que se refere Dussel (1995), despojado de seus direitos, coisificado, vítima que foi excluída da participação na discussão.

No Brasil, onde a modernidade é tardia [04] e só logrou sucesso em cumprir as suas promessas para uma parcela diminuta da sociedade, o Estado Social não foi implementado e se foi, apenas as elites puderam desfrutar de sua existência (STRECK, 1999).

É nesse mesmo país, provavelmente o possuidor do maior sistema escravagista do mundo ocidental, onde impera a prática do "sabe com quem está falando?", capaz de identificar a existência de uma sociedade em que as pessoas são classificadas em superiores e inferiores (DA MATTA, 1997, p. 204), que se manifesta com total nitidez a ampliação da "estratificação múltipla da sociedade civil" (SANTOS, 2007, p. 44).

Embora falemos em países periféricos e a exclusão social não seja um problema local, mas global, nosso principal objetivo não é – e nem poderia ser – analisá-la em todas as nações que compõem este nefasto rol, mas traçar um panorama da exclusão particularmente em nosso país. Na realidade, as formas de exclusão a que nos referimos, caracterizadas por relações sociais e experiências de vida vividas debaixo de relações de poder e de troca extremamente desiguais, existem tanto no interior das sociedades nacionais (o Sul interior) como nas relações entre países (o Sul global) (SANTOS, 2007).

Estamos cientes de que o termo exclusão social é bastante flexível e amorfo, compreendendo diferenças relevantes de interpretação, especialmente em razão de sua múltipla dimensão [05]. Outrossim, levando em consideração as três principais posições concernentes ao tema apontadas por Jock Young (2008, p. 01), cremos estar mais próximos daquela aderida por Bauman:

Finally there is a commentary which of the underclass by society: through the downsizing of industry, the stigmatisation of the workless, and the stereotyping of an underclass which is criminogenic, drug ridden with images which are frequently racialised and prejudiced. The work of Foucauldians such as Nikolas Rose (1999) fits this bill, as does Lockdown America, the neo- Marxist account of Christian Parenti (2000), as does the prolific critical work of Zygmunt Bauman (see particularly 1998; 2000) [06].

Voltando nosso olhar para o caso brasileiro, verificamos que a teoria da "escravatura natural" de Aristóteles, assimilada e perpetuada desde a chegada dos portugueses, poderia ser vista como a origem conceitual de uma sociedade excessivamente hierarquizada e desigual, onde "[...] cada um já sabe o seu lugar (ou melhor: cada qual busca sempre estar no seu lugar social adequado)" (DA MATTA, 1997, p. 171).

Em formações sociais autoritárias e hierarquizadas como a nossa, a estratificação social se faz mais do que presente. Tendo como pano de fundo uma sociedade que classifica os indivíduos em gente, pessoas que se lavam, brancos, boa gente, medalhões, em oposição às gentinhas, ao zé-povinho, à gentalha, à massa (DA MATTA, 1997, p. 204), o fascismo social delineado por Boaventura de Sousa Santos tem impactos ainda mais devastadores.

Apesar do professor português afirmar que a mencionada estratificação múltipla da sociedade civil sempre caracterizou as sociedades modernas, é nos países periféricos que a exclusão social ocorre com maior intensidade (SANTOS, 2007).

Partindo de uma divisão da sociedade civil em três tipos (sociedade civil íntima, sociedade civil estranha e sociedade civil incivil), Santos (2007) sustenta que nos países periféricos existe uma tendência à ampliação da "sociedade civil incivil", habitada por pessoas totalmente excluídas, socialmente invisíveis.

Esse estrato da sociedade civil que abrange a maioria da população brasileira tem crescido vertiginosamente à medida que o modelo neoliberal de desenvolvimento se impõe em todo o sistema-mundo.

Com a ampliação da exclusão social gerada pelo aprofundamento da desigualdade de poder econômico entre os estratos sociais [07], torna-se cada vez mais difícil a emancipação dos setores subalternos por meio da discussão, do debate. A desigualdade entre as partes e o esvaziamento do Estado facilita a imposição de condições mais favoráveis aos grupos sociais hierarquicamente superiores e dificulta a inclusão.

Com efeito, observamos atualmente o predomínio estrutural dos processos de exclusão sobre os processos de inclusão e os direitos de cidadania, até então inalienáveis, sendo confiscados (SANTOS, 2007).

Não obstante serem formalmente cidadãos, os excluídos passam à condição de servos graças ao crescimento estrutural da exclusão social, obstáculo natural da inclusão. Conseqüência deste fenômeno é o alastramento do estado natural, sinal de uma crise paradigmática a que alguns chamam "desmodernização" ou "contramodernização" (SANTOS, 2007), bem como a ascensão da sociedade do risco descrita por Beck (1988).

Com a expansão da exclusão, as classes populares da periferia – chamadas por Bauman de "consumidores falhos" – têm se tornado, economicamente falando, "[...] redundantes, inúteis, disponíveis, e não existe nenhuma ‘razão racional’ para a sua presença contínua" (BAUMAN, 1998, p. 77).

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Logo, surge a necessidade de se adotar medidas capazes de isolar, neutralizar e destituir do poder estes setores. O "problema dos pobres" é então remodelado como a questão da lei e da ordem e os fundos sociais são despejados na construção e modernização tecnológicas das prisões e outros equipamentos punitivos e de vigilância.

Mediante a criminalização da pobreza e a brutalização dos pobres, desumanizados perante a opinião pública e transformados em inimigos da segurança pública, reforça-se a dicotomia simbólica "nós" e "eles", "zona civilizada" e "zona selvagem".

Destarte, Santos (2008, p. 334) assevera que:

[...] nas zonas civilizadas, o Estado age democraticamente, como Estado protetor, ainda que muitas vezes ineficaz ou não confiável. Nas zonas selvagens, o Estado age fascisticamente, como Estado predador, sem qualquer veleidade de observância, mesmo aparente, do direito. O polícia que ajuda o menino das zonas civilizadas a atravessar a rua é o mesmo que persegue e eventualmente mata o menino das zonas selvagens.

De um exército de reserva da mão-de-obra que poderia ser reintegrado no processo de produção de capital, os excluídos, habitantes das zonas selvagens, tornaram-se inúteis sociais, desqualificados também no plano político e cívico.

Inobstante o Estado Democrático de Direito seja um projeto inacabado e em construção (HABERMAS, 2003), nos países periféricos e, sobretudo, no Brasil, a parte atuante da sociedade opera sem o envolvimento dos excluídos, sem a efetiva participação dos afetados.

No mesmo sentido é a lição de Chauí (2000), ao afirmar que nossa sociedade foi fundada sobre uma cultura de matriz senhorial, razão pela qual o sistema nunca foi efetivamente pensado para abranger a todos (ontem os escravos, depois as mulheres, depois o excluídos, etc.).

Com efeito, entendemos que falar em Estado de Direito e Democracia no contexto brasileiro é mencionar algo incipiente. Uma breve reconstrução da história política brasileira seria suficiente para demonstrar que a inexperiência democrática é a principal causa de uma vivência ambígua de direitos na realidade do nosso país, "[...] na medida em que fatores econômicos, culturais e sociais de base são o principal fator de carências elementares para a estruturação de uma cidadania plena" (BITTAR, 2005, p. 215).

Na prática, observamos o que Habermas (2003) considera como o afastamento do centro em relação à periferia [08]; afastamento este que de um lado simplifica os processos decisórios e de outro engendra uma crise de legitimidade.

Tal distanciamento, aduz Repolês (2003, p. 137), gera também uma crise de eficácia, "[...] pois o centro – sem manter conexão com a periferia – toma decisões que não conseguem dar uma resposta aos problemas de seu público alvo, que é a periferia".

Verificamos assim que o processo de exclusão pertinente ao isolamento espacial – acompanhado do isolamento político-econômico-social – e a ausência de participação de um amplo contingente da sociedade civil (a sociedade civil incivil), aumentam o déficit de legitimidade do direito e impõem sérios desafios à construção de um autêntico Estado Democrático de Direito.


2 HOMO CRIMINALIS: O "OUTRO" NA SOCIEDADE EXCLUDENTE

Jock Young (2002), um dos criadores da escola britânica de criminologia crítica, afirma estarmos vivendo um tempo de crise de legitimação do contrato social. Na mesma linha, Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 323) indica a crise do contrato social [09], "metáfora fundadora da racionalidade social e política da modernidade ocidental".

Não obstante a contratualização esteja assentada numa lógica de inclusão/exclusão, sua legitimidade provém da possibilidade de inclusão dos excluídos, do outro [10]. Simultaneamente abrangente e rígida, a contratualização

[...] é um campo de lutas sobre os critérios e os termos da exclusão e da inclusão que pelos seus resultados vão refazendo os termos do contrato. Os excluídos de um momento emergem no momento seguinte como candidatos à inclusão (SANTOS, 2008, p. 319).

Outrossim, podemos dizer que na periferia a contratualização ocorreu de um modo mais limitado e ainda mais precário do que no centro. Historicamente percebemos que "a economia foi socializada em pequenas ilhas de inclusão que passaram a existir em vastos arquipélagos de exclusão" (SANTOS, 2008, p. 323).

A crise deste paradigma social, político e cultural aponta para uma transição paradigmática, para transformações que Young (2002, p. 282) denomina "modernidade recente" e outros autores chamam de pós-modernidade. É exatamente em razão dessas mudanças que, na visão do mencionado criminólogo, houve o rompimento do contrato social da modernidade.

É num contexto de fragmentação da sociedade, dividida em múltiplos apartheids, polarizada ao longo dos eixos econômicos, sociais, políticos, culturais e religiosos que diagnosticamos a ascensão da sociedade excludente, cuja tônica está na separação e exclusão (YOUNG, 2002).

Cremos que a realidade multifacetada brasileira exprime bem este paradigma social (para usar as palavras de Kuhn), pois é no país das crises (econômicas, sociais, políticas e culturais) que observamos com maior nitidez os contrastes [11].

A consolidação da sociedade excludente está diretamente ligada à transição da modernidade para a modernidade recente e envolve "[...] processos de desintegração tanto na esfera da comunidade (aumento do individualismo) como naquela do trabalho (transformação do mercado de trabalho)" (YOUNG, 2002, p. 23).

Fruto da crise da contratualização moderna, a sociedade excludente é solo fértil para o crescimento da insegurança, essencial para impulsionar o surgimento do "fascismo da insegurança", mais uma das formas de fascismo social expostas por Santos (2008). As exclusões produzidas no âmbito desta "nova sociedade", mais pluralista e menos estável do ponto de vista da segurança pessoal, imprimem

[...] tentativas repetidas de criar uma base segura, isto é, de reafirmar valores como absolutos morais, declarar que outros grupos não têm valores, estabelecer limites distintos do que é virtude ou vício, ser rígido em vez de flexível ao julgar, ser punitivo e excludente em vez de permeável e assimilativo (YOUNG, 2002, p. 35).

A fusão entre a precariedade econômica e a insegurança, favorece o ressurgimento do punitivismo e a criação de bodes expiatórios, indivíduos que geralmente são demonizados [12] e se identificam com os outros, os estranhos.

A desumanização [13] do outro, excluído, habitante das chamadas zonas selvagens, da sociedade civil incivil, é o que permite, no campo penal, a criação do Direito Penal do Inimigo [14], verdadeiro direito penal do autor, totalmente incompatível com o princípio do direito penal do fato.

De acordo com Zaffaroni (2007, p. 21), "o inimigo, o estranho, o hostis, carece de direitos em termos absolutos e está fora da comunidade, tendo-lhe sido negada juridicamente a condição de pessoa". Da mesma forma leciona Silva Sanchez (2007, p. 04), ao assinalar que "el enemigo es definido como no-persona; es, por definición, el ‘outro’ a quien se excluye [15] ".

A mudança de percepção em relação ao outro acaba por gerar alterações dramáticas nas atitudes sociais em relação ao "outro desviante". Esse indivíduo, praticamente despojado de sua humanidade e que, segundo Bauman (1998) normalmente integra um estrato social que não se encaixa no campo cognitivo, moral ou estético do mundo, é definido por Salo de Carvalho (2008, p. 184) como o homo criminalis, derivado do conflito existente entre o atraso antropopsicológico e a irrupção da civilização, eternamente vinculado à idéia de anomalia moral e fisiológica.

A negação radical do outro produz uma ausência radical, "a ausência de humanidade, a sub-humanidade moderna" (SANTOS, 2008, p. 09). Assim, a exclusão torna-se simultaneamente radical e inexistente, uma vez que seres sub-humanos não são considerados sequer candidatos à inclusão social.

A negação de uma parte da humanidade, condição para a outra parte da humanidade se afirmar como universal, integra o pensamento moderno ocidental que continua a dividir o mundo humano do sub-humano, realidade típica do período colonial.

É a partir dessa realidade que Santos (2008) desenvolve a idéia de que o pensamento moderno ocidental opera essencialmente mediante linhas abissais – que dividem o mundo em humano e sub-humano –, criando e negando o outro lado da linha. Sob esse prisma, podemos falar na existência de um pensamento jurídico abissal, que se manifesta de várias maneiras, responsável por autorizar a criação e a gestão de não-territórios em termos jurídicos e políticos, espaços impensáveis para o primado da lei, dos direitos humanos e da democracia.

Exemplo mais atual e grotesco da manifestação desse pensamento, Guantánamo é apenas um destes territórios sub-humanos, também observáveis nas "[...] zonas selvagens das megacidades, nos guetos, nas sweatshops, nas prisões, nas novas formas de escravatura, no tráfico ilegal de órgãos humanos, no trabalho infantil e na exploração da prostituição" (SANTOS, 2008, p. 10).

Na guerra empreendida contra os "inimigos" – Jakobs (2007) sustenta que o direito penal do cidadão é o direito penal de todos, enquanto que, frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra – duas estratégias podem ser adotadas: uma "antropofágica", aniquilando-os e devorando-os para, em seguida, transformá-los num tecido indistinguível do que já havia (assimilação) e outra "antropoêmica", ou seja, "vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro (exclusão)" (BAUMAN, 1998, p. 29).

Alternativas, porém complementares, essas duas estratégias demonstram que os estranhos, identificados com as "classes perigosas" [16], representam uma anomalia a ser retificada.

Embora toda sociedade produza os seus estranhos e estes sejam voláteis, produtos da construção da identidade, o principal motor da transformação dos comportamentos e atitudes públicos no tocante aos outros é, sem dúvida, o aumento da taxa de criminalidade. Para Young (2002), o aumento da criminalidade gera uma série de barreiras para prevenir e administrar o crime, criadas tanto pelos ricos como pelos despossuídos (no caso destes últimos, haveria o que pode ser visto como exclusão defensiva).

Cada vez mais observamos a privatização do espaço público, a construção de "[...] castelos neofeudais, enclaves fortificados característicos das novas formas de segregação urbana – cidades privadas, condomínios fechados, comunidades muradas" (SANTOS, 2007, p. 38).

Ademais, a deterioração do mercado de trabalho e o deslocamento cada vez maior do social para o penal resultam na "sobrecondenação" por intermédio da reclusão dos indivíduos marginalizados pelo mercado de trabalho (WACQUANT, 2001).

Na era do desemprego em massa e do acirramento das desigualdades sociais, o encarceramento dos indesejados (quando não a sua execução) tornou-se a estratégia mais popular nos países periféricos.

O processo de exclusão tem ampliado a insegurança em um mundo plural, segregado, onde, de um lado do muro "nós" tentamos viver as promessas e os valores da modernidade, enquanto do outro lado, os "outros" buscam, diante das câmeras de vigilância – esses nossos olhos artificiais – naturalizar a sua existência e materializar o seu reconhecimento.

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Sobre os autores
Raphael Boldt

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Graduado em Direito e Comunicação Social. Professor de Direito Processual Penal da FDV. Professor Convidado da Escola Superior da Advocacia (ESA/ES). Professor de Direito Penal no Centro de Evolução Profissional (CEP). Advogado.

Aloísio Krohling

Pós-Doutor em Filosofia Política. Doutor em Filosofia (Instituto Santo Anselmo, Roma, Itália). Mestre em Sociologia Política (Escola de Sociologia e Política de São Paulo). Professor de Filosofia do Direito no Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLDT, Raphael ; KROHLING, Aloísio. A (im)possível inclusão do "outro" na sociedade excludente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2687, 9 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17787. Acesso em: 5 mai. 2024.

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