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A Polícia Militar do Estado do Espírito Santo e o militarismo:

a crise da hierarquia e da disciplina no pós Constituição Federal de 1988

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09/11/2010 às 21:31
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4. Disciplina

A palavra disciplina que, no geral, reflete castigo que gera obediência, ou ainda, na sua raiz etimológica significa discípulo, ambas de origem latina, representa – pupilo, o qual, por sua vez, significa instruir, educar, treinar, modelar o caráter.

Pode-se ainda, definir a disciplina, de um modo geral, como um hábito interno que facilita que cada pessoa cumpra suas obrigações, é o autodomínio, é a capacidade de usar a liberdade pessoal, isto é, a possibilidade de atuar livremente superando os condicionamentos internos e externos que apresentam na vida cotidiana.

Já em sua representação militar a disciplina é considerada como uma qualidade a ser perseguida pelos militares, com o fito de torná-los aptos a não se desviarem de padrão desejável para o bem comum da tropa, mesmo em situação de pressão extrema.

Assim por esse pilar da estrutura militar - a disciplina, e seu significado na vida castrense, percebe-se que não pode existir hierarquia sem disciplina nem o inverso.

O Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Espírito Santo (RDME), preleciona acerca da disciplina militar.

Art. 7º - A disciplina militar estadual é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes da PMES e do CBMES.

§ 1º - São manifestações essenciais de disciplina:

I – a correção de atitudes;

II – a rigorosa observância das prescrições legais e regulamentares;

III – a obediência pronta às ordens legais;

IV – a dedicação integral ao serviço;

V – a colaboração espontânea à disciplina coletiva e à eficiência da instituição;

VI – a consciência das responsabilidades;

VII – o zelo para a preservação dos padrões de qualidade profissional, objetivando a melhoria e a credibilidade perante a opinião pública;

VIII – as manifestações espontâneas de acatamento dos valores e deveres morais e éticos.

Por isso, vale-se do entendimento de ilustre administrativista pátrio Miguel Seabra Fagundes, citado por Bulos (2008, p. 720) em suas anotações a Constituição Federal de 1988.

Onde há hierarquia, com superposição de vontades, há, correlativamente, uma relação de sujeição objetiva, que se traduz na disciplina, isto é, no rigoroso acatamento, pelos elementos dos graus inferiores da pirâmide hierárquica, às ordens, normativas ou individuais, emanadas dos órgãos superiores. A disciplina é, assim, um corolário de toda organização hierárquica.

A disciplina deve ser entendida, primeiramente, como o respeito e fiel cumprimento às ordens emanadas de superior hierárquico, o que para o policial militar representa o respeito a tudo o que prescreve a Constituição Federal, as leis nacionais e estaduais e a legislação peculiar, seja o respeito aos sinais, bandeira, hino, tropa e até as coisas mais comezinhas, como a urbanidade, e aqui deve ser dito, que a urbanidade é uma via dupla, porque requer que superior e subordinado se tratem com respeito mútuo, da mesma forma, no trato com os cidadãos.

Noutro enfoque, a disciplina é o poder que é dado ao superior hierárquico para fiscalizar seus subordinados, podendo exigir que a sua conduta seja adequada aos preceitos legais, sob pena de ser responsabilizado disciplinar e criminalmente e no caso dos militares, também se responde pelo previsto no Código Penal Militar no Título II – Dos crimes contra a autoridade ou disciplina militar, diversos ilícitos que podem ser cometidos pelos militares.

Acerca da disciplina entende Carvalho Filho (2009, p.68) Disciplina funcional, assim, é a situação de respeito que os agentes da Administração devem ter para com as normas que os regem, em cumprimento aos deveres e obrigações a eles impostos.

Dissertando acerca do poder disciplinar, ressalta Meirelles (2003, p. 120):

O poder disciplinar é correlato com o poder hierárquico, mas com ele não se confunde. No uso do poder hierárquico a Administração Pública distribui e escalona as suas funções executivas; no uso do poder disciplinar ela controla o desempenho dessas funções e a conduta interna de seus servidores, responsabilizando-os pelas faltas cometidas.

Desta forma, a melhor compreensão é que o poder disciplinar, inerente ao superior, é complementar ao poder hierárquico não podendo, inclusive, o superior deixar de aplicá-lo no caso de constatar a transgressão disciplinar sob pena de macular o ordenamento jurídico, seja no cometimento de crime – condescendência criminosa, seja na prática de improbidade administrativa por ferir os princípios da Administração Pública, conforme o artigo 11 da Lei 8.429/92.

Deve-se esclarecer que disciplina também é a correta observância das normas, regras e determinações, já o poder disciplinar é o ônus que a autoridade tem de exercer na correta gestão da coisa pública, no caso a gestão de pessoal.

Assim, de tudo que até aqui foi dito é importante ressaltar que não existe uma diferença muito grande entre a disciplina exercida por servidores públicos civis e os militares, contudo, no entender de Marçal Justen Filho a diferença baseia-se primordialmente nos valores que trazem consigo - militares e servidores públicos civis, além do ônus que os diferenciam, colocando ainda, que aos militares é dado o uso da força para manutenção da ordem e paz pública.

Manifesta-se Justen Filho (2009, p. 724):

Os militares são os agentes estatais investidos de modo específico e especializado na competência para o exercício da violência monopolizada pelo Estado. Precisamente por isso, o regime jurídico a eles aplicável é diferenciado. O rigoroso regime de hierarquia destina-se não apenas a assegurar o desempenho eficiente de suas funções, mas a proteger o regime democrático e o princípio da soberania popular.

É de peculiar importância trazer ao conhecimento que o constituinte reformador na Emenda Constitucional nº 18/98, retirou dos militares a condição de servidores públicos ou funcionários públicos, colocando-os à parte, como militares ou militares estaduais, contudo, na interpretação que se deve fazer do texto constitucional, os militares não deixaram a condição de servidores públicos ou ainda, não deixaram de ter seus direitos constitucionais protegidos, como obreiros que são do Poder Público. Tal esclarecimento se faz necessário, pois os militares já foram também conhecidos como servidores públicos militares ou ainda, servidores militares, como dito, hoje são somente, militares ou militares estaduais, com regime e legislação própria.


5. Conclusão

Concluindo o presente artigo, algumas considerações se fazem necessárias.

Primeiramente, não se deve generalizar acerca dos "recrutas" ou policiais mais modernos como desenquadrados, mas sim a reflexão serve para todos os policiais, de todas as graduações ou postos, recrutas ou não, haja vista que o respeito à hierarquia e à disciplina deve ocorrer por todos.

Outro ponto, que é bom ser lembrado, passa pela questão sindical na Polícia Militar, mesmo que a Constituição Federal vede aos policiais militares a sindicalização, vemos que na prática as associações vêm funcionando como sindicatos.

Ressalte-se que na mente dos policiais militares o sindicalismo, ou melhor, o sentimento sindical, é o que vem prevalecendo como meio de luta; o que deve ser rechaçado, veja, não se dizendo que os policiais militares não devem reivindicar seus direitos, muito pelo contrário, mas como guardiões da Lei devem, por meio das associações, pleitearem o direito com argumentações fundamentadas e não com táticas sindicais, não que se pense que estas sejam incorretas (e até que algumas são), mas que a postura, enquanto militares estaduais, não permite esse comportamento, não permite a balbúrdia.

Assim, como exemplo, pode-se falar da Ação Civil Pública, a qual permite que as associações, legitimadas, representem no judiciário seus associados contra os órgãos públicos, como também existem as ações coletivas que podem ser impetradas pelas associações até mesmo como meio de pressão.

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Observa-se que o vulgar e populista discurso político é o que vigora. Não se está preocupado com a carreira, a profissão ou mesmo a segurança pública, mas sim, com o trampolim político que isso pode proporcionar.

Desse modo é relevante que seja pontuado um marco no fito de delimitar e explicitar que o policial militar (praça ou oficial) submete-se a um concurso público, deveras concorrido e passa por uma formação em escolas de qualidade, hoje na maioria das Polícias Militares se obtém o título de graduado ou tecnólogo em segurança pública, e recebe, inclusive, salários durante sua formação, com a perspectiva de uma carreira sólida.

Observa-se que o cidadão além de se submeter a um estressante concurso público e passar por uma formação profissional disputada, entra em contato com todos os princípios da vida militar, e depois de formado se embrenha em questionar os ditames da profissão abraçada.

Igualmente não se quer dizer que alguns princípios não devam ser questionados, principalmente se confrontados com a Constituição da República, ou seja, o cidadão se propõe a prestar um concurso público para ingressar numa vida militar e após seu ingresso, se assim podemos dizer, diz que não sabia que a vida militar era uma vida regrada, que era uma vida dentro dos limites da hierarquia e da disciplina.

O recruta e mais recentemente os militares envolvidos com a questão ‘sindical’ ou política, esquecem-se de quais são os princípios que regem a vida militar; contudo, o que se quer reforçar é que, ao contrário, os princípios da caserna devem ser entendidos como pilares fundamentais de nossa Corporação, mas que isso não nos deixa impedidos de pleitearmos nossos direitos.

Assim, parafraseando Rousseau os homens viviam livres e decidiram pactuar viver em sociedade, por isso deixaram o estado natural para viverem no estado social, da mesma forma o militar, enquanto era civil vivia conforme sua consciência, onde segundo a Lei civil, podia fazer tudo o que a lei não proibisse, mas optou por seguir carreira militar, onde a estrita legalidade é mais acentuada do quem qualquer outra carreira pública, por isso não pode renegar os princípios que regem a vida castrense.

Outrossim, é necessário que sejam quebrados paradigmas e clientelismo na Instituição, buscando-se uma profissionalização da gerência e dos servidores da Polícia Militar.

Por derradeiro, o que se quis esclarecer no sucinto artigo é que a vida castrense é uma vida de doação, busca-se do militar uma postura diferenciada do cidadão ou servidor civil, não a desmerecendo, mas que a própria formação nos obriga, por isso é necessário uma releitura da hierarquia e da disciplina na Polícia Militar do Estado do Espírito Santo reforçando estes princípios para que a Instituição não perca seu rumo neste século XXI.


6. Referências:

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 7ª edição, revista, ampliada e atualizada. Niterói: Impetus. 2005.

BOBBIO, Noberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1998. V.1

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. V.1. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003.

BRANDÃO, Aloir Silva. A posição e o "status" dos militares. Disponível em:<

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 8ª edição, revista e atualizada até a EC nº 56/2007. 2008.

CALDAS, Aulete. Dicionário Caldas Aulete da Língua Portuguesa. Edição de bolso. Rio de Janeiro: Lexington. 2007.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª edição, revista, ampliada e atualizada até 31/12/2008.

CRETELLA JÚNIOR, José. Prática do Processo Administrativo. 6ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2008.

CUNHA, Rogério de Vidal. Direito Penal Militar. Disponível em: <

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CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 3ª edição, revista, ampliada e atualizada até a EC nº57/2008. Salvador: JusPodivm. 2009.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Vigésima Terceira Edição. São Paulo: Atlas, 2010.

ESPÍRITO SANTO. Polícia Militar. Instrução Modular. 5ª Ed. Vitória, 1999.

FIGUEREIDO, Telma Angelica. Excludentes de Ilicitude e Obediência Hierárquica no Direito Penal Militar. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009.

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no Processo Penal. 6ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição. São Paulo: Saraiva. 2009.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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Sobre o autor
Rogério Fernandes Lima

Capitão da Polícia Militar do Espírito Santo; Bacharel em Direito; Especialista em Segurança Pública; Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais; Professor de Direito Penal nos Cursos de Formação de Soldados da PMES; Professor nos cursos de habilitação de Sargentos e Cabos da PMES; Especializado pela Escola Superior do Ministério Público do Espírito Santo; Chefe da Seção de Polícia Administrativa e Judiciária Militar (SPAJM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rogério Fernandes. A Polícia Militar do Estado do Espírito Santo e o militarismo:: a crise da hierarquia e da disciplina no pós Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2687, 9 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17791. Acesso em: 24 dez. 2024.

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