4 O ICM NA IMPORTAÇÃO MEDIANTE ARRENDAMENTO MERCANTIL
Muito se discute atualmente quanto à incidência do ICM nas operações de importação realizadas mediante arrendamento mercantil, o qual é comumente denominado, na prática do comércio exterior, de leasing internacional. Tal discussão se dá, justamente, por não restar pacífico, na doutrina e jurisprudência, se o ICM incide pela simples entrada do bem ou mercadoria importada do exterior, ou se esta entrada deve, necessáriamente, ocorrer a transferência de titularidade dos produtos importados, conforme se verificou no tópico anterior.
Antes de se analisar esta incidência, contudo, importante entender, de maneira geral, como funciona o arrendamento mercantil (comumente denominado de leasing), em especial, compreendendo o conceito deste instituto para o Direito Empresarial, e sua utilização nas operações de importação.
Existe diferentes modalidades e tipos de arrendamento mercantil ou leasing utilizados na prática empresarial, contudo, no presente estudo, esta operação será abordada de maneira genérica, apenas com a finalidade de entendimento e compreensão de seu conceito, para que se possa analisar a incidência do ICM na importação efetuada mediante este tipo de operação comercial.
A palavra leasing é originária do verbo inglês to lease que significa "arrendar", "tomar em arrendamento", tendo como palavra correlata a expressão leasehold, que se traduz como "posse por arrendamento" [80]. Ou seja, o leasing nada mais é do que a designação na lingua inglesa (a mais utilizada no comércio exterior) para o instituto que no ordenamento brasileiro é conhecido como arrendamento mercantil.
Sobre o arrendamento mercantil ou o denominado leasing, traz-se os ensinamentos do Professor Roberto de Oliveira Murta:
O contrato de leasing tem por objetivo o arrendamento de máquinas ou equipamentos, por tempo determinado, mediante renda estabelecida de modo fixo entre arrendador (leaser) e arrendatário (leased ou leaseholder) ou como porcentagem sobre os lucros auferidos por este. (...)
Consiste numa operação realizada entre pessoas jurídicas – arrendador e arrendatário – cujo objeto seja a locação de bens adquiridos a terceiros, pelo arrendador, com a finalidade precípua de utilização dos mesmos pelo arrendatário, de acordo com as suas especificações [81].
De maneira mais prática, cita-se o Professor Arnoldo Wald, o qual conceitua este instituto como:
um contrato pelo qual uma empresa, desejando utilizar determinado equipamento, ou um certo imóvel, consegue que uma instituição financeira adquira o referido bem, alugando-o ao interessado por prazo certo, admitindo-se que, terminado o prazo locativo, o locatário possa optar entre a devolução do bem, a renovação da locação ou a compra pelo preço residual fixado no momento inicial do contrato
O arrendamento mercantil ou leasing, portanto, assemelha-se muito a um contrato de locação, haja vista que inexiste, a princípio, a venda e compra do bem arrendado. O arrendador (pessoa jurídica especializada neste tipo de operação) realiza a compra de determinado bem, com a finalidade precípua de disponibilizá-lo, ao arrendatário, mediante uma remuneração mensal e por um determinado período de tempo.
Segundo a definição de Maria Helena Diniz, assim tem-se o conceito de arrendamento mercantil ou leasing.
É um contrato pelo qual uma pessoa jurídica ou física, pretendendo utilizar determinado equipamento, comercial ou industrial, ou certo imóvel, consegue que uma instituição financeira o adquira, arrendando-o ao interessado por tempo determinado, possibilitando-se ao arrendatário, findo tal prazo, optar entre a devolução do bem arrendado mediante um preço residual, previamente fixado no contrato, isto é, o que fica após a dedução das prestações até então pagas. Trata-se do financial leasing, norte americano e do creditbail dos franceses [83].
Relevantes, ainda, os ensinamentos do Professor Luiz Mélega:
[84].Seguindo na esteira dos notáveis juristas atrás citados (Profs. Konder Comparato, Oviedo e B. Garcia Hilário), poderíamos definir o leasing, na sua forma por assim dizer ortodoxa, como um contrato bilateral comutativo celebrado entre pessoas (preferencialmente jurídicas), tendo por objeto o arrendamento de bens adquiridos a terceiros por uma delas, denominada arrendadora (empresa leasing), para fins de uso próprio da outra, denominada arrendatária, aquisição esta feita segundo as especificações desta última, a qual, ao fim do prazo contratual, tem as seguintes opções: a) ou devolver o bem à sociedade arrendadora, dele proprietária; b) ou adquiri-lo pelo seu valor residual; c) ou continuar na sua posse por tempo indeterminado, pagando o respectivo aluguel
O leasing ou arrendamento mercantil, como se vê, é um contrato típico, com previsão na Lei nº. 6.099/74, no qual o arrendador (proprietário) transfere, temporariamente, apenas a posse imediata de um determinado bem ao arrendatário, mediante remuneração periódica, sendo que, ao final, o bem arrendado poderá: i) retornar ao arrendador, proprietário do bem, ii) ser adquirido (comprado) pelo arrendatário; ou ainda, iii) continuar na posse do arrendatário, renovando-se o contrato de arrendamento mercantil ou leasing.
Pode-se observar, portanto, que no arrendamento mercantil inocorre a transferência de titularidade do bem arrendado, uma vez que, o arrendador transfere, temporariamente, tão somente a posse imediata de um bem ao arrendatário, sendo que, ao final do contrato, o bem poderá retornar para o arrendador.
A titularidade do bem arrendado, ou seja, a disponibilidade do bem, neste tipo de operação, permanece com o arrendador, ou seja, o arrendador permanece sendo o proprietário (dono) do bem objeto do arrendamento mercantil (leasing).
No que concerne ao arrendamento mercantil ou leasing realizado em operações internas do país, a doutrina e a jurisprudencia já se consolidaram no sentido de que não há a incidência do ICM sobre operações de circulação de mercadorias, justamente porque nestas operações não ocorrem a trasnferência de titulariade do bem arrendado, o qual é fundamental para caracterização do critério material da hipótese tributária deste tributo.
Em artigo da lavra de Ataliba, na qual se analisa a não incidência do ICM nas operações realizadas mediante arrendamento mercantil (leasing), assim restou consignado pelo Professor:
[85].Circular significa, para o direito, mudar de titular. Se um bem ou uma mercadoria muda de titular, ocorre circulação para efeitos jurídicos. (...) Vê-se, portanto, que ‘circulação’, tal como constitucionalmente estabelecido (art. 155, I, ‘b’), há de ser jurídica, vale dizer, aquela na qual ocorre a efetiva transmissão dos direitos de disposição sobre mercadoria, de forma tal que o transmitido passe a ter poderes de disposição sobre a coisa (mercadoria)
Nesse sentido, não se materializando a opção de compra do bem pelo arrendatário, não há se falar em incidência de ICM no arrendamento mercantil ou leasing realizado em operações internas, posto que não haverá a transferência do domínio do bem para o patrimônio do arrendatário (inocorre a transferência dos direitos de disponibilidade do bem arrendado para o arrendatário). Portanto, nestes tipo de operação não ocorre a circulação de mercadoria para fins de incidência do ICM.
Este posicionamento resta consolidado pela doutrina e jurisprudência, tanto que a própria Lei Complementar nº. 87/96 prescreveu em seu artigo 3º, inciso VIII, que "o imposto não incide sobre: (...) VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem ao arrendatário". Veja-se que, a norma faz a ressalva aos casos em que o bem arrendado é adquirido pelo arrendatário, momento no qual ocorre, de fato, a transferência de titularidade do bem, ou seja, os direitos de disponibilidade do bem, sendo passivel, portanto, de incidêncio do tributo.
Em que pese restar consolidado o entendimento da não incidência do ICM nas operações de arrendamento mercantil realizadas internamente no país, muito se discuste quanto à incidência deste tributo nas operações externas realizadas mediante arrendamento mercantil, ou seja, quando são efetuadas importações mediante este tipo de operação.
Conforme se verificou do tópico anterior, a doutrina se divide em dois posicionamentos distintos quanto à incidência do ICM na importação, por conta de diferentes entendimentos quanto ao critério material da hipótese tributária deste tributo, os quais foram abordados no tópico anteceente (subtópicos 3.1 e 3.2).
Autores como Paulo de Barros Carvalho, Roque Antônio Carrazza, Gabriel Lacerda Troianelli, entre outros, sustentam que o critério material na importação está vinculado à necessidade de transferência de titularidade do bem ou mercadoria importada, devendo esta incidência respeitar a matriz constitucional de incidência do ICM (operações de circulação de mercadorias). No entanto, destacou-se também o posicionamento do Professor Marcelo Viana Salomão, o qual sustenta que o ICM na importação, em verdade, seria um novo tributo, possuindo o binômio hipótese tributária/base de cálculo completamente desvinculado do tradicional ICM (incidente sobre operações de circulação de mercadorias), incidindo este tributo pela simples entrada do bem do exterior no país.
A partir daí, já pode se ter uma idéia de como se divide os mencionados doutrinadores, especificamente, em relação à incidência do ICM nas importações realizadas mediante arrendamento mercantil ou leasing.
Para o primeiro entendimento, apenas haverá a incidência do imposto quando se efetivar a opção de compra do bem pelo arrendatário, momento em se concretizaria a transferência da titularidade do bem arrendado. Não se concretizando a opção de compra na importação realizada mediante arrendamento mercantil, esta importação não estará sujeita à incidência do ICM.
De outro lado, para a segundo posicionamento, independentemente do tipo de operação realizada, sempre que se concretizar a simples importação do bem do exterior, esta operação estará sujeita à incidência do ICM (ou, o denominado Imposto de Importação Estadual). Ou seja, ocorrendo a simples importação do bem ou mercadoria do exterior, haverá a incidência do ICM, independente desta importação ter sido efetuada mediante arrendamento mercantil ou leasing.
Por óbvio que os Estados Federados e o Distrito Federal aplicam o entendimento deste segundo entendimento. Nesse sentido, este entes políticos efetuam a cobrança do tributo em toda e qualquer tipo de operação de importação, independentemente de ocorrer a transferência de titularidade do bem ou mercadoria importada.
A título de conhecimento, traz-se a Consulta n. 109, realizada em 1998, por contribuintes do Estado do Paraná, perante a Fazenda Pública, quanto a este tipo de incidência do ICM. Naquele momento, assim se posicionou o entendimento daquele Estado-membro:
1. está correto seu entendimento de que não incide ICMS no contrato internacional de arrendamento mercantil – leasing?
[...]
Do exposto, responde-se negativamente as indagações da consulente em razão de que:
1. a caracterização do fato gerador independe da natureza jurídica da operação que o constitua (art. 2°, § 2°, da LC n° 87/96; ...) [86].
Dez anos após a referida consulta, verifica-se que o entendimento do Fisco Estadual do Paraná permanece inalterado, conforme pode se observar da Consulta nº. 21, realizada em 2008:
A matéria questionada refere-se à incidência do ICMS em operação de importação com contrato de arrendamento mercantil internacional e sob o regime de admissão temporária.
[...]
Portanto, respondendo ao questionamento da Consulente, tem-se que a importação por ela realizada está sujeita ao ICMS, devendo ser recolhido o imposto no momento do desembaraço aduaneiro [...] [87].
Diante deste posicionamento dos Estados Federados e do Distrito Federal, em efetuar a cobrança do tributo em todo e qualquer tipo de importação de bens e mercadorias, tem-se verificado uma batalha no Poder Judiciário, o qual ainda não se posicionou de maneira consolidada sobre o tema, conforme será abordadona sequência (tópico 5).
Não obstante, pedimos vênia para demonstrar o posicionamento pessoal adotado sobre o tema, após análise dos diferentes posicionamentos da doutrina quanto à esta matéria, realizada através do presente trabalho. Nesse aspecto, seguimos o entendimento dos Professores Paulo de Barros Carvalho, Roque Antônio Carrazza, Gabriel Lacerda Troianelli, exposto no tópico anterior (subtópico 3.1), segundo o qual, para que haja a incidência do ICM na importação, deve-se ocorrer a transferência de titularidade do bem ou mercadoria importada do exterior, pois esta incidência é vinculada ao critério material da hipótese tributária do ICM incidente sobre operações de circulação de mercadorias.
Para demonstrar de forma efetiva este posicionamento, deve-se realizar uma interpretação sistemática, e não apenas literal, do dispositivo constitucional que autoriza a instituição do ICM pelos Estados Federados e pelo Distrito Federal, a fim de melhor entender a sua incidência.
Importante restar consignado que em nenhum momento a Constituição Federal outorga, mesmo em sua redação original de 1988, competência para que os Estados Federados e o Distrito Federal instituam imposto sobre a simples importação de bens ou mercadorias do exterior.
A Constituição Federal outorga competência apenas para os Estados Federados e o Distrito Federal instituirem impostos sobre os eventos descritos nos incisos I, II, e III, do seu artigo 155 [88]. As disposições trazidas nos parágrafos deste artigo devem ser entendidas como complementos destes eventos, e ainda, como diretrizes e princípios norteadores da incidência destes tributos, mas não como sendo um novo tipo de incidência.
Dessa maneira, o § 2º, inciso IX, alínea a do artigo 155 [89], deve ser interpretado como um complemento ao inciso II, do mesmo artigo, mas não como uma outorga do legislador constituinte para instituição de impostos sobre a importação.
Importante mencionar que o § 2º, inciso IX, alínea a do artigo 155 foi trazido à Constituição Federal (conforme mencionado, através de uma grande pressão política exercida pelos Estados) como forma de alargar, ou seja, aumentar, majorar a incidência do ICM, para que este tributo também alcance as operações de importação.
Em vista disto que o legislador constituinte trouxe a expressão: "§ 2º - O imposto previsto no inciso II (...) IX – incidirá também". Ou seja, o termo "incidirá também" apenas demonstra o intuíto do legislador constituinte em alargar a incidência do tributo, mas não de instituir um novo tributo, de competência dos Estados Federados e do Distrito Federal, incidente sobre a importação. Até porque, o legislador constituinte já havia outorgado à União Federal, diga-se, acertadamente, a competência para a instituição de imposto sobre estas operações (importação) – art. 153, inciso I, da Constituição Federal [90].
Quanto à inclusão da incidência do tributo não apenas sobre mercadorias, mas sobre todo e qualquer tipo de bem, destaca-se que esta é mais uma demonstração da intenção do legislador constituinte em alargar a incidência do ICM, ainda que de forma restrita à operações de importação.
Outra demonstração da verdadeira intenção do legislador constituinte em aumentar a incidência do ICM para abranger as importações, também pode ser verificada pela expressão "ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior". Em que pese a discussão quanto à impossilidade de se tributar um operação que não tenha ocorrido dentro do território do Estado, conforme muito bem fundamentado pelo Professor Marcelo Viana Salomão, esta expressão claramente demonstra a inteção de se alargar a tributação do ICM para seja alcançada as operações de importação.
E, por fim, entendo que não se pode considerar que o ICM incide sobre toda e qualquer tipo de importação, independentemente da natureza da operação, pois esta é uma competência outorgada, exclusivamente, à União Federal, conforme dispõe o seu artigo 153, inciso I.
Não merece prosperar o entendimento de que esta incidência seria possível, pois decorrem do mesmo poder constituinte originário. Primeiro, porque, impossível admitir que um mesmo evento seja tributado por entes federativos distintos (União e Estados Federados/Distrito Federal). E, depois, se assim o quisesse o legislador constituinte, este teria previsto o evento importação no rol de impostos descritos nos incisos do artigo 155, da Constituição Federal.
Diante disso, acompanho o posicionamento dos Professores Paulo de Barros Carvalho, Roque Antônio Carrazza, Gabriel Lacerda Troianelli, exposto no subtópico 3.1, entendendo que somente nos casos em que ocorra a transferência de titularidade do bem importado é que há exigência do ICM na importação, pois esta incidência deve estar vinculada ao critério material da hipótese tributária do tradicional ICM, a qual se dá apenas sobre operações de circulação.
Quanto às importações realizadas mediante arrendamento mercantil ou leasing, objeto do presente estudo, pode se dizer que penas haverá a incidência do imposto quando se efetivar a opção de compra do bem pelo arrendatário, momento em que se concretizaria a transferência da titularidade do bem arrendado. Não se concretizando a opção de compra na importação realizada mediante arrendamento mercantil, esta importação não estará sujeita à incidência do ICM.
Corroborando este posicionamento, traz-se a doutrina do Professor Roque Antonio Carrazza sobre a incidência do ICM na importação mediante arrendamento mercantil:
[91].Reiteramos (v. supra, subitem 2.7.2) que, apesar da EC 33/2001 "permitir" que o ICMS incida "sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja sua finalidade", o arrendamento mercantil efetuado no exterior passa ao largo deste tributo, por não se encaixar em sua regra-matriz constitucional, originariamente traçada
Seguindo esse entendimento, o autor também destaca que a não tributação pelo ICM do arrenda mercantil ocorrido internamente no país, mas somente operações externas, de importação mediante este tipo de operação, estar-se-ia infringindo o princípio da isonomia, consagrado pela Constituição Federal: "como se isto não bastasse, o próprio princípio da igualdade milita no sentido da não-incidência. De fato, seria anti-isonômico tributar apenas o arrendamento mercantil efetuado no exterior".
Diante das fundamentações acima expostas, acompanhadas pelo forte entendimento dos doutrinadores mencionados anteriormente no subtópico 3.1, pode-se afirmar, que a incidência do ICM nas operações de importação mediante arrendamento mercantil apenas ocorre quando se efetivar a opção de compra do bem pelo arrendatário, momento em se concretizaria a transferência da titularidade do bem arrendado. Isto porque, o ICM incidente na importação deve estar vinculado à regra matriz de incidência fiscal deste tributo, a qual, no critério material da hipótese tributária, preve a necessidade de transferência de titularidade do bem ou mercadoria.