Nos últimos anos, acompanhamos um notável crescimento na utilização da mídia pelas grandes empresas, no sentido sensibilizar sobre o prejuízos que experimentam em função da usurpação de seus direitos, em especial aqueles ligados à propriedade intelectual.
Aliás, assistimos não apenas a expansão no espaço midiático, mas também no surgimento e fortalecimento de diversas instituições que tem como fundamento a defesa ou a propagação da importância da propriedade intelectual.
Tais esforços, absolutamente legítimos, encabeçados muitas vezes por empresas multinacionais e até organismos apoiados ou ligados à órgãos governamentais, obtiveram reconhecido crescimento no Brasil, sendo notável reflexo o atual CNCP – Conselho Nacional de Combate à Pirataria, que ao lado de outras entidades possuem papel fundamental nessa importante tarefa.
Não há dúvidas de que o desenvolvimento dessas frentes representa o aspecto macro do anseio dos titulares de direitos intelectuais (e talvez da própria sociedade) em obter a máxima consciência coletiva sobre a necessidade de respeito aos seus direitos, socorrendo-se muitas vezes na esfera criminal.
O reflexo ao alcance do cidadão, seja ele efetivo ou não, é trazido pela mídia livre, em especial os telejornais, que noticiam volumosas apreensões de produtos falsificados nos principais centros de comércio do país, em especial os populares.
É claro que outras atividades desenvolvidas com a gestão dos titulares de direitos intelectuais também são efetivas, mas não representam o mesmo alcance das medidas criminais, que sem embaraço dos que acreditam sejam desnecessárias, são absolutamente importantes (e centrais) no trato do problema.
Ademais, parece incompatível com a estado atual da sociedade a sustentação de que a pirataria [01] tenha sido absorvida de tal modo a ser aceita (adequação social) ou manifeste-se de menor relevância ao bem jurídico tutelado (insignificante), ou ainda de que o direito penal não deveria se prestar a tutelá-la (intervenção mínima), aspectos cujo debate exige certamente outro artigo.
Mas é importante frisar que a ação do direito penal nos casos de pirataria é medida não apenas eficaz mas necessária, dado o seu caráter e função que ligados ao poder geral de cautela positiva e mesmo negativa (teoria funcional do direito penal), são inalcançáveis por outros ramos do direito.
De todo modo, inegável é reconhecer que a questão da tutela da propriedade intelectual enfrentou nos últimos anos crescente evolução, seja no campo acadêmico, legal ou político, sofrendo evidentemente influências filosóficas ou sociológicas em especial sobre seus limites e sobre a forma de controlar a sua violação.
Sob uma perspectiva ampla é possível seccionarmos essa evolução em dois grandes campos: as medidas de aspecto macro e aquelas de micro.
Dentre as macromedidas, poderíamos incluir todo o desenvolvimento de medidas preventivas (campanhas preventivas e educativas, treinamento de agentes, seminários etc.), a criação do próprio CNCP, a atuação legislativa na criação de novas leis (mais severas), o desenvolvimento de convênios entre entidades representativas das vítimas e o Ministério Público, intensificação do trabalho investigativo das polícias judiciárias, intensificação das fiscalizações nas fronteiras etc.
Já no campo micro, temos dois sub-grupos: as medidas adotadas isoladamente pelas próprias vítimas (ações ajuizadas) e as ações repressivas fruto das macroatividades.
Em todos os campos, é nítido o papel fundamental desenvolvido pela sociedade organizada, encabeçada na grande maioria das vezes por entidades que conglomeram as principais vítimas da pirataria. São elas o "start" e a mola propulsora de todo o sistema, não apenas porque sofrem vultuosas perdas financeiras, mas porque essas perdas refletem negativamente para toda a sociedade (diminuição de empregos, fomento a atividades criminosas, fortalecimento do poder paralelo etc.) e o próprio governo (diminuição na arrecadação de impostos, prejuízo político, etc.)
E a experiência demonstra que no Brasil talvez tenham sido as medidas "micro" que iniciaram a peregrinação (ao menos com maior rigor), impulsionadas possivelmente pelas empresas que há décadas passaram a visualizar a violação de suas marcas, personagens e demais direitos relativos à propriedade intelectual.
A despeito da ausência de dados estatísticos, é possível crer que o caminho tenha sido percorrido inicialmente com maior rigor pelas grandes empresas internacionais, pelas grandes "grifes", que ao terem acesso ao nosso mercado, passaram a identificar a existência de infratores locais, talvez motivados inicialmente pela falta de acesso à tais produtos [02].
É claro que esse provavelmente tenha sido o início "romântico" da pirataria. A evolução demonstra, através de fatos devidamente apurados, que os delitos contra a propriedade intelectual "caíram no gosto" do criminoso, provavelmente em função da alta rentabilidade, dos baixos custos envolvidos, da facilidade de circulação, do relativo menosprezo pela sua ocorrência e pela reduzida pena passível de aplicação, dentre outros fatores.
De toda forma, o ponto central é que tanto as macro como as micromedidas devem evoluir paralelamente, em igual força e intensidade, merecendo assim a atenção especialíssima das vítimas desse crimes.
Se há menos de uma década a principal dificuldade encontrada pelas vítimas era justamente promover uma medida criminal; ver seu pedido de instauração de inquérito policial acolhido e realizada a apreensão dos produtos falsificados, especialmente nos locais "intocáveis" como os centros populares dominados por conhecidas máfias, hoje tanto as autoridades policias realizam diariamente operações de combate à pirataria, como centenas de decisões garantindo a tutela dos direitos intelectuais são proferidas por todo o Brasil.
E, em alguns casos, vemos a inversão dos quadros: autoridades policiais, que efetuam apreensões de produtos falsificados, alertarem sobre desinteresse das vítimas em dar suporte às operações, ou mesmo de participar efetivamente da fase investigativa. Por outro lado, não menos comum (lamentavelmente) é o relato de juízes de que muitas vezes são promovidas apreensões e não há continuidade, por abandono da via criminal pela vítima, ou pela ausência de sua participação. Felizmente essa não é a regra.
É claro que há uma questão legal a ser enfrentada no que diz respeito às apreensões realizadas sem a participação das vítimas, titulares dos direitos, especialmente quando envolvem crimes contra a propriedade industrial, cuja ação penal é, em quase todos os casos, de natureza privada e, portanto, exigem sua provocação inicial para qualquer medida (regra geral), mas o dano que pode ser causado pelo distanciamento da vítima do processo penal da pirataria (seja nas ações penais privadas ou públicas) pode colocar em xeque não apenas uma ação específica mas o próprio programa de combate à pirataria eventualmente conduzido.
A formatação de um programa de combate à pirataria que contemple as micromedidas exige, certamente, redobrado cuidado em sua elaboração e, mais do que isso, criteriosa escolha daqueles que irão conduzi-lo, devendo a vítima exigir compromissos formais dos profissionais e escritórios envolvidos nessas tarefas, pois algumas condutas praticadas por esses agentes podem representar riscos à sua imagem e credibilidade. Abordaremos, em outra oportunidade, os principais aspectos que devem ser observados.
O Crime de violação de direito autoral
Sob o aspecto científico o crime é definido como sendo o fato típico (tipicidade) e antijurídico (ilicitude) [03]. Portanto, para que determinado fato seja considerado crime, nele devem estar presentes todos os elementos que compõem as características acima.
O fato típico é o comportamento humano descrito em lei como crime ou contravenção [04] e é composto por conduta (dolo ou culpa), resultado (exceto em algumas hipóteses, como nos crimes de mera conduta e formais), nexo causal (análise da imputação objetiva e teoria da conditio sine qua non) e finalmente tipicidade.
Já a antijuridicidade ou ilicitude é conceituada, em linhas gerais, como sendo a contrariedade entre a conduta e a norma penal. No entanto, esse conceito (formal) tem cedido espaço para a conceituação material da ilicitude, que entende ser a ilicitude, como elemento fundamento do crime, a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal violada.
Portanto, para que determinada conduta seja considerada em princípio criminosa, é necessária a presença cumulativa dos elementos acima (guardada as particularidades de alguns tipos), sem a qual não haverá crime.
No caso da violação de direito autoral, que é o foco em análise, não é diferente. Vejamos o artigo 184, em especial o parágrafo segundo:
Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)
§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)
§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)
Assim, para que seja imputada a prática do crime ao agente, é necessário que haja um tipo legal que descreva de forma genérica a conduta proibida (na hipótese o artigo 184, parágrafo 2º. do CP); que haja tipicidade, ou seja, adequação entre o tipo legal e a conduta praticada pelo agente; que a conduta tenha sido praticada dolosamente (já que para o crime de violação de direito autoral não há previsão de crime culposo [05],) e que tenha violado o bem jurídico protegido pela norma. O nexo causal e o resultado não são essenciais no crime de violação de direito autoral, já que o crime é formal.
Aliás, observe-se que a expressão "intuito de lucro", que integra o crime de violação de direito autoral, deve ser considerada como o especial fim de agir do agente, o que representa dolo específico. Obtendo ou não o lucro o crime se consuma.
Mas não é só.
No que diz respeito ao "fato típico", outros elementos devem ser analisados e estar presentes, para que essa característica do crime esteja preenchida e para que possamos analisar a ilicitude ou antijuridicidade, para então concluirmos se há crime. É claro que somente após essa conclusão é que poderíamos avaliar a culpabilidade para concebermos ou não a imputabilidade do agente.
De todo modo, o aspecto que nos interesse nesse pequeno escrito é justamente a analise do fato típico como elemento do crime de violação de direito autoral, diante de algumas decisões que serão comentadas e que se resumem, de modo simplista (e não técnico), na afirmativa de que sem a identificação da vítima não há crime.
É claro que há ainda aspectos atuais sobre os crimes contra a propriedade intelectual (incluindo-se portanto os crimes contra a propriedade industrial e de concorrência desleal), como a aplicabilidade da teoria da tipicidade conglobante em algumas hipóteses, incidência ou não do princípio da insignificância e da adequação social, concurso de crimes, etc., que são igualmente instigantes e que pretendemos abordar em outra oportunidade.
Finalmente, importante notar que a classificação do crime de violação de direito autoral, segundo a doutrina majoritária, é que se trata de um crime formal, praticado de forma livre, comissivo, instantâneo em algumas hipóteses (distribuir, vender, introduzir, adquirir, alugar) e permanente em outras (ter em depósito, expor à venda, ocultar, ), plurissubsistente na maioria dos casos (admitindo portanto a tentativa),
Sem vítima não há crime.
Existem crimes cuja simples leitura do tipo permitem a compreensão do conteúdo proibitivo da norma, não exigindo assim qualquer complemento normativo ou valorativo. São as chamadas leis penais completas, como o crime de homicídio (art. 121, caput, do Código Penal).
Outras, no entanto, trazem em seu preceito primário (descrição da conduta) um elemento indeterminado quanto ao seu conteúdo, porém passível de determinação. Essas são as chamadas leis penais incompletas, que dependem, portanto, de complemento normativo ou valorativo.
Já a norma penal em branco é uma espécie de lei penal incompleta que exige, para que haja compreensão, um complemento normativo, com a qual haverá integração. Essas normas são divididas, de acordo com a doutrina, em diversas espécies: normas penais em branco heterogêneas (ou em sentido estrito), normas penais em branco homogêneas (ou em sentido lato), normais penais em branco impróprias homológas ou homovitelinas e normas penais em branco impróprias heterólogas (heterovitelina).
O crime de violação de direito autoral é um espécie de normal penal em branco, classificado como imprópria heteróloga, já que exige um complemento normativo para compreensão do seu preceito primário (direito autoral), encontrado na lei de direito autorais.
E justamente nesse ponto que as recentes decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo exigem especial atenção por resultarem na absolvição daqueles que foram condenados em primeira instância pela prática do crime de violação de direito autoral, sob o fundamento de inexistência do próprio crime, posto não ter sido complementado o elemento normativo da norma penal em branco, identificado pela expressão "direito autoral".
É exatamente isso. Em recente decisão, a 12ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo ao julgar a apelação criminal 990.08.186251-4, da Comarca de Itapira, reconheceu, de forma unânime, a atipicidade do crime de violação de direito autoral, absolvendo o então condenado, com fundamento no artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal [06]
O caso foi ementado da seguinte forma:
- Não caracterização - Atipicidade reconhecida - Ausência do elemento normativo do tipo "violação do direito de autor" - Agente que expôs à venda DVD's - Laudo que atestou a falsificação das mídias, mas não identificou seus títulos nem os titulares de eventuais direitos autorais violados - Ausência de identificação da pessoa jurídica ou física que teve seu direito autoral violado – Absolvição Provimento concedidoCrime contra a propriedade imaterial - Violação de direito autoral - Art. 184, § 2o, do Código Penal
A leitura do acórdão, da lavra do i. Desembargador Paulo Rossi, julgado no dia 16.12.2009, relata um corriqueiro caso de apreensão de CDs e DVDs falsificados, como tantos outros que são presenciados diariamente nos principais centros comerciais do Brasil (e cuja ocorrência, acompanhada de rigorosos critérios de controle e atuação, deveria ser intensificada com maior rigor).
De acordo com o relatório do caso, a apelante, proprietária de um estabelecimento comercial na cidade de Itapira (interior de São Paulo), teria sido surpreendida por policiais acompanhados de "agente de fiscalização da APDIF – Associação de Proteção e Defesa da Indústria Fonográfica", expondo à venda CDs falsificados. Em sua defesa, teria alegado o desconhecimento de que os produtos eram falsificados, muito embora informa tê-los adquirido no "Shopping Vinte e Cinco de Março", famosíssimo reduto da pirataria na cidade de São Paulo.
No que pese o desconhecimento do inteiro teor de sua defesa, mas apenas do voto do i. relator, vemos que o caminho escolhido pela defesa, além de possíveis outras linhas, foi justamente invocar a ausência de dolo e o reconhecimento da insignificância da conduta da então condenada.
Tais teses, que exigem certamente um grande aprofundamento em sua análise, posto que não raramente vemos até mesmo pedidos de arquivamento feitos pelo Ministério Público fundados na "ausência de dolo" daquele que foi flagrado comercializando produtos falsificados, muito embora o inquérito policial não traga (via de regra) outros subsídios senão a tendenciosa declaração do acusado, não causam espécie, mas sim o posicionamento pacífico (e justificado) do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre análise do complemento necessário para configuração do crime de violação de direito autoral.
A mesma colenda 12ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - TJSP, ao julgar recentemente (04.08.2010) caso semelhante – Apelação Criminal n. 990.10.068.859-6 (e cuja defesa parece ter escolhido os mesmo argumentos), tendo como relator o i. desembargador Paulo Rossi, ratificou o entendimento acima:
Ementa:
Crime contra a propriedade imaterial - Violação de direito autoral
- Art. 184, § 2o, do Código Penal - Não caracterização • Atipicidade reconhecida - Ausência do elemento normativo do tipo "violação do direito de autor" - Agente que expôs à venda DVD's - Laudo que atestou a falsificação das mídias, mas não identificou seus títulos nem os titulares de eventuais direitos autorais violados - Ausência de identificação da pessoa jurídica ou física que teve seu direito autoral violado – Absolvição. Provimento concedidoDe fato, uma rápida pesquisa tendo como lapso temporal 2009 e 2010 revela que a 12ª. Câmara Criminal do TJSP ao analisar casos envolvendo crimes de violação de direito autoral (art. 184 do Código Penal), envolvendo a comercialização de CDs e DVDs "falsificados", independentemente de argüição da defesa, faz uma avaliação criteriosa (como não poderia deixar de ser) com a finalidade de identificar ou não a presença do "elemento normativo" do crime, apontado como sendo a expressão direito autoral.
Nos 27 casos analisados, tendo como relator em 26 deles o desembargador Paulo Rossi, foi reconhecida a "atipicidade da conduta" daquele que comercializava os produtos aprendidos, posto que
"O tipo penal exige que haja violação do "direito de autor, do direito de artista, intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma", sendo, pois, imprescindível para acaracterização da infração penal, que sejam identificados os titularesdesses direitos ou quem os represente.No presente caso, não houve a identificação nominalde nenhum autor das obras apreendidas com o réu, muito embora olaudo pericial seja a ele contrário, concluindo os seus subscritores queeram mesmo produtos decorrentes de pirataria, já que tratando-se decrime envolvendo direitos autorais, a exata identificação da supostaobra copiada irregularmente é de evidente e indiscutível importância,sendo assim necessária a identificação dos autores lesados, sujeitospassivos do ilícito. E nenhum desses autores, de músicas ou de filmesdos produtos apreendidos, foram identificados". [07]
Esse entendimento da 12ª. Câmara não é isolado, e tem pautado as recentes decisões emanadas por outras câmaras criminais do Tribunal, que parece ter firmado entendimento no sentido de exigir a identificação do sujeito passivo no crime de violação de direito autoral.
Diversos são os acórdãos, de diversas câmaras, que adotam esse mesmo entendimento, merecendo destaque o da 1ª. Câmara Criminal, cujo relator foi o Desembargador Márcio Bártoli, julgado no dia 30.08.2010:
"Constitui elemento do tipo penal imputado ao acusado a efetiva violação de um direito autoral, extraindo-se da redação do artigo 184, § 2o, do Código Penal, a imprescindibilidade da identificação do "direito de autor, do direito de artista, intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma", violado pela prática delitiva. Ocorre que o conjunto probatório reunido nos autos não traz quaisquer elementos que possam indicar de qual, ou quais, pessoas físicas, ou jurídicas, os direitos autorais —ou mesmos direitos a eles conexos— foram violados pela conduta do apelado. Não há, assim, como serem preenchidos todos os elementos do delito que lhe fora imputado, pois inexiste prova certa de quais direitos de quais autores restaram infringidos".
(Apelação Criminal 990.09.266981-8)
O ponto central, de acordo com as decisões analisadas, parece ser justamente a necessidade de identificação do sujeito passivo do crime, de modo a influir diretamente na existência de fato típico:
(Apelação Criminal n° 990.09.074772-2).A ausência de identificação dos detentores dos direitos autorais violados impede que se reconheça a materialidade delitiva, considerando-se que não há como saber se houve ou não violação do direito autoral"
O sujeito passivo (constante ou formal e material ou eventual), ao lado do sujeito ativo, da objetividade jurídica, dos elementos constitutivos do tipo (normativos, subjetivos e objetivo), entre outros, são aspectos que compõem o estudo do fato típico (primeira característica do crime).
A questão é saber se ausente a identificação do sujeito passivo, persiste ou não o fato típico. A rigor, sem aprofundamento da questão, não há exigência legal nesse sentido. Ademais, em todos os delitos sempre há um sujeito passivo formal (o Estado). Por outro lado, o sujeito passivo material, na maioria das vezes, é determinável e não ocorrendo a sua evidenciação, parece não se afastar a tipicidade de uma conduta.
Alguns dos acórdãos analisados, traçam um paralelo com crimes contra a fé pública, onde não se exigiria a identificação do sujeito passivo do delito [08]:
"diversamente do que se dá com os crimes contra a fé pública, nos quais prescinde-se, via de regra, da identificação do sujeito passivo, no delito de violação de direito autoral essa identificação é imprescindível, porquanto não há como apurar se o autor intelectual forneceu ou não autorização para a comercialização do produto sem que ele se manifeste nesse sentido, por si ou por interposta pessoa".
De qualquer modo, temos que ter em mente que o sujeito passivo no crime em apreço, que é uma norma penal em branco, está não apenas umbilicalmente ligado ao elemento cuja complementação é buscada na lei civil, mas especialmente na necessidade de sua identificação estar contida, ou ser parte integrante, da materialidade delitiva do crime e, portanto, cuja evidenciação somente se dá com o rigoroso exame de corpo de delito.
Em outras palavras, parece que temos um "concurso" senão confusão entre o sujeito passivo material do crime do artigo 184, parágrafo 2º., a prova da materialidade delitiva e complementação do elemento normativo "direito autoral".
A solução final dada por diversos acórdãos do TJSP analisados é sempre no mesmo sentido: ABSOLVIÇÃO dos acusados ou condenados.
E essa tendência aparentemente firmada no TJSP já é verificada também em primeira instância, onde não rara são rejeitadas denuncias sob o mesmo fundamento, após a apresentação de defesa preliminar, o que tem despertado discussões processuais sobre a possibilidade ou não de tal ocorrência.
Já o Ministério Público, em primeira instância, tem recorrido dessas decisões, sob o argumento de que para configuração do elemento normativo do tipo não é necessário a indicação de todos os autores dos direitos autorais violados, bastando apenas a afirmativa de ser o CD ou DVD aprendido falsificado, considerando os elementos externos. Em alguns casos, havia ainda a alegação de que a falsificação é um fato axiomático, evidente por si só ou notório, dispensando assim outras provas.
Esse entendimento, a despeito de minoritário, é defendido por alguns julgadores, contrariando posicionamento majoritário:
Apelação - Violação de direito autoral - Venda de CDs e D VDs falsificados ? Condenação - Recurso defensivo - Apreensão de diversos Cds e D VDs falsificados - Laudos que, por amostragem, constataram a falsidade dos discos - Para demonstrar a materialidade bastava, somente, a constatação da exposição à venda de apenas um exemplar -Desnecessária uma análise mais aprofundada das falsificações - Peritos que constataram a falsidade devido à discrepâncias entre os discos apreendidos e os originais, vendidos regularmente - Autoria devidamente comprovada - Réu que confessou a prática do delito - Confissão corroborada pelas demais provas colhidas - Condenação de rigor -Dolo bem demonstrado - Acusado que admitiu ter consciência da üicitude do seu ato - Constitucionalidade do tipo penal em apreço - Trata-se de lei eficaz e vigente - O juiz não pode se esquivar de aplicar a lei ao caso concreto - Réu que, em momento algum, mencionou possuir autorização para expor As cópias à venda - Não é razoável que a defesa, possuindo a autorização dos produtores ou criadores para expor à venda os discos, não a apresente, mesmo diante de uma condenação criminal - Prova acusatória produzida - Ônus de demonstrar fato excludente da responsabilidade que cabe à defesa - Penas bem dimensionadas - Inocorrência do erro de proibição evitável - Sentença mantida -Recurso improvido.Ementa:
Apelação Criminal 990091629880 – Relator Salles Abreu – 4ª. Câmara Criminal. Julgado em 15.09.2009.
Em outros julgados, encontramos manifestação no sentido de que basta que haja indicação do titulo dos CDs, para que tenha sido preenchido o elemento "direito autoral" contido na figura típica do art. 184, parágrafo 2º. do CP:
"In casu, o laudo pericial de fls. 65/69, nesse aspecto, é apto ao reconhecimento da tipicidade da conduta, pois refere os títulos dos CDs reproduzidos, de maneira que, nesta hipótese, prescindível a manifestação expressa das vítimas ou de seu representante, que se fez presente tanto na fase inquisitorial como na judicial".
(Apelação Criminal n. 990.08.027242-0, relator Desembargador Almeida Toleda – 16a. Câmara Criminal. Julgado em 31.08.2010).
A análise desses casos, demonstra uma linha tênue entre como se daria a complementação do elemento "direito autoral", sendo que para a maioria dos julgados há a necessidade efetiva de indicação dos autores das obras tidas como violadas.
De todo modo, os acórdãos que impõem a absolvição firmam posicionamento no sentido de exigir não apenas uma análise superficial, mas sim a devida indicação da autoria das obras supostamente violadas, afastando muitas vezes laudos que trazem indicação apenas do titulo da obra ou ainda elementos externos que demonstrariam a "falsificação".
Mas a grande questão que surge, a despeito de eventual inconformismo com o desfecho desses casos [09], é justamente o ponto de discórdia ou divergência nos julgados analisados: qual o fundamento da absolvição?
No que pese a ausência de análise direta desse ponto, todos os julgados do e. Desembargador Paulo Rossi, focam na inexistência ou ausência do elemento normativo do tipo (direito autoral), traduzido pelos julgados como ausência do reconhecimento do sujeito passivo material do crime o que, como já afirmado, retiraria a tipicidade da conduta (a conduta deixa de ser típica), implicando na imposição da absolvição por "reconhecimento de que o fato praticado não é crime".
Assim, para a 12ª. Câmara Criminal, com exceção do julgado que teve como relator o i. desembargador João Morenghi (Apelação n° 990.09.130944-3), a absolvição é medida que se impõe com fundamento no artigo 386, III do Código de Processo Penal, ou seja, "por não constituir o fato infração penal". No mesmo sentido encontramos diversos julgados da 16ª. Câmara Criminal.
Para essa corrente, uma vez não tendo o laudo indicado quais seriam os titulares dos direitos supostamente violados, sequer haveria crime na conduta do acusado/condenado. A conclusão é de que o fato não tem repercussão na esfera criminal.
Em outras palavras, ao reconhecer que o crime é norma penal em branco, e aplicar a necessária busca do conteúdo da elementar "direito autoral" (que compõe o fato típico), essa corrente o faz através da análise do laudo pericial. Analisando a prova e não encontrando indicativo que permita "preencher" o elemento direito autoral (quer por não estar reconhecida a criação, quer por não estar indicada a obra e seu autor), entende que está ausente característica ou elemento essencial do fato típico e, portanto, não há que se falar em crime.
Já a outra corrente, afirmando também ser caso de absolvição, entende que houve "ausência de provas" necessárias para a condenação, ao invocar o inciso VII do artigo 386 do Código de Processo Penal.
Para essa segunda corrente, o entendimento que se extrai, portanto, é que a questão é meramente relativa a prova, ou seja, "não existir prova suficiente para a condenação".
O fundamento distinto dessas decisões absolutórias, com o mesmo "papo de fundo" traz conseqüências jurídicas distintas.
Quando a decisão de uma questão criminal é fundada no artigo 386 inciso III, significa que o Estado entendeu que a conduta pratica não representa um ilícito criminal. É dizer que o fato praticado pelo agente que comercializava CDs ou DVDs, e que foi flagrado pela polícia, tendo sido aprendidos seus produtos (em muitos casos com o reconhecimento pelo próprio autor do fato e de testemunhas, de que os produtos eram falsificados e que a conduta é proibida), não é um crime.
Já quando a decisão é fundada no artigo 386, VII, a mensagem que fica clara é que o conjunto probatório contido nos autos não foi suficiente para o condenação. Não há posicionamento no sentido de reconhecer que aquele fato não é criminoso, conseqüência cuja gravidade, sob diversos enfoques (como a função do direito penal) é extremamente danosa, já que induz a legalidade do ato praticado, e não a falhas quando a produção da prova.
Não há ainda um enfrentamento desse aspecto nas decisões analisadas, que se limitam a apontar o inciso do artigo 386 do Código de Processo Penal, sem no entanto justificá-lo. E quer parecer que também não há uma tendência do TJSP em reconhecer esse (artigo 386, III) ou aquele fundamento (artigo 386, VII).
Em ambos os casos, a vítima não esta impedida de acionar a esfera cível, para buscar a reparação de danos ou obter medida coercitiva que impeça a continuidade da violação, já que tais fundamentos absolutórios não excluem a atuação do direito civil (ademais, temos que ter em mente que o direito penal é fragmentário e subsidiário), como ocorre nos casos dos incisos II, V e VII do Código de Processo Penal, que tratam de outras hipóteses de absolvição.