3. O CONTRATO E A NOVA CONFIGURAÇÃO DO DIREITO PRIVADO NO BRASIL
A ordem constitucional vigente solidifica a concepção social do Estado, e, portanto do Direito, e traz a lume a necessidade de ruptura com institutos que consagravam um modo de atuar em linha de conformidade principiológica com o Estado liberal.
Tal ruptura pode ser verificada com a presença de institutos garantistas positivados no texto constitucional, a exemplo da adoção da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, consagradores de princípios que tendem ao desenvolvimento da coletividade em face da tradicional ideologia individualista.
Este novo modo de agir e pensar o Direito e o Estado pode ser sentido com maior tenacidade num ramo de relações jurídicas que, até então, pareciam estar ainda concatenadas com o modelo liberal-individualista: as relações entre particulares, caracterizadoras do objeto primário de estudo do Direito Privado, estão em coadunância com a tendência constitucional de adequação ao novo sistema de normas jurídicas que privilegiam a ordem pública e a justiça social, alçando, por conseguinte, as relações privadas à necessária observação de valores trazidos nessa nova configuração do ordenamento, com vistas ao ser humano entendido em sua expressão social.
De acordo com TARTUCE (2007, p. 33),
(...) são tendências do Direito Privado não só a compatibilização do princípio da liberdade com o da igualdade, como também a busca da expansão da personalidade individual de forma igualitária e o desenvolvimento da comunidade mesmo que ao custo de diminuir a esfera da liberdade individual.
O Direito Contratual, sendo expressão de um dos ramos mais importantes do Direito Privado, qual seja, o Direito das Obrigações, constitui-se em um arcabouço normativo que permite a análise e o entendimento do contrato como instrumento de formalização de direitos e deveres, concretizando sua função de permitir a mobilização de riquezas, visando preencher a vontade das disposições constitucionais a respeito da ordem econômica que consagram princípios como a função social da propriedade e a defesa do consumidor, dentre outros elencados no art. 170 da Constituição Federal, consubstanciando o mister de garantir existência digna a todos.
É fundamental entender o contrato como um instrumento de dúplice natureza jurídica: pertence ao Direito Privado, por extrair das relações obrigacionais a sua existência enquanto instituto jurídico, e, por outro lado, pertence também ao Direito Público, ensejando a interpretação contemporânea do contrato como instrumento de mobilização de riquezas, amparado nos ditames da ordem econômica.
O Estado brasileiro está inserido dentro do sistema capitalista, embora sua ordem jurídica tenha privilegiado valores de uma democracia social. A conseqüência jurídica desse arranjo no âmbito do Direito dos contratos, conforme enfatiza Flavio Tartuce (2007, p.43), é que
Não se pode mais analisar o contrato como simples instituto regulatório dos interesses das partes contratantes, já que nele consta o interesse da manutenção desse modelo, perpetuado pelo tempo e pela sua complexidade.
Uma melhor compreensão do tema sugere a abordagem do Direito Contratual e a sua nova interpretação, de acordo com valores de justiça social.
3.1. O Contrato e o Código Civil de 2002
Como fora colocado, a Carta Constitucional de 1988 trouxe uma nova configuração para diversos institutos jurídicos. No que tange ao contrato, tais alterações repercutem na essência do instituto, visto que, a própria maneira de se pensar o Direito fora modificada, passando a noção de justiça social a fazer parte do espírito das regras fundamentais de organização do Estado e, por conseguinte, da normatização das relações entre as pessoas.
A ruptura com o pensamento liberal transformou ontologicamente a estrutura de tradicionais institutos do Direito Privado, sendo inafastável a necessidade de elaborar uma nova abordagem dos princípios que os fundamentam.
Por óbvio, o contrato, que figurava como alicerce consagrador de princípios tipicamente liberais, a exemplo da autonomia da vontade, da força obrigatória dos pactos, dentre outros, teve de ser repensado.
Vertendo para o ordenamento infraconstitucional a tendência de adequação dos valores de justiça social para as normas jurídicas, o Código Civil de 2002 introduziu, na seara das relações privadas, essa nova concepção social de institutos que se desvinculam da noção liberal do pensamento jurídico que, até então, permeava o Direito Civil.
A mudança foi, inclusive, além dos liames principiológicos e, pode ser observada através de regras positivadas no código, a exemplo do artigo 421 que alude à necessária observância da função social dos contratos como parâmetro necessário para se exercitar a liberdade de contratar.
Ensina Wladimir Alcibíades Cunha (2007, p.72),
a nova concepção social dos contratos requer a presença dos princípios sociais dos contratos, nomeadamente o princípio da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da equivalência material das prestações contratuais, diversos dos princípios liberais clássicos da liberdade contratual, da força obrigatória e da relatividade endógena dos efeitos do contrato, todos derivados da autonomia da vontade.
E ainda,
há de se atentar que, em face do princípio da solidariedade social, estampado em seu art.3º, I, e em atenção à diretiva que determina que a ordem econômica tem por propósito assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, contida em seu art.170, a Constituição Federal de 1988 não é concordatária com a existência de contrato baseado tão-só na autonomia da vontade [10].
Pode-se concluir, portanto, pela mitigação dos princípios contratuais clássicos baseados na liberdade contratual e na autonomia da vontade. Não obstante, não se deve entender que tais princípios restem ultrapassados, ou, devam ser afastados da inteligência que se deve fazer ao se interpretar o contrato. Acontece é a necessidade de adaptação dos princípios liberais ao novo modelo consagrador do entendimento da concepção social dos contratos.
A vontade ainda persiste como elemento de maior importância para o instituto do contrato. De fato, a vontade livre e manifestada sem vícios é a base fundamental para qualquer negócio jurídico válido. Mas isso não deve ser entendido mais, como algo absoluto, ou seja, a pura manifestação livre e lícita da vontade não garante que as cláusulas contratuais estejam em conformidade com a nova linha principiológica adotada para informar o contrato, pois, é necessário também que as vontades sejam justas e privilegiem valores sociais.
Desse modo, princípios como o da função social do contrato, tomam corpo e importância dentro dessa nova abordagem, ilustrada, inclusive, em diversos dispositivos do novo Código Civil. Os contratos devem ser interpretados de acordo com a finalidade social em que são concebidos, buscando-se afastar prestações desiguais e onerosidade excessiva a qualquer das partes contratantes,
equilibrando a relação em que houver a preponderância da situação de um dos contratantes sobre a do outro. Valoriza-se a equidade, a razoabilidade, o bom senso, afastando-se o enriquecimento sem causa, ato unilateral vedado expressamente pela própria codificação emergente, nos seus arts. 884 a 886 [11].
A relativização do principio da autonomia da vontade frente aos novos parâmetros hermenêuticos de compreensão do contrato, está prevista inclusive, como orientação jurídica adotada, por exemplo, na consolidação do entendimento deste instituto prevista no Enunciado nº 23 aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho de Justiça Federal, cujo teor é o seguinte:
A função social do contrato, prevista no art.421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz a atuação desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana [12].
A função social do contrato também pode ser encarada como conseqüência, na ordem privada, do princípio da função social da propriedade, visto que, é decorrência lógica deste. Ora, se o contrato é um instrumento que serve para a mobilização de riquezas através da assunção mútua de direitos e obrigações entre as partes de determinado negócio jurídico, parece correto concluir que um dos fins sociais a que se destina é viabilizar juridicamente a transmissão da propriedade. Tal transação não pode descartar o fim social não apenas do contrato, quando este envolve a propriedade como seu objeto, mas também, a destinação social da propriedade, pois, esta é concebida em conformidade com a Constituição, desde que, desempenhe sua função social. Um contrato de compra e venda, verbi gratia, não pode abarcar disposições acerca de uma propriedade privada que esteja voltada para fins ilícitos, porque estaria contemplando um objeto, do mesmo modo ilícito, e seria, portanto, um ajuste maculado por uma função anti-social. É o que constata Wladimir Alcibíades Cunha (2007, p.82):
Deve-se ter em mente que não haveria qualquer sentido em a Constituição Federal atribuir função social à propriedade e não fazê-lo ao meio de aquisição da propriedade, ao meio de circulação das riquezas.
Concluindo a abordagem sobre a noção que se deve ter a respeito do princípio da função social do contrato na nova roupagem dada a ordem jurídica privada tanto pela Constituição, quanto pelo Código Civil, é válido citar a lição de Fernando Noronha:
Com relação aos contratos, o interesse fundamental da questão da função social das obrigações está em mostrar que a liberdade contratual (ou, mais amplamente, a autonomia privada), não se justifica, e deve cessar, quando afetar valores maiores da sociedade, supracontratuais, e, além disso e agora no âmbito estritamente contratual, também deve sofrer restrições quando conduzir a graves desequilíbrios entre os direitos e obrigações das partes, que sejam atentatórios de valores de justiça, que também têm peso social. É isto que se pretende significar quando se diz que nos contratos o interesse do credor tem de ser legítimo, para ser digno de tutela jurídica [13]
Ao lado da função social do contrato, o princípio da boa-fé objetiva vem previsto no art.422 do Código Civil e constitui o segundo parâmetro de exegese obrigatória ao se interpretar contratos. O código exige das partes contratantes que se observe, tanto na conclusão, quanto na execução dos contratos, os princípios da probidade e boa-fé.
GONÇALVES (2006, p.35) assim descreve o princípio em comento:
a boa-fé que constitui inovação do Código de 2002 e acarretou profunda alteração no direito obrigacional clássico é a objetiva, que se constitui em uma norma jurídica fundada em um princípio geral do Direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas. Classifica-se assim, como regra de conduta.
A boa-fé objetiva é paradigma que aduz a um comportamento material atribuído às partes de um contrato que devem prezar pela lealdade de proceder em relação às obrigações que assumem, ao comportamento probo para com a outra parte e à idoneidade de conduta para o fiel cumprimento legal e justo das disposições contratuais.
É também cláusula geral que concorre para atribuir eficácia e legitimidade ao contrato, bem como, conferir-lhe a pecha de antijuridicidade, caso não seja observada.
A boa-fé objetiva, portanto, além de cânone interpretativo-integrativo, funciona como norma limitadora ao exercício de direitos subjetivos e como norma de comportamento nos contratos tendentes à criação de deveres jurídicos. Além disso, traz consigo deveres anexos a serem observados pelos contratantes, quais sejam: a) dever de proteção ou de cuidado, cujo conteúdo se volta para a proteção e preservação da integridade física, moral, pessoal, bem como, à integridade patrimonial do co-contratante; b) o dever de informação ou de prestar esclarecimentos, estampado inclusive em diversas passagens do CDC [14]; e c) o dever de cooperação, no sentido de manter fiel colaboração com a outra parte para a execução do contrato, conforme o paradigma da lealdade.
"A não observância desses deveres anexos deverá importar, em termos de dogmática obrigacional, em inadimplemento, ainda que parcial, do contrato" [15].
Para ilustrar o entendimento supra, cite-se o Enunciado nº 24, emitido na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:
Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa [16].
Para a perfeita compreensão da nova modelagem trazida pela concepção social dos contratos à interpretação das relações jurídicas privadas é necessária a análise de outro princípio que surge como decorrência lógica da interação entre a função social do contrato e a boa-fé objetiva: é o princípio da equivalência material das prestações contratuais.
A correlação entre o princípio da função social e o da equivalência material pressupõe a observância de duplo aspecto: externamente, exige-se o respeito a interesses coletivos eventualmente associados ao contrato, visto que, de outro modo, a função social estaria prejudicada caso se permitisse o abuso de direitos subjetivos em nome do respeito às clausulas avençadas, e, internamente, no âmbito do contrato, a troca econômica deverá se realizar de forma justa e equilibrada.
O princípio da equivalência material das prestações contratuais ganha especial relevo para o objeto deste trabalho, pois, ele supõe o reconhecimento da posição de vulnerabilidade da parte contratual mais combalida economicamente, em prol de um ajuste onde haja perfeito equilíbrio entre o que se assume como obrigação e o que se aufere como vantagem ou direito.
Acrescenta Paulo Luiz Netto Lôbo (2002, p.18 apud CUNHA, 2007, p. 99):
O princípio da equivalência material busca preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após a sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes (...).
Como pôde ser observado, os aspectos apresentados neste tópico convergem para uma teoria contratual que privilegia o entendimento acerca de um instituto modificado e assentado num Direito Privado também modificado para atender os liames constitucionais que confabulam uma ordem jurídica mais justa e cercada por valores onde o que se pretende é atender, cada vez mais, interesses gerais, privilegiando a coletividade e, portanto, as noções de bem comum e justiça social.
Nesse espectro, é fundamental o enquadramento das relações de consumo como sendo também amparadas por essa nova concepção social. Os contratos bancários de fornecimento de crédito não escapam desse modelo e, apesar de se situarem no âmbito do Direito do Consumidor, é indubitável que os novos princípios aqui tratados a eles se aplicam com inteireza.
3.2. O Contrato de Consumo e sua Relação com a Lei 8.078/90
Como dito, o contrato é o principal instrumento jurídico utilizado no ato de concessão do crédito. É também, o mais importante instituto do Direito Privado. Portanto, para justificar uma normatização correta e justa das relações de consumo do crédito, faz-se mister que se entenda o novo paradigma que deve ser adotado pela ciência jurídica quando interpretar os contratos, visando uma concepção atual do novo Direito Privado que refaz o seu pano de fundo, deixando de lado as premissas liberais que inauguraram a sua existência moderna, para vestir a roupagem do Estado social, como nova diretriz de sua atuação no sentido de, mesmo no campo da autonomia da vontade, garantir a realização de valores superiores como a justiça social. HABERMAS (1992, p.120) ilustra essa idéia: "Certamente o direito privado passa por uma reinterpretação, quando da mudança de paradigma do direito formal burguês, para o direito materializado do Estado social".
Reforçando e complementando as disposições constitucionais, vem à tona, no ano de 1990, a lei 8.078, nomeada Código Brasileiro de Defesa do Consumidor - CDC. Tal norma ficou consagrada como um microssistema jurídico dotado de uma força principiológica que tem o mérito de solidificar o entendimento dessa nova configuração social do Estado. É que o CDC incorpora regras e princípios orientadores de uma vontade legislativa que amplia o modo social de atuar do Direito, pautado especificamente na defesa do consumidor, e revela a intenção de privilegiar a parte hipossuficiente da relação econômica de consumo.
Em que pese se tratar de norma de ordem pública e de interesse social [17] recai seu regramento sobre as relações privadas de consumo e, portanto, sua devida inclusão como tema deste capítulo. Mudanças significativas foram trazidas pelo Código.
Passou-se a tratar como presunção absoluta a vulnerabilidade do consumidor [18], relacionar a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico [19], além de garantir ao consumidor direitos básicos como a educação e divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços, proteção contra publicidade enganosa e abusiva, possibilidade de modificação de cláusulas abusivas, além de outros dispositivos protetivos constantes do art. 6º.
Além da vulnerabilidade, a hipossuficiência contratual constitui um plus, um algo a mais, que traz mais um benefício ao consumidor: a possibilidade de pleitear, no campo judicial, a inversão do ônus da prova, conforme prevê o art.6º, VIII, da Lei 8.078/90 [20].
Ademais, a lei consumerista incorporou todo um capítulo destinado à proteção contratual auferida ao consumidor. Trata-se do capítulo VI, cujas disposições possuem o forte caráter teleológico de outorgar ao instituto do contrato uma feição de instrumento que funcione como materializador de disposições justas e pautadas na boa-fé objetiva.
MARQUES, BENJAMIN E MIRAGEM (2006, p.125), defendem que a "boa-fé é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais". Tal princípio aparece com contornos bem definidos nas disposições do capítulo referido. Por ele, exige-se no contrato de consumo o máximo de respeito e colaboração entre as partes, devendo aquele que atua com má-fé ser penalizado por uma interpretação a contrario sensu, ou por sanções que estão previstas no próprio código.
No tocante ao objeto de estudo deste trabalho, a relação de consumo de crédito passou a ser especificamente albergada como hipótese de incidência das normas consumeristas, por força da disposição do parágrafo 2º, art. 3º, cuja transcrição literal se faz necessária:
Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
O foco protecionista do código referente ao consumo do crédito abriu margens ao entendimento dos Tribunais Superiores acerca da sua incidência sobre as instituições financeiras. O Superior Tribunal de Justiça, desde a edição da Súmula 297 [21] e o Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2591/DF [22], entendem aplicável o CDC aos bancos.
Mas o aspecto de maior relevo para este estudo diz respeito à previsão legal de combate às cláusulas abusivas nos contratos de consumo. O código reservou toda uma seção para dispor, mediante um bem construído sistema de nulidades e um rol meramente exemplificativo de tais cláusulas, a respeito deste intrincado aspecto contratual: a elaboração de cláusulas que visam fazer prevalecer, em favor das instituições financeiras, situações que configuram abuso envolvendo práticas bancárias de fornecimento de crédito, objetivando um lucro desmedido e arbitrário.
A relação entre os contratos bancários e as cláusulas abusivas será tratada com mais detalhes no próximo capítulo; por ora, vale apenas ressaltar este festejado aspecto da lei consumerista: elencar em seu regramento a possibilidade de, inclusive, pleitear o pronunciamento judicial pela nulidade das cláusulas consideradas abusivas, privilegiando os princípios da boa-fé objetiva, da vulnerabilidade do consumidor e da equivalência material das prestações contratuais.
Cite-se, nesse viés, o entendimento de Wladimir Alcibíades Cunha (2007, p.100) acerca da relação entre a equivalência material e a revisão judicial:
associando equivalência material e revisão contratual, o art. 6º, inciso IV, prevê, como um dos direitos básicos do consumidor, a proteção contra clausulas e práticas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços. De igual modo, o inciso V do mesmo artigo, por sua vez, elenca a possibilidade de modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
É inevitável, portanto, a intelecção de que a relação econômica de consumo de crédito, estampada nos contratos bancários de fornecimento de crédito, adquire a feição jurídica de relação de consumo, sendo abarcada pela aplicação da lei consumerista. Também, é forçoso concluir que os princípios contratuais supra analisados, mesmo que pertencentes a um ramo jurídico diverso do Direito do Consumidor, devem ser observados por sua íntima ligação com o instituto do contrato, independente do tipo de relação que este formalize.
Para materializar essa comunicação axiológica que une os diversos princípios informadores do contrato, será utilizada a teoria do diálogo das fontes, do alemão Erik Jayme.
Por derradeiro, frise-se que a adoção de sistemas de proteção jurídica do consumidor, fundados no reconhecimento de seus direitos fundamentais e em mecanismos instrumentais adequados para fazê-los valer, constitui a base para a consecução da justiça contratual e, por conseguinte, do respeito à dignidade do ser humano enquanto busca o acesso ao consumo para a satisfação de suas necessidades vitais.
3.3. A Teoria do Diálogo das Fontes
A idéia de constitucionalização do Direito Privado ganhou força com a promulgação da atual Carta Magna e lançou bases para que se repensasse o Direito como um todo. De fato, a tendência de alargamento dos princípios de maior conotação social para uma atuação mais efetiva nas relações sociais, sejam ou não jurídicas, proporciona uma conexão axiológica entre as várias manifestações de institutos jurídicos que vigem para trazer maior conformidade legal e justiça social para as pessoas.
Respeitante ao contrato, tal conexão com vistas a uma atuação social deste instituto pode ser flagrantemente sentida ao se analisar os princípios contratuais sobre a perspectiva de sua incidência: ora incide nas relações privadas comuns, ora nas relações de consumo.
O contrato é, portanto, uma via de comunicação formal que materializa relações jurídicas abrangidas por princípios sociais inerentes a ramos jurídicos diversos.
A concepção de que é possível a interação de tais princípios vem definida pela teoria do diálogo das fontes de Erik Jayme, trazida para o Brasil pela professora Claudia Lima Marques.
O fundamento filosófico para a utilização da teoria vem assim resumido pela docente gaúcha (MARQUES, 2006, p.39):
Segundo Erik Jayme, as características da cultura pós-moderna no direito seriam o pluralismo, a comunicação, a narração, o que Jayme denomina de "le retour des sentiments", sendo o Leitmotiv da pós-modernidade a valorização dos direitos humanos. Para Jayme, o direito como parte da cultura dos povos muda com a crise da pós-modernidade. O pluralismo manifesta-se na multiplicidade de fontes legislativas a regular o mesmo fato, com a descodificação ou a implosão dos sistemas genéricos normativos, manifesta-se no pluralismo de sujeitos a proteger, por vezes difusos, como o grupo de consumidores ou os que se beneficiam da proteção do meio ambiente, na pluralidade de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas. Pluralismo também na filosofia aceita atualmente, onde o diálogo é que legitima o consenso, onde os valores e princípios têm sempre uma dupla função, o "double coding", e onde os valores são muitas vezes antinômicos.
O Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 sustentam uma fonte de comunicação principiológica que aproxima as duas normas, quando se trata da teoria contratual.
Existe um caráter de complementaridade entre ambos, no que concerne aos contratos. É necessário elencar algumas premissas [23] para o entendimento do diálogo entre as normas com vistas à proteção jurídica do consumidor.
A primeira premissa diz respeito à impossibilidade do diálogo das fontes trazer para o consumidor uma situação de desvantagem em relação a um caso em que o CDC fosse aplicado isoladamente.
A segunda premissa versa sobre o caráter de norma de ordem pública e de interesse social próprio do CDC e alerta que o Código Civil atual também possui normas de ordem pública, mormente aquelas que mantêm relação com o princípio da função social dos contratos.
A terceira premissa lembra os metacritérios comuns para a solução de antinomias que porventura possam existir, quais sejam: o critério da hierarquia, o critério da especialidade e o critério cronológico.
A quarta e última premissa destaca que não se deve olvidar da aplicação dos princípios constitucionais, principalmente, aqueles que visam à proteção da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade social.
Flavio Tartuce (2007, p.88) traz um exemplo bastante prático e ilustrativo do diálogo das fontes numa aplicação interativa do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil. Litteris:
Podemos imaginar a possibilidade de se aplicar tanto o Código Civil quanto o Código de Defesa do Consumidor na formação de um negócio jurídico patrimonial. Imaginemos o caso de uma compra de bem de consumo realizada pela Internet. Ora, para esse caso serão aplicadas tanto as regras previstas para formação do contrato constantes do Código Civil (arts. 426 a 435) quanto as regras prevista para a oferta constantes do Código de Defesa do Consumidor (arts. 30 a 38).
Existe inclusive orientação do Conselho da Justiça Federal prevendo a aplicação do diálogo normativo entre os dois códigos. Tal orientação vem no texto do Enunciado nº 167 elaborado na III Jornada de Direito Civil:
Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos [24].
O que se pretende com a aplicação interativa das disposições dos dois Códigos a respeito dos contratos é oferecer ao consumidor uma maior proteção jurídica contra práticas e cláusulas abusivas.
A teoria contratual fica, portanto, fortalecida no que concerne ao seu intuito protetivo da parte economicamente mais vulnerável.
A análise que segue investigará de que forma o instituto do contrato vem sendo utilizado pelas instituições financeiras que se utilizam de cláusulas abusivas no cerne dos pactos de fornecimento de crédito com o escopo de auferir lucros desmedidos, ferindo, desse modo, a corrente principiologia informadora da atual teoria social dos contratos.