3. GARANTISMO E ACESSO À JUSTIÇA
Após a conceituação acerca dos direitos humanos e da cidadania, passa-se a explanar sobre o garantismo e o acesso à justiça.
Se em um primeiro momento a abordagem deu-se em torno de elementos de direito material, agora fala-se em instrumentos do direito processual, apontando-se a federalização dos crimes contra os direitos humanos como ferramenta de acesso ao Poder Judiciário e de tutela dos direitos fundamentais.
Não basta apenas o reconhecimento da existência de direitos inerentes aos ser humano, há que garantir-se efetivamente a inviolabilidade dos mesmos e, em caso de transgressões, a efetiva punição daqueles que a perpetraram.
É o que defendem Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2003, p. 87), ao afirmarem que enquanto os direitos teriam por nota de destaque o caráter declaratório ou enunciativo, as garantias estariam marcadas pelo caráter instrumental, vale dizer, seriam os meios voltados para a obtenção ou reparação dos direitos violados.
3.1. Efetivação das Garantias Fundamentais
Para Alvaro Stipp (2006), a concepção de garantismo está intimamente ligada ao conceito de Estado de Direito, pois, também se destina a limitar e evitar a arbitrariedade do poder estatal.
O garantismo é um sistema sócio-cultural que estabelece instrumentos jurídicos para a defesa dos direitos e conseqüente defesa do acesso aos bens essenciais à vida dos indivíduos ou de coletividades, que conflitem com interesses de outros indivíduos, outras coletividades e/ou, sobre tudo, com interesses do Estado. Esses instrumentos jurídicos são as garantias, as armas jurídicas que visam proteger os cidadãos que abrem mão de parcela de sua autonomia em benefício da coletividade, entregando ao Estado o poder para que ele lhes propicie segurança, saúde, trabalho, etc.. Para estar seguro da realização desse desiderato por parte do Estado, as constituições do Estado de Direito prevêem instrumentos jurídicos expressos em limites, vínculos e obrigações impostos ao poder estatal, a fim de maximizar a realização dos direitos e minimizar suas ameaças.
Ensina Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 239) que os direitos individuais tornar-se-iam letra morta se não fossem acompanhados de ações judiciais que pudessem conferir-lhes uma eficácia compatível com a própria relevância dos direitos assegurados.
Pode-se citar como exemplos de garantias fundamentais contidas no artigo 5º da Constituição o habeas corpus, o habeas data, o mandado de segurança (individual e coletivo), o mandado de injunção, a ação popular.
Não se devem confundir, no entanto, garantias fundamentais com remédios constitucionais. Não existe sinonímia entra as expressões. O que existe entre elas é uma relação de continência, pois as garantias abrangem não só os remédios constitucionais (habeas corpus, p. ex.) como as demais disposições assecuratórias da nossa lei fundamental. (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, p. 87)
Lastreado em tal entendimento, passa-se a ter mais uma garantia constitucional após a positivação do incidente de deslocamento de competência. Mesmo tendo o legislador constituinte derivado inserido-o fora do Título II da Constituição, o conteúdo do IDC é eminentemente o de uma ação garantidora dos direitos humanos, haja vista que a razão principal da mudança do foro de competência da justiça estadual para a federal é o asseguramento da persecução penal isenta e efetiva.
Não que uma esfera de competência seja mais capaz que a outra, porém, os organismos internacionais apontam muitas vezes a proximidade existente entre os violadores de direitos humanos e os responsáveis pela persecução criminal como fator principal de impunidade. É o que sustenta Fábio Konder Comparato (apud BONSAGLIA, 2006):
Nos últimos anos, vários organismos internacionais têm acusado o nosso País de negligência na apuração de responsabilidades em atos de grave violação de direitos humanos. O Governo da União, que representa o Brasil na esfera internacional, encontra-se freqüentemente em situação embaraçosa para responder a tais acusações, pelo fato de que a competência para a apuração dos crimes e o julgamento dos acusados, na quase totalidade dos casos, entra no âmbito da competência dos Estados federados. Acresce notar que esse desrespeito aos direitos humanos provém, com não rara freqüência, de atos ou omissões das próprias corporações da Polícia estadual, que são, em seguida, convocadas a exercer a tarefa de apuração de responsabilidades.
É possível resolver esse problema no quadro do vigente direito constitucional, ou, para alcançar-se a desejada solução, será necessário pensar numa reforma da organização federal de competências, nessa matéria? (...)
Ora, a organização federal do Estado é decidida, soberanamente, por cada País. Nenhum Estado federal, acusado de descumprir deveres jurídicos assumidos no plano internacional, pode, legitimamente, defender-se invocando o fato de que a alegada violação foi provocada por ato de Governo estadual ou municipal, e que o Governo da União, que representa o País no seio da commitas gentium, não tem competência constitucional para interferir na esfera de poderes reservada a outras unidades da federação. (...)Daí a manifesta conveniência de se incluir a apuração e julgamento desses crimes na esfera de competência federal. (...) .
A busca por uma maior isenção na investigação e no julgamento de crimes graves é uma garantia aos direitos humanos e não pode ser tratada por membros dos ministérios públicos estaduais, pelos integrantes das policiais civis e pelos magistrados estaduais como um desprestígio.
O corporativismo deve ceder lugar a uma visão realista das limitações instrumentais de muitos entes da federação, bem como, a visão progressista do direito, principalmente do direito internacional dos direitos humanos, deve quebrar velhos paradigmas calcados na processualística do século passado.
Não se haverá de cogitar-se aí de uma capitis diminutio dos judiciários locais ou dos Ministérios Públicos estaduais, os quais, principalmente em algumas unidades da Federação, apresentam um invejável nível de capacitação técnica e de organização. Todavia, em grande número de Estados, o que se verifica de fato é uma grande dificuldade por parte das autoridades locais em fazer valer mesmo os direitos humanos mais elementares. (BONSAGLIA, 2006)
Diante desse quadro, o Procurador da República Mário Luiz Bonsaglia (2006) reconhece também as imperfeições da Justiça Federal. Aponta, porém, uma significativa vantagem a ser destacada: o distanciamento institucional dos fatores locais de poder.
Exemplo mais notável de como a produção de provas para o processo pode ser comprometida por tais fatores de poder é o caso do massacre do detentos do Carandiru, em São Paulo. Mesmo tratando-se do estado-membro com amplos recursos, interesses escusos permitiram que ingerências prejudicassem as investigações.
A própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos destacou no Relatório nº 34/00 - Caso 11.291 (Carandiru) - Brasil (2006):
A Comissão conclui que diferentes organismos do Estado de São Paulo e do Governo do Brasil realizaram investigações sobre os fatos. Embora todas elas tenham sido prejudicadas pelas atividades de encobrimento e destruição de provas, desenvolvidas pela Polícia Militar paulista e anteriormente descritas, torna-se evidente o contraste entre as realizadas pelos organismos do Estado de São Paulo, que tendem a minimizar e justificar as autoridades estaduais civis e militares e eximi-las de responsabilidade, e as efetuadas pelo Governo do Brasil, que chegam à conclusão, com base em provas, de que houve um massacre de prisioneiros e violações graves e sistemáticas por parte das autoridades policiais estaduais.
Nota-se a distinção manifesta entre o modo de agir dos órgãos estaduais, altamente contaminados por uma miríade de interesses, e a conduta dos órgãos federais – Conselho para a Defesa dos Direitos Humanos (órgão consultivo do Ministério da Justiça) e Conselho para Políticas sobre Crimes e Prisões –, que buscavam a verdade real sobre as violações perpretadas contra os direitos humanos.
Importante observar que já àquela época a CIDH apontava a inexistência no ordenamento nacional de mecanismos que permitissem a atuação dos órgãos federais como titulares da investigações e competentes para o julgamento do massacre, que violou direitos resguardados em tratados internacionais aos quais a República Federativa do Brasil se comprometera a cumprir.
A Comissão conclui também neste caso que não há, ou não funcionaram, na República do Brasil mecanismos eficazes do Governo nacional para obrigar as autoridades federais a atuar, no que tange a direitos humanos, de maneira coerente com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado nacional, ou para estabelecer, por meios federais, outros mecanismos de prevenção, ação e reparação que compensem tais deficiências estaduais. (OEA, 2006).
Também não passou ao largo dos problemas relacionados à condução do processo no Poder Judiciário Estadual e ao julgamento final dos acusados.
A Comissão conclui que os diferentes processos judiciais tramitados na justiça militar e na justiça comum paulista sofreram numerosos atrasos e adiamentos injustificáveis, deixaram de estabelecer a verdade dos fatos e as responsabilidades coletivas e individuais e não impuseram indenizações adequadas às vítimas e seus familiares. Conclui também que, apesar da já analisada destruição de provas pela Polícia Militar, havia outros meios de provar que teriam permitido uma investigação séria e profissional, e que não foram devidamente utilizados pela Promotoria e pelos magistrados competentes, o que contribuiu para a impunidade resultante. (OEA, 2006).
Outro caso paradigmático de violação de direitos humanos onde observou-se a interferência do poder local no curso da investigações foi o massacre de Eldorado dos Carajás. Assim manifestou-se a CIDH (2003):
A Comissão conclui que, embora não tenham sido esgotados todos os recursos da jurisdição interna, aplica-se a este caso a mencionada exceção de inexistência no direito interno do devido processo judicial para investigar e julgar as violações dos direitos humanos, prevista no artigo 46.2(a), da Convenção Americana.
Como se verá adiante, o esgotamento dos recursos internos é pressuposto para a provocação dos organismos supranacionais. Entretanto, no caso do massacre dos trabalhadores sem terra, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu o caso pelo seguinte motivo:
O requisito do esgotamento prévio dos recursos internos se relaciona com a possibilidade que tem o Estado de investigar e punir as violações de direitos humanos cometidas por seus agentes, por intermédio de seus órgãos judiciais internos, antes de se ver exposto a um processo internacional. Ele pressupõe, no entanto, que exista no nível interno o devido processo judicial para investigar essas violações e que essa investigação seja eficaz, pois do contrário a Comissão Interamericana, em conformidade com o artigo 46.2(a), da Convenção, pode conhecer do caso antes de esgotados os recursos internos.
Um dos pressupostos essenciais do devido processo é a independência, autonomia e imparcialidade dos órgãos nacionais encarregados tanto de investigar como de punir as supostas violações dos direitos humanos.
A esse respeito, a Comissão considera que a Polícia Militar não goza da independência e da autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações dos direitos humanos presumivelmente cometidas por policiais militares.
A mesma polícia que perpretou a grave violação de direitos humanos não pode ser a encarregada da colheita de provas. Não há qualquer garantia de efetiva tutela de tais direitos em casos como esse.
Com o advento do incidente de deslocamento de competência, tais questões ganharam um novo mecanismo de resolução. A transferência para a esfera federal da competência para investigar, processar e julgar crimes graves, passam a efetivar uma garantia aos direitos humanos.
3.2. Acesso ao Poder Judiciário
O acesso amplo ao judiciário é um dos sustentáculos do Estado de Direito, comportando tanto a idéia de que toda lesão de direito pode ser levada ao conhecimento do Poder Judiciário quanto a de que a toda decisão definitiva sobre uma controvérsia jurídica só pode ser exercida por tal poder. (BASTOS, 2001, p. 221).
Estabelece o inciso XXXV do artigo 5º de nossa Constituição que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Isto significa que lei alguma poderá auto-excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ela seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação. (BASTOS, 2001, p. 222)
Nossa carta maior, no inciso XXXIV do artigo 5º, também assegura à todos, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder. Para José Afonso da Silva, a origem de tal direito nasceu na Inglaterra durante a Idade Média.
É o right of petition que resultou das Revoluções inglesas de 1628, especialmente, mas que já se havia insinuado na própria Magna Carta de 1215. Consolidou-se com a Revolução de 1689 com a declaração do direitos (Bill of rigths). Consistia, inicialmente, em simples direito de o Grande Conselho do Reino, depois o Parlamento, pedir ao Rei sanção das leis. Não foi, porém, previsto na Declaração francesa de 1789. Veio a constar, enfim, das Constituições francesas de 1791 (§ 3º do título I: La liberté dádresser aux constituées des pétitions signées individuellment) e de 1793 (Declaração de Direitos, art. 32: Le droit de présenter des pétitions aus dépositaires de l’autorité publique de peut, en aucun cas, être interdit, suspendu ni limité). (apud FIGUEIREDO E SILVA, 2003, p. 31)
Figueiredo e Silva (2003, p. 32) sustenta tratar-se de um direito político que pode ser exercido individual ou coletivamente, dirigindo-se à defesa tanto de direitos pessoais como da própria Constituição, das leis ou do interesse geral.
Como já explanado anteriormente, a competência para propositura do IDC ao Superior Tribunal de Justiça é privativa do Procurador-Geral da República. Assim sendo, o direito de petição garantido aos cidadãos brasileiros neste caso deve ser exercido perante à Procuradoria Geral da República.
O cidadão não pode invocar diretamente em juízo a federalização de uma investigação ou de um processo, devendo peticionar àquele que tem o múnus público para tanto. Isto representa um caminho indireto de acesso ao poder judiciário e, diferentemente da forma que se dá na via sedimentada de nossa processualística, não deve sofrer qualquer restrição.
Pode ser feita por petição oral, escrita, enviada por meio postal, eletrônico ou via fac-símile, sem a participação de advogado, sem a necessidade de qualquer forma e sem custos. A secretaria da PGR se encarregará de autuar o pedido e encaminhar ao Procurador-Geral da República.
Este verificará a existência ou não de verossimilhança nos fatos narrados. Em caso positivo, instaurará um procedimento administrativo onde se colherá as informações necessárias à formação de seu convencimento quanto à necessidade e a adequação do deslocamento de competência.
3.3. A Responsabilidade da União
A República Federativa do Brasil, na pessoa jurídica de direito público externo da União, é responsável internacionalmente pelas obrigações assumidas ao ratificar instrumentos supranacionais (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 56).
Dessa forma, mesmo quando uma violação aos direitos humanos - constantes em tratados - for perpetrada na esfera estadual, distrital ou municipal, é o Estado brasileiro que responderá perante os organismos internacionais.
A responsabilidade internacional é imputada ao Estado quando este não utilizou todos os meios à sua disposição para sanar e reparar uma violação aos direitos humanos ocorrida em seu território. A utilização de todos os meios disponíveis implica numa obrigação de executar de forma diligente e sem dilações as atividades específicas que permitam aos indivíduos o gozo de seus direitos. (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 58)
Diante deste quadro, nada mais sensato que possibilitar a transferência para a competência federal de casos onde hajam graves violações aos direitos humanos, pois, caberá à União as reparações às vítimas em caso de omissão dos outros entes federados.
3.3.1. O Esgotamento dos Recursos Internos
A proteção dos direitos básicos da pessoa humana, para Cançado Trindade (1991, p. 4), não se esgota e nem poderia esgotar-se na atuação do Estado. A competência nacional exclusiva, segundo o internacionalista, afigura-se como um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de soberania, que é inteiramente inadequada no plano das relações internacionais,
porquanto originalmente concebida, tendo em mente o Estado in abstracto (e não em suas relações com outros Estados), e como expressão de um poder interno, de uma supremacia própria de um ordenamento de subordinação, claramente distinto do ordenamento internacional, de coordenação e cooperação, em que todos os Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais. (TRINDADE, 1991, p. 4)
Superou-se a idéia de jurisdição nacional exclusiva, reafirmando-se que tais direitos protegidos são inerentes à pessoa humana e não derivam do Estado (TRINDADE, 1991, p. 7).
Atualmente, os brasileiros possuem acesso direto aos organismos internacionais, como o Tribunal Penal Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, todavia, é imperioso que todos os recursos cabíveis no ordenamento jurídico pátrio sejam invocados antecipadamente. Exceção há apenas quando trata-se de direitos humanos, onde existe uma flexibilidade na regra.
Para tais casos, o esgotamento dos recursos internos pode ser relativizado. Citando uma decisão da Corte Européia de Direitos Humanos, Cançado Trindade (1997, p. 251) afirma que a regra do esgotamento não é absoluta e não deve ser de aplicada automaticamente, havendo necessidade de se observar as circunstâncias particulares de cada caso concreto. Segundo ele, deve-se
levar realisticamente em conta não só a existência formal de recursos no ordenamento jurídico interno do Estado em questão, mas também o "contexto geral jurídico e político" em que tais recursos operam e as "circunstâncias pessoais" dos demandantes. (TRINDADE, 1997, p. 251).
No sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, têm-se a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. A Comissão é uma entidade autônoma da OEA, com funções de caráter político diplomático – promocional, consultivo e de proteção dos direitos humanos –, além de atribuições jurisdicionais quanto ao recebimento dos casos individuais de violações de direitos (GALLI; DULITZKY, 2000, p. 61).
O Brasil já foi diversas vezes submetido ao constrangimento internacional público de ter imputado a sí violações de direitos humanos em casos analisados pela CIDH, como os já citados Massacre do Carandirú e Eldorado dos Carajás, por exemplo. Todavia, não há no âmbito da Comissão instrumentos que vão além da divulgação de um relatório anual condenando os Estados, fazendo recomendações para solução do problema denunciado e encaminhando casos para julgamento da Corte.
Este sim é um tribunal jurisdicional da OEA, com funções contenciosas, a cuja competência o Brasil se submete. No ano de 2006, deu-se a primeira condenação brasileira no âmbito do tribunal por violação aos direitos humanos, no caso conhecido como Damião Ximenes.
3.3.2. Caso Damião Ximenes
Em 1° de outubro de 2004, a CIDH submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso Damião Ximenes Lopes, que resultou na primeira condenação do Estado brasileiro no tribunal supranacional.
Damião foi internado em 1º de outubro de 1999 para receber tratamento psiquiátrico na Casa de Repouso Guararapes, centro de atendimento privado que operava no âmbito do sistema público de saúde do Brasil, no Município de Sobral, Estado do Ceará.
Damião era portador de deficiência mental e foi submetido a condições desumanas e degradantes de hospitalização, vitimado por golpes e ataques contra sua integridade pessoal por parte dos funcionários da instituição enquanto encontrava-se ali para tratamento, vindo a falecer após três dias de internação.
A Corte decidiu por unanimidade:
Admitir o reconhecimento parcial de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes (...)
Declarou, também por unanimidade, que:
O Estado violou, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, tal como o reconheceu, os direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 119 a 150 da presente Sentença.
O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, o direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 155 a 163 da presente Sentença.
O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 170 a 206 da presente Sentença.
Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251 dessa mesma Sentença.
E condenou o Estado Brasileiro :
O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelos fatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença.
O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII relativo aos fatos provados desta Sentença, sem as respectivas notas de pé de página, bem como sua parte resolutiva, nos termos do parágrafo 249 da presente Sentença.
O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença.
O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença.
O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e para os senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos parágrafos 237 a 239 da presente Sentença.
O Estado deve pagar em dinheiro, no prazo de um ano, a título de custas e gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a quantia fixada no parágrafo 253, a qual deverá ser entregue à senhora Albertina Viana Lopes, nos termos dos parágrafos 252 e 253 da presente Sentença.
Supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído este caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto nesta Sentença. No prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento.
O Juiz Sergio García Ramírez deu a conhecer à Corte seu Voto Fundamentado e o Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Separado, os que acompanham a presente Sentença.
Nota-se como mesmo tendo sido perpretado no âmbito do estado do Ceará, as sanções foram impostas à União. Casos como esse demonstram como o incidente de deslocamento de competência torna-se imprescindível para estabelecer-se um novo marco no tratamento das violações de direitos humanos no Brasil.