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Sociedade complexa, sistemas e criminalização secundária

Leia nesta página:

EMENTA: CRIME. FOMENTO CULTURAL. MUDANÇA DE PERSPECTIVA. NECESSIDADE.

1. O crime é um fenômeno social normal, sendo que o Direito tem importante função de contribuir para evitar a anomia.

2. A criminalização primária, que é exagerada, deságua na criminalização secundária, mormente diante do setor cultural, o qual é construido a partir de políticas públicas de cunho eminentemente financeiros.


1. INTRODUÇÃO

A base deste estudo é o comentário de um jornalista que pode ser visualizado em: http://www.youtube.com/watch?v=uwh3_tE_VG4. Nele há uma opinião de um âncora, [01] atribuindo o grande número de acidentes a uma série de causas, a saber: cultura do carro, fomento ao financiamento, frustração e falta de educação.

Houve um fomento do governo à divulgação da matéria jornalística, o que se torna evidente pela alta propagação do vídeo. Uma zeladora terceirizada que presta serviços junto à Fundação Universidade de Brasília (FUB), instituição de natureza autárquica, criada para gerir os recursos da Universidade de Brasília (UnB), enquanto limpava a sala da Procuradoria Federal junto à FUB, emitiu a opinião estigmatizada de que a matéria é preconceituosa, própria de uma elite que não admite ver os mais pobres sendo capazes de comprar carros.

Em uma iniciativa louvável, a Prof.ª Carolina Costa Ferreira, sob a batuta da Prof.ª Ela Wiecko de Castilho, implantou um curso de extensão junto à UnB, desenvolvido no âmbito do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM). Neste, a discussão sobre a matéria foi desencadeada.


2. UMA PRIMEIRA IMPRESSÃO PESSOAL SOBRE O ASSUNTO

Provocada, no GCCRIM, a discussão sobre o tema, em face de mensagem da minha autoria, foi exposto:

Vi o vídeo. A posição do repórter merece aprofundamento e, com a devida vênia, não me parece equivocada.

A minha história de extrema pobreza é pública. Aliás, disponibilizo-a na minha página eletrônica. Porém, ao contrário do que dizem, não vejo um discurso da elite em prol dela mesma, mas muitos aspectos que o pequeno espaço de "tempo" (este é apenas convenção, mas de extrema importância) não permitiu ser discutido na telinha.

A popularização do automóvel é uma desgraça alimentada pelas indústrias do automóvel, do pneu, das estradas (esta fundamentalmente íntima da corrupção e do sistema político) etc. Ao contrário, países efetivamente civilizados estão reduzindo seus carros e optando por transportes coletivos mais viáveis. Em tais países, a criminalidade violenta praticamente não existe.

Governos populistas, como temos no Brasil de hoje, apenas quebraram seus países (veja-se a Argentina de Perón e a Itália de Mussolini). O Brasil precisa modificar sua cultura, visto que muitos aspectos permeiam isso e a criminalidade. Com efeito, o crime é um fenômeno social que é fomentado por pífias sensações de "poder", por frustrações pessoais e do núcleo familiar etc. O que se dá em estruturas mal organizadas, pseudos democracias como a que aqui se instala.

Luhmann dizia, e isso é inquestionável, que uma sociedade, quanto mais plural, quanto mais diferenciada, mais apta estará para criar suas leis e estabelecer o seu Direito. Aqui, a cada dia se intensifica a ciminalidade primária, com maior seletividade na criminalidade secundária, ao lado de uma moderna política de pão e circo.

Já escrevi um texto (está no meu blog) em que afirmo que não pode ser bom ter pessoas sem condições mínimas de vida digna, mas classificadas como ocupantes da classe média porque tem geladeira, televisão, telefone móvel, jogo eletrônico e CARRO. Esse consumismo é pernicioso e a falsa expectativa marxista (de Marx não advém) em que todos podem ter bens eletrônicos e automóveis, sem preocupação com aspectos maiores, verbi gratia, educação, leva à criminalidade endêmica de delitos contra o patrimônio. A reação dos Juízes e membros do MP, que não são de classe alta, resulta no que podemos constatar: a maior quantidade de presos no sistema penitenciário brasileiro decorre de delitos contra o patrimônio.

A discussão do assunto foi dirigida para a área de pesquisa do grupo, que é a criminologia, embora entenda que ele passa por problemas ainda maiores. A própria criminologia, como resultante da fusão de diversos conhecimentos, já apresenta como espaço razoável para enfrentar a matéria. Ela pode ser assim conceituada: "A criminologia é a parte do conhecimento que se ocupa do fenômeno criminal, investigando-o a partir de seu autor, da vítima, do ambiente em que ele se concretiza, bem como do aparelho repressivo". [02]

É necessário certo cuidado com o conhecimento sistêmico, seja ele advindo de Luhmann, Habermas ou qualquer outro pensador, mormente quando se trata de pessoa voltada ao assunto jurídico-criminal, verbi gratia, Jakobs, Roxin etc. pois as teorias científicas, embora nem sempre estejam corretas, são mais seguras do que as não científicas. Com isso, deve-se afastar a atual perspectiva que se tem até mesmo sobre a criminologia.

Baratta foi um funcionalista e como tal foi sistêmico. Ele foi um dos maiores criminólogos da virada do Século XX para o Secúlo XXI. Foi um crítico do sistema punitivo estatal e ele próprio afirmou que "a criminologia morreu, vítima de sua própria crítica". [03] De qualquer modo, é a partir da perspectiva multidisciplinar que a criminologia se apresenta no GCCRIM e na maioria dos livros que, na atualidade, tratam na matéria.

Hoje, muito se fala em paradigmas, mas a visão acadêmica destes não é compatível com qualquer perspectiva não científica, razão de não mencionarmos a necessária mudança de paradigmas, mas de perspectivas.


3. CONSUMISMO, CRISE FINANCEIRA DO SÉCULO XXI E "CARRO"

É uníssona a voz acadêmica que propõe o freio ao consumismo exagerado, o qual marcou as últimas décadas do Século XX. O desenvolvimento sustentável é a proposta do momento. Então, culturas "emergentes" surgem como campo propício para as empresas despejarem seus produtos mal acabados, ainda que não sejam os melhores para o meio ambiente.

O Brasil se coloca entre os países de maiores concentrações de renda, portanto, maiores desigualdades sociais. Em tal ambiente é maior a possibilidade de iludir o povo. Até mesmo a educação é falseada por um sistema denominado REUNI, financiado por recursos internacionais, mas entregue ao povo como um grande ato de política governamental.

No engodo que se instala, dizer que "nunca antes na história desse país" houve situação tão boa para pobres e miseráveis é algo que toca o povo, que reelege Presidente da República e que torna possível a eleição de pessoa com histórico de terrorismo para sucedê-lo.

Bom mesmo, no Brasil de hoje, é dizer que a miséria diminuiu, que a classe média (com renda familiar de R$ 600,00 a R$ 2.000,00) cresceu significativamente e a inflação está sob controle. Isso me faz lembrar os tempos de criança em que os notórios "expurgos inflacionários" de Delfim Netto nos davam a idéia de um Brasil estável e promissor.

O real (moeda brasileira), que não é tão real, é sustentado, fundamentalmente, por uma política financeira nefasta. Em momento em que o crédito fácil trouxe uma crise maior do que a quebra da bolsa de Nova York, de 1.930, a grande onda de desgraças que assolaria o Brasil aqui foi tratada como "marolinha". A facilitação do crédito, o incentivo ao consumo interno e a atração de investimentos financeiros com a supervalorização do real se apresentaram como soluções falaciosas. Um oportunismo que precisa ser remediado, isso em face daquilo que uma mídia comprada está chamando de "subvalorização do dólar".

Um Presidente da República que declara publicamente não gostar de ler tem diversos convites para receber o prêmio de "doutor honoris causa". Isso é uma ofensa àqueles que muito se esforçaram para obter o grau de doutor, mas o povo quer apenas ver razões práticas em favor do operário bem sucedido. Nesse cenário, o âncora pecou terrivelmente ao falar contra a cultura do carro, imposta a quem nunca leu um livro.

Sem qualquer dúvida, a Presidente da República eleita tem íntima relação com os empreiteiros. Seu Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) inclui obras iniciadas na década de 1980, deixa de exigir prestação de contas em convênios (estes se transformam em simples termos de compromisso) e pouco traz em favor do transporte coletivo.

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4. CRIMINALIZAÇÃO: PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA

Criminalização primária é o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas, enquanto a criminalização secundária é a ação punitiva exercida in concreto sobre as pessoas. [04]

A criminalização primária é exagerada, atendendo aos mais diversos anseios advindos da sociedade complexa. Ela é simbólica e é marcada por discursos, os quais esbarram na possibilidade fática de implementação. Isso se dá a partir da estruturação dos envolvidos do sistema jurídico-criminal, o que se dá a partir da seleção dos que estão evolvidos nele. Nesse sentido:

Em outro nível, o sistema penal procura compartir essa mentalização ao segmento dos magistrados, Ministério Público e funcionários judiciais. Seleciona-se dentre as classes médias, não muito elevadas, e lhes cria expectativas e metas sociais da classe média alta que, enquanto as leva a não criar problemas no trabalho e a não inovar para não os ter, cria-lhes uma falsa sensação de poder, que os leva a identificar-se com a função (sua própria identidade resulta comprometida) e os isola até da linguagem dos setores criminalizados e fossilizados (pertencentes às classes mais humildes), de maneira a evitar qualquer comunicação que venha a sensibilizá-los demasiadamente com a sua dor. Este processo de condicionamento é o que denominamos burocratização do segmento judicial. [05]

É a partir de tais culturas que emerge a seletividade da criminalização secundária. Existem muitas condutas que podem ser classificadas como crimes. Então, algumas são eleitas para marcar esse pseudo sistema moral que supostamente o sistema jurídico-criminal defende.

Uma afirmação que é sempre oportuna é a de Evandro Lins e Silva, baseada em estudos franceses, no sentido de que quem mais pretende o rigor criminal deseja praticar crime. [06] Pode-se considerar exemplo típico a perseguição que é feita ao Deputado Federal eleito, um palhaço, Tiririca. O Membro do MP que o acusa já foi envolvido em plágio, [07] o que, em últimas palavras, constitui falsidade ideológica, uma vez que na violação de direito autoral o agente atribui a si trabalho de outro.

Certo de que é melhor desenvolver um Brasil culturalmente melhor, escrevo artigos jurídicos, livros e até me coloco na linha de fogo de muitos ataques de quem não pretende ver os assuntos cientificamente. Não é bom que o homem seja politicamente correto, mas que tenha a certeza de que a pesquisa e o conhecimento científico são capazes de melhorar o mundo. Isso falta ao povo brasileiro, o que se dá inclusive no âmbito acadêmico.


5. CONCLUSÃO

Este texto parte de uma matéria jornalística, a qual desaguou em discussão travada no âmbito de grupo de estudos científicos. Por isso foi contextualizado o assunto, inclusive com a indicação da localização eletrônica da matéria e a posição que apresentei, em mensagem eletrônica, sobre ela.

Procurando demonstrar que o conhecimento científico é mais seguro que o vulgar, perspectivas sistêmicas e de Direito Econômico foram apresentadas, mormente para minimizar a idéia de que o Brasil é a maravilha econômica que o governo e a mídia fazem o povo brasileiro transpirar.

Antes de admitir a perspectiva "plantada" de que a matéria jornalística foi preconceituosa, quis-se chamar a atenção para os diversos sistemas circundantes que pretender manter um sistema educacional de segunda categoria, com péssimas consequências criminalizantes.

As culturas do crédito fácil e do assistencialismo, este próprio de governos populistas, resultam em uma criminalização secundária decorrente do inconformismo de pessoas que vivem uma cultura estigmatizada como as integrantes do sistema formal de poder jurídico-criminal.


Notas

  1. "Ângora" é o jornalista que pode comentar as notícias que apresenta. Ele emite opiniões pessoais, mas que representam determinada editora. Um comentário desastroso pode causar a sua dispensa, mormente quando ofende o maior cliente da imprensa, o governo.
  2. MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Execução criminal: teoria e prática. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2.010. p. 91.
  3. Apud BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Mendes. Introdução ao direito penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2.003. p. 15.
  4. ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan. 2.006. p. 43.
  5. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 77.
  6. Apud FORMIGA, Marcone. A justiça é vítima. Brasília: Hoje em Dia, ano II, n. 87, de 21 a 27.6.1998. p. 15.
  7. Paulo Queiroz enviou um texto para análise de uma editora em que o Promotor de Justiça Maurício Antônio Ribeiro Lopes participava do Conselho Editorial e a editora respondeu não ter interesse na sua publicação. Depois, foi publicado um livro jurídico de autoria do referido servidor público, no qual várias páginas transcreviam o texto submetido à análise da editora.
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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Sociedade complexa, sistemas e criminalização secundária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2702, 24 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17885. Acesso em: 24 abr. 2024.

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