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Direito e Literatura: "O Estrangeiro", de Albert Camus

27/11/2010 às 13:53

Resumo:


  • A relação entre Direito e Literatura tem sido explorada, inclusive no Brasil, com obras de autores como Arnaldo Godoy e programas televisivos como "Direito e Literatura: do fato à ficção".

  • O entrelaçamento entre Direito e outras áreas como Cinema, Psicanálise, Música e Matemática proporciona aos operadores jurídicos um conhecimento mais amplo sobre a dinâmica da vida em sociedade e da natureza humana.

  • "O Estrangeiro", de Albert Camus, apresenta críticas ao sistema judiciário, destacando a subjetividade dos julgadores, a falta de empatia dos operadores do Direito e a fragilidade dos métodos de coleta de provas, além de abordar a Filosofia do Absurdo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A relação entre Direito e Literatura, segundo Arnaldo Godoy [01], teria surgido nos Estados Unidos com o professor de Direito John Henry Wigmore, para quem "o jurista deve ir à literatura para aprender ciências jurídicas". [02] Essa conexão tem sido aprofundada e, mesmo no Brasil, já existe, além da obra de Godoy, várias outras. Há, inclusive, um programa televisivo, conduzido por Lênio Streck e acessível via internet, com o sugestivo nome: "Direito e Literatura: do fato à ficção".


Além da Literatura, outros entrelaçamentos têm sido feitos como Direito e Cinema, Direito e Psicanálise, Direito e Música e até Direito e Matemática, o que propicia um conhecimento mais amplo aos operadores jurídicos, seja em relação à dinâmica da vida em sociedade, seja da natureza humana. A propósito, como dizia Cícero, citado por Miguel Reale [03], "devemos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direito".

"O Estrangeiro", de Albert Camus, é uma obra que permite essa abordagem. Narrado na primeira pessoa do singular pelo personagem principal, Meursault, a história começa quando este recebe um telegrama lhe informando que sua mãe havia morrido. Meursault vai ao sepultamento, mas não expressa abalo emocional, tanto que, ao ser questionado por seu patrão sobre a idade de sua mãe, responde: "uns 60 anos". [04] E mais: logo no dia seguinte ao funeral, Meursault inicia um relacionamento com Marie, ocasião em que tomam banho de mar e vão ao cinema, assistir a uma comédia.

Meursault leva uma vida comum. Trabalha num escritório, tem amigos, hábitos; enfim, vive imerso num quotidiano sem questionamentos de ordem existencial. Ou, como ele mesmo próprio diz: "perdera um pouco o hábito de interrogar a mim mesmo".

Certa ocasião, quando está na praia junto com o amigo Raymond, surge um árabe que vinha ameaçando este último. Meursault, por impulso e em situação confusa, até pela influência do Sol sobre seu campo de visão, faz uso de um revólver e acaba por atirar e matar o árabe. Segue-se-lhe sua prisão e o começo do julgamento que pode levá-lo à pena de morte. É a partir deste momento que surgem inúmeras críticas de Camus ao sistema judiciário e não só. De saída, aponta para uma demasiada subjetividade do julgador. Isto fica claro quando Meursault vem a conhecer o juiz e este lhe diz querer ajudá-lo. No entanto, Meursault precisava ter as mesmas convicções religiosas do magistrado, quais sejam: acreditar em Deus, ser Cristão e demonstrar arrependimento pelo crime. Meursault, porém, respondeu negativamente a todas essas perguntas que lhe foram feitas nesse sentido, o que despertou a antipatia do magistrado, que inconformado exasperou: "eu sou Cristão"... "nunca vi uma alma tão empedernida quanto a sua"...."por hoje, acabou, Sr. Anticristo".

No dia do julgamento, Meursault recebe a curiosa notícia de que "seu caso não é o mais importante da sessão. Logo a seguir será julgado um parricida". Nesta parte, Camus parece não se conformar com a falta de empatia dos operadores do Direito para com o drama vivido pelas partes em questões judiciais.

Nem a imprensa escapa ao olhar afiado de Camus, como se constata no momento em que um jornalista se aproxima de Meursault e confessa: "sabe, tivemos que aumentar um pouco o seu caso. O verão é uma época morta para os jornais. As únicas histórias que valiam alguma coisa eram a sua e a do parricida."

Camus aponta, ainda, para a fragilidade dos métodos de coleta de provas. Marie, namorada de Meursault, ao ser ouvida como testemunha, respondeu uma a uma, com "sim" ou "não", às perguntas que lhe foram feitas, para, ato contínuo, ser dispensada sem maiores detalhes. Marie, irritada e descontente frente aquele cenário, adverte: "não era nada disso, que a coisa era diferente, que a obrigavam a afirmar o contrário do que pensava". Contudo, seu inconformismo foi em vão, pois "a um sinal do presidente levaram-na, e a sessão prosseguiu".

E as críticas não param por aí.

Ao início dos debates, Meursault se depara com um promotor e um advogado que estão mais preocupados em "vencer" o oponente, do que com o destino do acusado. Para tanto, usam e abusam da retórica, da manipulação da linguagem, da descontextualização dos fatos, ou seja, montam um quebra-cabeça imaginário, voltado para um só fim: ganhar a causa. Tanto que, por vezes, não se sabe se Meursault é acusado de homicídio ou de não chorar no sepultamento da mãe, o que conduz para aquilo que se nomina como Direito Penal do Autor em contraposição ao Direito Penal do Fato.

É neste contexto que o Meursault, um "estranho" naquele ambiente (daí o nome do livro), registra: "durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime".... "tudo se desenrolava sem a minha intervenção".... "me impressionaram ou despertaram meu interesse alguns fragmentos, gestos ou tiradas inteiras, mas desvinculadas do conjunto."... "parecia-me que me afastavam ainda mais do meu caso, reduziam-me a zero e, de certa forma, substituíam-me".

É claro que há outras observações a fazer, mas o objetivo aqui não é esgotar o tema, tampouco antecipar o final. Além disso, como se sabe, Camus é um dos adeptos da Filosofia do Absurdo e, em "O Estrangeiro", esse traço não passa despercebido, em especial no último capítulo onde discorre sobre o sentido da vida ou a falta deste

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Como se vê, a obra é de extrema importância para os operadores do Direito ao mostrar que a realidade mais profunda do ser humano nem sempre é captada, apreendida ou considerada pelos responsáveis por seu julgamento, muitas vezes em decorrência de um tecnicismo exacerbado, por vezes estéril. Também pode ser lida sem uma preocupação jurídica, pois, ao trazer implícita a Filosofia do Absurdo, revela-se importante instrumento para reflexões sobre a vida e sobre o ser humano ou, no mínimo, para nos mostrar como fazemos julgamentos pelas aparências e não pela essência, o que nos leva a um círculo vicioso, infinito e, não raras vezes, equivocado.


Notas

  1. GODOY, Arnaldo S. de M., Direito & Literatura. Esnsaio de Síntese Teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 27-32.
  2. Idem, p. 31.
  3. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 61.

4.CAMUS, Albert. O Estrangeiro. BestBolso: Rio de Janeiro, 2010.
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Sobre o autor
José Ricardo Alvarez Vianna

Juiz de Direito no Paraná. Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Mestre pela UEL. Professor da Escola da Magistratura do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, José Ricardo Alvarez. Direito e Literatura: "O Estrangeiro", de Albert Camus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2705, 27 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17907. Acesso em: 22 dez. 2024.

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