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A organização da polícia dos fins da Idade Média aos primeiros anos da Renascença

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26/11/2010 às 08:03

Resumo:


  • A Idade Média foi um período de grande desenvolvimento da Civilização Ocidental, inspirada pelo cristianismo, que trouxe avanços significativos em diversas áreas do conhecimento.

  • A Europa medieval foi marcada pela criação de universidades, hospitais, leis internacionais, avanços na agricultura, arte, ciência e direito, fundamentados na visão holística da sociedade cristã da época.

  • O surgimento de corpos policiais organizados à maneira contemporânea teve início na Idade Média, com exemplos como a Santa Hermandad na Espanha, a Gendarmaria na França e os quadrilheiros em Portugal, influenciando a estrutura das polícias modernas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. Os primeiros corpos policiais organizados à maneira contemporânea [09]

3.1. Milícias urbanas e rurais

Nesse contexto político e social, as guardas e corpos policiais existentes desde as primeiras sociedades vão sendo organizadas em moldes mais profissionais. Destacam-se as milícias urbanas, ao comando dos burgomestres, e as rurais, chefiadas pelos senhores feudais, conforme a organização social e política por nós já abordada. Em auxilio a essas milícias públicas, associações privadas, como as guildas, corporações de ofício e fraternidades (religiosas e leigas), estabelecem também os seus serviços de segurança, para defesa de seus membros e dos demais do povo.

Agentes públicos à paisana são utilizados para a manutenção da ordem e a apuração dos delitos. Igualmente, corpos militares assumem funções policiais na cidade e no campo.

As classes de pessoas mais perigosas, como vagabundos e mendigos, são confiadas, por um lado à caridade cristã e, por outro, a uma liderança escolhida dentre eles mesmo, mas de confiança da autoridade local: o "rei dos patifes" ou "rei dos vadios".

Os custodes nundinarum – guardas de feiras – são, por sua vez, amplamente utilizados como polícia de manutenção da ordem e vigilância ostensiva de concentrações populares, notadamente, como o nome indica, comerciais e de entretenimento.

3.2. Os corpos militares com função policial

Na França, uma atividade singular é observada: nas tréguas durante a Guerra dos Cem Anos, alguns militares desertam e, junto de mercenários, continuam a pilhar as propriedades e a abusar de sua função. Uma polícia militar é, então, criada por João, o Bom, no século XIV, para caçar esses desertores, impedir os excessos e proteger a retaguarda as divisões em marcha. Sob a chefia do mais alto comandante do exército francês, o Marechal-de-França, essa polícia é conhecida, por isso mesmo, sob a denominação de Maréchaussée. Corpo policial montado, de natureza militar, aos poucos passa também a agir fora das tropas regulares, policiando estradas, campos, fazendas e pequenas aldeias. A Maréchaussée continua sua história até os dias hoje, com o nome de Gendarmerie, com idêntica natureza militar, e com atribuição de policiamento ostensivo e judiciário nas zonas rurais, bem como na manutenção da ordem pública por ocasião de grandes concentrações urbanas e emprego de unidades especializadas em missões de alto risco ou de importância nacional. Ao lado da Gendarmaria, a Polícia Nacional francesa cuida do patrulhamento ostensivo e das funções judiciárias em cidades médias e grandes, tendo esta sua origem bem mais tarde, por ocasião da Revolução – unificando as polícias locais.

De outra sorte, em vários locais da Europa, Ordens de cavalaria, em que militares tomam hábitos religiosos e professam votos de pobreza, castidade e obediência, asseguram, além da guerra e da caridade em seus fortes e hospitais, a segurança dos peregrinos.

Enfim, as milícias locais passam não depender apenas dos burgomestres e senhores, e passam a correlacionar-se com outras corporações para troca de informação e treinamento, e melhor coordenação do trabalho. É assim, por exemplo, na Espanha, em que as fraternidades (quer as privadas, quer as erigidas pela autoridade pública) agrupam-se, como veremos adiante, na Santa Hermandad.

3.3. A polícia na Inglaterra

Após as invasões vikings, com a conseqüente unificação dos reinos da Bretanha e o amálgama entre os celtas (bretões, irlandeses, galeses e pictos), os germanos (anglos e saxões) e os normandos, novas formas de pacificação social e manutenção da ordem são difundidas pelas ilhas. A centralização política e administrativa, sem ferir a subsidiariedade representada pelos senhores locais, faz-se sentir, nesse campo da polícia, pela figura de um representante da Coroa nos territórios, o sheriff, nomenclatura de origem árabe, logo adotada pela cultura inglesa por ocasião das cruzadas. O xerife por aplicar multas, tendo, pois, função judiciária, e dirige as tarefas policiais a cargo dos hundreds e dos tythings.

Embora representante da Coroa, como o é todo funcionário público inglês, o xerife é o chefe de uma polícia local, mantida e supervisionada pelas autoridades de um condado ou de uma cidade. Tal municipalização das forças de segurança é uma característica observada até hoje. Não há, na Inglaterra, uma polícia de feições nacionais. Mesmo a Scotland Yard, mundialmente famosa e representante, no Reino Unido, dos escritórios da Interpol, é uma polícia local: a polícia metropolitana de Londres, ou Met.

3.4. Os quadrilheiros de Portugal

Os portugueses foram os primeiros ibéricos a vencer a guerra da Reconquista contra os mouros invasores. Bem cedo puderam garantir sua independência e criar corporações policiais aos moldes mais modernos. Para isso, aproveitaram toda a sua experiência militar, quer dos conflitos intestinos, quer da participação em cruzadas.

Não tardou para o profissionalismo fosse uma marca do policiamento luso, com divisão de circunscrições para a atuação dos chamados quadrilheiros, polícia de vigilância e manutenção da ordem, bem como, subsidiariamente, apuração de delitos e formação da prova.

Tempo depois, esses mesmos quadrilheiros evoluíram para a Intendência Geral de Polícia da Corte, criada em 1780, que mudou seu nome para Polícia Civil em 1867. Foi reorganizada em 1922, separando-se em duas corporações autônomas: uma adotou o nome de Polícia de Segurança Pública, um corpo policial ostensivo e fardado, mas de natureza civil; e a outra, a Polícia Judiciária, igualmente civil, mas sem farda e, como a denominação indica, encarregada da formação da culpa e apuração das provas dos delitos cometidos.

A Intendência Geral de Polícia deu origem também à Guarda Real de Polícia de Lisboa e, no Brasil, com a transferência da corte, à Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro. A Guarda de Lisboa originou a Guarda Nacional Republicana, uma polícia de natureza militar, encarregada do policiamento ostensivo nas áreas rurais de Portugal, bem como da segurança de grandes eventos públicos e das autoridades constituídas e seus prédios. A Guarda do Rio desenvolveu-se na atual Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e na Polícia Militar do Distrito Federal, modelo logo adotado em todas as demais unidades federativas brasileiras.

3.4. A Santa Hermandad

Os diversos reinos que formavam a Espanha, durante a Reconquista aos mouros invasores, proveram, conforme a época, distintos corpos de milícia destinados não à guerra, e sim à segurança interna de seus súditos. Por agruparem pessoas que verdadeiramente se consagravam à caça dos malfeitores, ao patrulhamento das terras e cidades, e à apuração dos delitos, e à proteção do povo contra eventuais desmandos de senhores feudais e autoridades locais, tais corpos policiais foram chamados de irmandades, fraternidades. Com efeito, em muito se assemelhavam, no espírito e na organização, às irmandades religiosas, com seus hábitos e regras de vida.

Organizadas em caráter local desde os séculos XI, em Castela, e XII, nas Astúrias, tais irmandades foram, aos poucos, aumentando seu efetivo e suas atribuições. No devido tempo, outrossim, verificou-se um processo unificador entre as irmandades de uma mesma região ou reino. Em 1295, na cidade de Valladolid, uma Junta de Procuradores das Irmandades do Reino de Leão foi convocada para traçar planos em vistas a manter certa unidade de ação e de critérios. Já em 1300, as irmandades de Toledo e de Talavera, em Castela, uniram-se em uma federação, a que, dois anos depois, somo-se a de Villa Real. Em 1369, tal unidade entre as irmandades é tamanha que elas ganham novas atribuições: surge, nas Cortes de Toro, um cargo de juiz próprio das irmandades, para julgamento dos criminosos capturados pelas mesmas. A Henrique IV, rei de Castela, coube uma tentativa de criação de uma Irmandade Geral, o que foi aprovado em 1473, mas que não chegou a efetivar-se.

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Enfim, em 1476, sob as Cortes de Madrigal, tendo à frente os Reis Católicos, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, fundou-se um corpo policial militar, aos moldes modernos, com a junção de todas as irmandades regionais, sob um único comandante: a Santa Hermandad. Aliás, essa corporação teve decisiva importância na última batalha da Reconquista: a tomada de Granada, 1492, com a plena vitória sobre os sarracenos e conseqüente unificação da Espanha.

Ilustração 2 - Membros da Santa Hermandad, pioneira das polícias contemporâneas

A Santa Hermandad, além de executar as funções de polícia preventiva e judiciária, destacou-se como força bélica, o que a caracteriza como um primeiro exército regular espanhol de feições profissionais e nacionais [10]. Aos fins da Idade Média, tal força policial contava com cerca de 2 mil homens de infantaria e patrulhamento, além dos arqueiros que, em cada cidade, dedicavam-se a perseguir os delinqüentes e a defender os muros. Vê-se, portanto, que a Santa Hermandad é a precursora da atual polícia espanhola e também das forças armadas.

Os Reis Católicos tiveram uma visão surpreendentemente nova ao combinar, de maneira até então inédita, a ação militar e a policial. É certo que outras instituições policial-militares existiam. O modelo espanhol, entretanto, era um tanto distinto, fazendo os militares apoiar-se no povo, na comunidade – o que hoje chamaríamos "policiamento comunitário" –, e protegendo-o de ocasionais desmandos e ambições de alguns nobres. Tão forte foi o apoio dado pela Coroa unificada de Espanha à Santa Hermandad que, em 15 de janeiro de 1488, a Junta Geral da força elevou seu efetivo para dez mil homens de infantaria, entre os quais trezentos espingardeiros, dois mil e quinhentos soldados encouraçados (com armaduras, lanças e espadas), e dois mil e quinhentos arqueiros.

Ao lado da Santa Hermandad, corpos policiais locais foram surgindo, para garantir o cumprimento de diversas missões: policiamento ostensivo, manutenção da ordem, e polícia judiciária. Isso diminui a força da Hermandad, até sua total extinção, em 1834. Todavia, dez anos mais tarde, uma nova polícia nacional, de caráter também militar, como a Santa Hermandad, e considerada como sua sucessora, foi criada, pelo decreto de 28 de março: a Guarda Civil, que até hoje continua a desempenhar, valorosamente, sua tarefa de proteção aos cidadãos espanhóis.

3.5. O preboste de Paris e a polícia do rei São Luís IX

Tomando as irmandades espanholas e os quadrilheiros portugueses como exemplo, novas formas de organização policial vão surgindo na Europa medieval, tendo por idéia central a especialização de missões.

A França não escapa a esse modelo, e, antes mesmo da Maréchaussée, polícia militar rural antecessora da Gendarmaria contemporânea, cria, no reinado de São Luís IX, um sistema policial para a capital. O preboste de Paris, chefe dessa força inaugurada pelo santo rei do século XIII, tem a sob seu comando, vigias a pé – que, por sua vez, coordenam todos os adultos do sexo masculino, em estado de mobilização permanente, para a guarda da cidade –, e tropas de cavalaria. Além deste policiamento ostensivo, cargos de investigadores e comissários de polícia vão surgindo, e acumulam funções investigativas e judiciais.

O modelo parisiense espalha-se, com o êxito alcançado, por toda a França, com uma rapidez impressionante. E da unificação dessas polícias municipais aparece, séculos mais tarde, a Polícia Nacional, de natureza civil, e encarregada do policiamento ostensivo de grandes cidades e da polícia judiciária.


Conclusão

É inegável que a instituição policial acompanhou o homem desde sempre. Falar em sociedade é falar em delito e em segurança.

Sem embargo, embora forças policiais tenham existido desde os primeiros Estados – por primitivos que sejam, como agrupamentos familiares, ou em tribos maiores e mesmo impérios da Antiguidade –, a atual configuração das polícias, com um entendimento correto de todas as suas missões –patrulhamento, manutenção da ordem, apuração de delitos –, e a valorização das tarefas especializadas, bem como da divisão territorial para melhor desempenho do trabalho, é criação da Idade Média. Por todo o estudo que aqui expusemos, era natural que tal modelo de ação policial só poderia ter surgido naquele tipo de Civilização, com todos os seus valores e seu modo de pensar e agir.

A polícia moderna, pois, é cria do homem cristão, e filha dileta da Idade Média.


Notas

  1. cf. STARK, Rodney. The Victory of Reason. How Christianity Led to Freedom, Capitalism and Western Sucess, Random House, 2005; WOODS, Thomas E. Woods, Jr., How the Catholic Church built Western Civilization, Washington: Regnery Publishing, 2005; PERNOUD, Régine. Idade Média. O que não nos ensinaram, São Paulo: Agir, 1994
  2. BRODBECK, Rafael Vitola. Cristo, Rei do universo, sem data.
  3. GIORDANI, Mário Curtis. História dos Reinos Bárbaros, vol. II, Petrópolis: Vozes, 1971, p. 65
  4. CALMETTE, Joseph. Le Monde Féodal, Paris: Presses Universitaires de France, 1951, p. 93
  5. KOSCHAKER, Paul. L’Europa e il Diritto Romano, Firenze: Sansoni, p. 15
  6. Annales Royales
  7. GIORDANI, Mário Curtis. História dos Reinos Bárbaros, vol. I, 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 1985, p. 198
  8. BRODBECK, Rafael Vitola. A União Européia à luz da Civilização Católica, sem data.
  9. MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa, 2ª edição, São Paulo: EDUSP, 2002, pp. 55-101
  10. Claro que a Espanha tinha seu exército, tanto que passou 800 anos em guerra contra os mouros em seu próprio território. Mas era um exército formado por nobres e seus homens, e sem a unidade e a o profissionalismo que caracterizaram as forças armadas modernas.
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Sobre o autor
Rafael Vitola Brodbeck

Delegado de Polícia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRODBECK, Rafael Vitola. A organização da polícia dos fins da Idade Média aos primeiros anos da Renascença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2704, 26 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17912. Acesso em: 23 dez. 2024.

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