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Da admissibilidade das sanções políticas no Direito Tributário brasileiro

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01/12/2010 às 08:19
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ENTENDIMENTO CONCLUSIVO

Por todo o exposto é possível asseverar que não se cuida propriamente de uma forma alternativa de cobrança de tributos. Os contribuintes não podem ser considerados vítimas [36], sempre. Tudo está a depender do estudo de cada caso concreto.

Conforme demonstrado, é possível asseverar que a própria denominação da figura é equivocada. Não há, no ordenamento jurídico vigente, qualquer possibilidade de se punir alguém tão somente porque certa pessoa - física ou jurídica - não comunga da opinião política (governamental) dominante. Não há se falar em perseguição política em um Estado Democrático de Direito. Eis o princípio republicano em um estado federal. Há, tão somente, uma punição em razão da inadimplência de um súdito do Estado, seja em razão de obrigação pecuniária não satisfeita - no caso de obrigação principal - seja em razão de obrigação uma obrigação de fazer ou não fazer inadimplida – na hipótese de obrigação acessória.

Não é que haja restrição às liberdades constitucionais, dentre as quais os direitos de livre iniciativa laboral e de liberdade profissional. Cuida-se, em verdade, de sanção administrativa imposta como privação temporária de direitos – o que se faz, inclusive, a bem da coletividade. É o caso da proibição de participar temporariamente [37] de concorrência pública para os contribuintes em débito com o Erário. Se não são capazes nem mesmo de manter em dia suas obrigações civis mais ordinárias, como podem almejar um contrato com a Administração Pública, por exemplo? Parece proscrição razoável (reasonableness) e racional (rationality).

Nesse sentido, algumas vedações aos inadimplentes são muito mais que justificadas. Assim a inscrição como devedor inadimplente no CADIN, evitando, desta forma, com que a pessoa jurídica devedora dê novos "golpes" na Administração; a recusa no fornecimento de Certidão Negativas para a participação em licitações, evitando, outrossim, o alto risco de inadimplemento em contratos administrativos, o que gera inegavelmente imenso transtorno coletivo; a proibição de sócio de empresa inadimplente constituir ou participar de outra empresa, dentre tantas outras sanções (rectius, "prevenções"). Essas figuras parecem configurar, em verdade, instrumentos de tutela da coletividade. Evidente manifestação da supremacia do interesse público sobre o particular.

Há mais.

Interessante exemplo é trazido por FRIEDERICH AICHINGER [38], quando analisou o "Caso American Virginia". Cuidava-se, na espécie, de pessoa jurídica que detinha como objeto social o comércio de produtos tabagistas e que experimentou a interdição de seu estabelecimento comercial em razão de sua inadimplência quanto ao imposto sobre produtos industrializados - IPI. Além dos embargos ao exercício profissional, dita pessoa jurídica ainda teve seus registros especiais cancelados.

Muito embora os pretórios do país tenham se posicionado (erroneamente, insista-se) pela ocorrência de malsinada "sanção política", entendendo que no caso havia indevida influência do fisco sobre o sujeito passivo a fim de coibi-lo a quitar seu débito (bilionário, por sinal) fora dos parâmetros do devido processo legal, fato é que tratava-se, a rigor, de engenhosa e temerária postura comercial.

O sujeito passivo afirmava não ser devedor da quantia exigida pela União. Além disso, a maior parte dos débitos estava com sua exigibilidade suspensa por força de uma decisão liminar. Com isso, a empresa protelava judicialmente seu passivo, comercializando, por outro lado, seus produtos por preços mais vantajosos aos seus consumidores que os seus concorrentes, violando, assim, claramente o princípio da isonomia em razão da sua abstinência no recolhimento de relevante tributo - sobretudo na área do tabaco [39], em detrimento das concorrentes, que recolhem a exação com a devida habitualidade.

Assim, parece que no "Caso American Virginia", por exemplo, não se pode falar de "sanção política", mas sim de repressão administrativa, regida pelo devido processo legal administrativo-tributário em suas duas vertentes, que pretendeu coibir evidente estratagema empresarial em detrimento do fisco federal (coletividade nacional) e de outras empresas do setor. Destarte, sempre deve ser feita uma ponderação de valores.

Também devem ser sopesadas as características ímpares do mercado tabagista, relativamente ao "Caso American Virginia". Havendo fraude em prejuízo da Fazenda Pública (e da isonomia), como parece ter acontecido, naturalmente a suspensão das atividades e o cancelamento da inscrição no cadastro fazendário são medidas que se impõem e implicam, naturalmente, na proibição do exercício da atividade econômica pelo contribuinte. Isso porque, in casu, a liberdade de exercício profissional depende de inscrição especial, condição sine qua non para o exercício de atividade empresarial nesse segmento.

Nessa ótica, não há que se falar em abuso do direito de cobrar. Antes, pelo contrário, é de se elogiar a postura da Administração Pública. A par disso, subsiste o Art. 188, I, do Código Civil, que preconiza não constituir ato ilícito o praticado no exercício regular de um direito reconhecido – na espécie, o dever de reprimir fraudes fiscais.

Notadamente, cada caso é um caso específico e deve ser analisado minuciosamente. Pode haver excessos administrativos em determinado momento, mas, por presunção [40], todos os atos praticados pela Administração são considerados legítimos e válidos. Portanto, constitucionais, legais e plenamente aplicáveis.

Enfim, a análise do jogo comercial detém relevância para esta obra. O que precisa ser respondido é se havia ou não a malquista "sanção política" – entenda-se "sanção administrativa", como se viu - na questão.

Parece de bom alvitre admitir que haverá dita sanção (administrativa) sempre que houver infrações por parte dos administrados. Para tanto, deve a Administração valer-se, sempre, do devido processo legal - sobretudo na sua acepção substantiva, que exige a presença dos elementos [41] necessidade (Erforderlichkeit) e a adequação (Geeignetheit) para a configuração do princípio da razoabilidade (ou da proporcionalidade, ou vedação do excesso) nos meios coercitivos de cobrança e proteção do erário.

Aliás, como bem acentuam GILMAR MENDES, INOCÊNCIO COELHO e PAULO GUSTAVO BRANCO [42],

"No âmbito do direito constitucional, que o acolheu e reforçou, a ponto de impô-lo à obediência não apenas das autoridades administrativas, mas também de juízes e legisladores, esse principio acabou se tornando consubstancial à própria idéia de Estado de Direito pela sua íntima ligação com os direitos fundamentais, que lhe dão suporte e, ao mesmo tempo, dele dependem para se realizar."

Nessa mesma esteira, parece que quando a Administração exige prévia satisfação do débito tributário como requisito para a outorga da autorização para a impressão de documentos fiscais (RE 374.981 / RS [43]) não se pode falar em ato arbitrário, mas de ato em plena observância da Lei estadual, regente da matéria naquele caso (procedural due process of Law), e do pleno ajuste à razoabilidade (substantive due process of Law), posto que os contumazes na sonegação tributária devem receber tratamento distinto daqueles que permanecem adimplentes às suas obrigações ou as atrasam apenas esporadicamente, conforme as naturais variações de mercado. Essa clássica manifestação do princípio da isonomia: tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade, na medida em que se desigualam.

Habemus legem. Por isso não se prescinde do devido processo legal. Através dele, havendo proporcionalidade, não há que se cogitar da aplicação das súmulas do Supremo Tribunal Federal, sempre argüidas pelos críticos da medida.

Urge mencionar, ademais, que o Código Tributário Nacional - expressamente recepcionado pela atual ordem constitucional, sendo guindado, ainda, à dignidade de Lei Complementar a atual Constituição da República - traz expressamente em seu Art. 100, III, o elemento capaz de embasar a legalidade da medida (práticas reiteradamente observadas pelas autoridades administrativas).

Isso porque, se o fenômeno da recepção, além de receber materialmente as leis (bloco de constitucionalidade) e atos normativos compatíveis com a nova Carta, também garante a sua adequação à nova sistemática legal, e, ainda, considerando que o atual ordenamento jurídico brasileiro não admite a teoria das normas constitucionais inconstitucionais, lícito é concluir pela recepção e licitude de tais medidas. Dessa maneira, observa-se plenamente os princípios hermenêuticos exigidos pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, há que se aplicar as técnicas de interpretação constitucional (inclusive o principio da razoabilidade) para sopesar os valores dominantes, in casu, administrativos, por serem de interesse público direto.

Portanto, conquanto gere inúmeras polêmicas, a técnica em questão há de ser considerada válida e plenamente aplicável, porém sob limites.

Assim, em conclusão, o único limite reconhecido às sanções administrativas é o devido processo legal.

É necessário alterar a atual concepção de Estado. Ainda hoje imagina-se que a Administração Pública, sobretudo na seara tributária, é "O Leviatã", conquanto essa figura, criada por THOMAS HOBBES, date do século XVII. Há que se mudar o modo de pensar. Em pleno século XXI, onde as estruturas privadas oscilam conforme a tecnologia e os acontecimentos, o Estado deve seguir soberano e capaz de assegurar os direitos do cidadão e da coletividade concomitantemente. Essa a razão pela qual foi criado e subsiste nos dias que seguem. Todavia, deve existir sob nova fórmula, capaz de atender a demanda que se lhe é exigida de todos os ângulos. É o momento do Estado Poiético [44].

Sabidamente é preciso um esforço ingente alcançar esse novo conceito, que nada mais pretende que o Direito Constitucional-Administrativo-Tributário aplicado.

Por todo o exposto, verifica-se a perfeita observância do Estatuto do Contribuinte, de modo que não se pode falar em inconstitucionalidade ou em ilegalidade da medida. As "sanções" políticas são admitidas no Brasil e aplicadas com freqüência pela administração - e assim deve ser, sempre respeitando o devido processo legal.


REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Raphael Ferreira de Souza

Analista Judiciário 01 - Área Judiciária. Especialista em Direito Tributário, Ciências Penais, Direito Previdenciário e Direito do Estado.Pós-Graduando em Direito do Estado, em Direito Previdenciário e em Gestão Pública Municipal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Raphael Ferreira. Da admissibilidade das sanções políticas no Direito Tributário brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2709, 1 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17972. Acesso em: 3 mai. 2024.

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