SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Esclarecimentos terminológicos. 3. A esterilidade da dogmática formalista e a busca da abertura do sistema. 4. Pressupostos teóricos: breve escorço. 4.1. O neokantismo. 4.2 O neo-hegelianismo. 4.3. O finalismo. 4.4. A tópica. 5. Pensamento sistemático e dogmática jurídico-penal: pressupostos metodológicos. 6. Política criminal e sistema dogmático. 7. Considerações finais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Teoria do delito. Funcionalismo. Política criminal. Pensamento sistemático e pensamento problemático.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a tecer breves apontamentos acerca das premissas da dogmática funcionalista do delito, tomando-se por arquétipo o pensamento desenvolvido por CLAUS ROXIN, teoria que entre nós tem sido denominada de funcionalismo teleológico-racional.
Pretende-se partir de breve análise dos fundamentos teóricos e dos problemas que a teoria visa a resolver como forma de explicar o resultante sistema aberto da dogmática jurídico-penal, que abarca critérios político-criminais e se estrutura entre o pensamento problemático e o pensamento sistemático.
Para tanto, procuraremos, em primeiro lugar, definir o objeto designado pela expressão que batiza esta teoria do delito, passando-se pela análise das críticas que desenvolveu em relação às que a precederam, para depois observar os elementos sistemáticos e problemáticos adotados, e a maneira pela qual se relacionam, para, afinal, considerar a política criminal como elemento de abertura do sistema.
Advirta-se que, em nossa opinião, o debate acerca dos fundamentos teórico-filosóficos de qualquer doutrina jurídica é de grande importância, quer para a discussão acadêmica, quer para a discussão prática, pois possibilita a elaboração de teorias críticas mais aprofundadas e elucidação de verdadeiros pontos de embate.
Todavia, parece-nos que os fundamentos da dogmática, isto é, as premissas que governam a construção da doutrina sistematizada, não têm tido a atenção devida da doutrina nacional. O presente trabalho pretende ser um avanço, ainda que tímido, para a discussão proposta.
2. ESCLARECIMENTOS TERMINOLÓGICOS
Ao se falar de funcionalismo, deve-se esclarecer, de plano, que o termo é equívoco, sendo capaz de suscitar diversos mal-entendidos. O termo é usado para denominar diversas construções teóricas das ciências sociais e da ciência jurídica. Isto pode levar a que se suponha, erroneamente, diga-se desde logo, que o sistema funcional proposto por ROXIN tenha uma fundamentação de base sociológica, em razão da coincidência de nomenclatura.
Advirta-se, portanto, que não se vê passagem alguma na obra do autor que autorize a conclusão de que sua teoria tenha sido influenciada pelo funcionalismo sociológico, em qualquer de suas vertentes [01].
De igual forma, há varias teorias do delito que podem ser denominadas de "funcionais", outro fato que pode agravar eventuais desentendimentos. Cite-se, por exemplo, o funcionalismo sistêmico de Günther JAKOBS que, como ele próprio admite, foi originalmente fundado na teoria dos sistemas de LUHMANN [02]. O próprio ROXIN parece enquadrar, sob o desígnio de "sistema jurídico teleológico-funcional" as várias concepções funcionalistas, incluindo o sistema por ele mesmo desenvolvido e o sistema de JAKOBS [03]. Assim também outros autores, como TAVARES, não separam rigidamente as diversas teorias funcionalistas, quando a elas se referem [04].
É possível que a imprecisão conceitual que encontramos na doutrina deflua de problemas ocorridos na tradução dos textos alemães para o português e o espanhol.
SILVA SÁNCHEZ adverte que o termo "teleológico-racional" possui um "quê" pleonástico, eis que deriva da tradução do termo alemão zweckrational (derivado do substantivo Zweckrationalität) que não significa nada mais do que "teleológico". Sustenta, ainda, que tal termo, em razão da obra de Max WEBER, é empregado com um sentido adicional de "racionalidade instrumental deliberada", em razão de o recurso a tal racionalidade implicar a recusa de outra, denominada Wertrationalität (racionalidade valorativa). Esclarece, por fim, que não foi intenção de nenhum autor "funcionalista" afastar-se dos valores na construção do sistema teleológico do Direito Penal [05], identificando aí outro problema de tradução.
Ou seja, as doutrinas funcionalistas são teleológicas por excelência, sendo insuficiente a denominação como "funcionalista" ou "teleológica" para caracterizar determinada construção teórica.
De fato, "funcional" e "teleológico" são conceitos de significados muito próximos. Se alguma construção teórica apresenta determinada função (e talvez seria forçoso não reconhecer qualquer função, por mais despretensiosa que seja, em qualquer elaboração teórica), o telos, os fins, de tal teoria são justamente o desempenho da função a ela atribuída.
Desta forma, é possível ver neste "nome de batismo" certa impropriedade. Todavia, e em que pese a autorizada advertência de SILVA SÁNCHEZ, tendo em vista, ainda, as diferenças relativas à fundamentação doutrinária, bem como dos métodos utilizados quando da construção do sistema e dos fins atribuídos ao Direito Penal, entendemos por bem utilizar "funcionalismo" como gênero e "funcionalismo teleológico-racional", como espécie, a fim de separar a teoria em estudo, cuja elaboração atribuímos a ROXIN, das diversas outras que lhe são similares (como o funcionalismo proposto por JAKOBS, cuja denominação mais apropriada, cremos, seria "funcionalismo sistêmico", como já utilizado acima).
Privilegia-se, portanto, o uso de expressão consagrada, com a advertência acima. Isto é, ainda que, bem analisado, o termo não expresse bem as características distintivas do objeto a que se refere, reputa-se suficiente o esclarecimento prestado para evitar eventuais desentendimentos, sem nos afastarmos de denominação comumente utilizada em países de língua portuguesa e espanhola [06]. A expressão é adotada, portanto, mais por necessidade prática.
3. A ESTERILIDADE DA DOGMÁTICA FORMALISTA E BUSCA DA ABERTURA DO SISTEMA
Parece ser lícito afirmar que as teorias funcionais foram desenvolvidas como um reflexo, no Direito Penal, de correntes de pensamento que criticavam o estéril formalismo dominante na metade do século XX (representado – este formalismo – tanto pelo positivismo-legalismo [07], quanto pelo resgate dos jusracionalismo como reação ao "relativismo" que possibilitou horrores durante a Segunda Guerra Mundial [08]).
Tais correntes "formalistas" eram fundadas numa concepção de sistema jurídico como um sistema fechado e composto apenas de regras jurídicas [09]. Este seria o ponto que têm em comum.
Na verdade, na esteira de KAUFMANN [10], pode-se dizer que, a partir da segunda metade do século XX, as correntes de pensamento se apresentam como tentativa de superar o dualismo milenar positivismo-jusnaturalismo.
As premissas deste pensamento formalista não foram sempre aceitas de modo inconteste. Dentre nós, desde há muito, HUNGRIA já advertia dos perigos de uma dogmática desenvolvida sem atenção para suas funções:
Dentro de esquemas apriorísticos, de classificações rígidas, de quadros fechados, de logomaquias difusas e confusas, de sutilizações cerebrinas, de fragmentações infinitesimais, de conceitos, a ciência do direito penal cada vez mais se afasta da realidade humana e social para encantoar-se nos ângulos do "jurismo puro", nas águas furtadas do inumano normativismo de Kelsen, nas lucubrações desse "narcisismo" do direito, que se convencionou chamar "positivismo jurídico", e cujos vértices ultrapassam os topos do Himalaia. [11]
A advertência de HUNGRIA ressoa mais forte em razão de ser o velho mestre um dos maiores expoentes do que se convencionou chamar de tecnicismo jurídico-penal, como ele próprio admitira [12], escola esta que refutava o emprego de qualquer método filosófico, metafísico, ou naturalístico no âmbito da ciência do direito penal, buscando depurá-la de metodologias "intrusas".
Não sem razão constatava MIR PUIG uma crise, no meio acadêmico, em relação ao papel da dogmática jurídica [13], aludindo aos trabalhos de MEYER-CORDING e GIMBERNAT ORDEIG [14].
Com efeito, os sistemas até então construídos, em sua maioria, ao menos, ainda que fundamentados de maneiras diferentes (ontologicamente ou normativamente) levavam sempre a um rígido sistema de regras, e, elaborados de forma alheia à política criminal, concebiam uma dogmática que parecia ignorar solenemente os fins do Direito Penal.
Os sistemas funcionalistas visam, justamente, a infirmar as críticas voltadas contra a aridez da dogmática jurídico-penal e a capacidade de rendimento dos sistemas dogmáticos, que, uma vez desvinculados das funções do Direito Penal, das tarefas que este ramo do ordenamento jurídico tem de desempenhar, terminaram por isolar o sistema da realidade, construindo toda uma estrutura teórica cujo maior, senão único, resultado prático reconhecido era o fracasso na aplicação do direito, seja do ponto de vista da segurança jurídica [15], seja do ponto de vista da solução justa do caso concreto.
Para tanto, é proposto um sistema que incorpore em suas premissas as finalidades (ou funções) do Direito Penal. Daí a afirmação peremptória de ROXIN:
Desde aproximadamente 1970 se vêm empreendendo esforços bastante discutidos no sentido de desenvolver um sistema jurídico-penal "teleológico racional" ou "funcional" [16]. Os adeptos desta concepção estão de acordo – apesar de várias divergências quanto ao resto – na recusa às premissas sistemáticas do finalismo e em partir da idéia de que a construção sistemática jurídico-penal não deve orientar-se segundo dados prévios ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais etc.), mas ser exclusivamente guiada por finalidades jurídico-penais. [17]
Para que o sistema dogmático reagisse às críticas, era necessário alterar-lhe a estrutura e algumas premissas de sua construção.
A preocupação principal de ROXIN é com a resposta oferecida pela dogmática aos problemas a ela propostos. Desta forma, cria seu sistema de forma que a essa resposta por ele oferecida cumpra as exigências político-criminais relativas ao caso concreto.
O autor parte do pressuposto que a dogmática tem por finalidade possibilitar uma aplicação segura e justa da lei penal. Desta forma, imprescindível que os fins do Direito Penal, que não podem ser outros que não os fins da pena criminal, cumprindo, portanto, funções político-criminais, se insiram no âmbito da dogmática jurídico-penal.
4. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: BREVE ESCORÇO
Toda construção dogmática se funda, consciente ou inconscientemente, em alguns pontos de vista filosóficos e ideológicos. Essa idéia não mais parece ser objeto de querela. Vejamos a seguir, rapidamente, várias teorias que influenciaram a corrente de pensamento ora em análise.
4.1. O NEOKANTISMO
Na passagem transcrita no tópico anterior vislumbra-se a rejeição a qualquer fundamentação ontológica do direito e, portanto, também do Direito Penal, em oposição ao finalismo welzeliano. O cerne do sistema é substituído: o foco sai das categorias lógico-reais e passa às finalidades do Direito Penal.
Há, no ponto, a assunção de postura filosófica neokantiana. Repudia-se, portanto, a operação de derivar o dever-ser do ser, que há muito foi batizada de falácia naturalista [18].
Na seara do Direito, o neokantismo surge como uma resposta ao positivismo de base naturalista. Anota a doutrina que duas vertentes fundamentais surgiram na Alemanha, na mesma época, ambas com o mesmo fundamento comum, mas com certas diferenças teóricas: a Escola de Marburgo e a Escola de Baden, sendo esta última a mais importante para o desenvolvimento do Direito Penal [19], e por isso mais importante para esta breve exposição.
O neokantismo da Escola de Baden, de que fazem parte Wilhelm WINDELBAND, Heinrich RICKERT e Emil LASK [20], enxerga o direito como uma realidade cultural, referida a valores. Adota uma rígida separação entre "mundo real e mundo dos valores", sustentando que tais mundos não se comunicam.
Dada a separação estanque entre "ser" e "valor", foi necessário a criação do "mundo da cultura", intermédio às duas outras categorias, resultante da articulação entre ambas.
O que é importante ressaltar, no presente momento, é que o neokantismo adota um dualismo metodológico, calcado na distinção entre "ser" e "dever-ser", e vê o direito como meio (forma) para realização do fim (conteúdo) de "justiça" (que só pode ser concebida valorativamente). Trabalha-se com um relativismo valorativo [21].
Disto decorre que o método jurídico não pode ser aquele cunhado para as ciências causais. Admite-se que o conteúdo das premissas normativas tem sempre um substrato valorativo. Tem-se um normativismo dirigido a um certo fim, valorativamente determinado.
Para esta corrente de pensamento, em razão de seu objeto diferenciado, as ciências da cultura utilizam (ou deveriam utilizar) o método teleológico, em oposição ao método puramente lógico dedutivo das ciências naturais [22].
São nomeados penalistas neokantianos: Max Ernst MAYER, Gustav RADBRUCH, Edmund MEZGER, dentre outros [23]. Os neokantianos preencheram os conceitos dogmáticos da teoria do delito com sentido de valor. O tipo passou a ser tipo de injusto, fundido ou praticamente fundido na ilicitude, que pressupunha efetivo prejuízo para que fosse configurada, e a culpabilidade de meramente psicológica recebe o componente normativo de reprovabilidade pela vontade ilícita [24].
A retomada de ROXIN é, aqui, clara. O neokantismo foi o responsável pela criação de uma teoria teleológica do delito [25], e o autor toma tal idéia como ponto de partida, substituindo, no entanto, como já dito, as "valorações" pelos pontos de vista político-criminais.
4.2. O NEO-HEGELIANISMO
Ao contrário do neokantismo, o neo-hegelianismo não influenciou direta ou marcadamente nenhuma "escola" jurídico-penal, que construísse um sistema fundado sobre suas bases [26]. Não obstante, ROXIN admite expressamente ter sofrido influências neo-hegelianas [27].
Uma das conseqüências de tal influência é por demais evidente: a teoria da imputação objetiva tem por distante precursora a teoria da imputação de HEGEL, retomada no século XX justamente por Karl LARENZ, destacado neo-hegeliano [28].
Mas não só no resgate da teoria imputação reside a influência desta doutrina filosófica. ROXIN critica a excessiva abstração dos conceitos [29], e propõe construções sistemáticas fundadas em categorias que se aproximam do conceito concreto-geral, resgatado também por LARENZ das teses de HEGEL [30], pois pretendem reter um conteúdo de sentido das características do objeto observado, em vez de dissolver-se em conceitos demasiadamente abstratos sem grande valia.
GIMBERNAT ORDEIG, aliás, nos alerta de que o conceito concreto-geral tem um caráter teleológico [31], o que, por óbvio, por si só guarda afinidade com um sistema teleologicamente construído.
4.3. O FINALISMO
O finalismo costuma ser tratado pela doutrina do direito penal apenas como teoria do delito, não obstante seja por demais antigo como doutrina filosófica acerca da organização do mundo [32].
Tal qual sedimentado por WELZEL, o finalismo possui marcado fundo filosófico de base ontologista/fenomenológica com suas "estruturas lógico-reais", traduzindo-se em uma tentativa de "renovação do direito", junto com diversas outras que sucederam a Segunda Guerra Mundial, não obstante suas raízes sejam a ela anteriores [33].
A premissa básica da teoria finalista do delito se encontra na apregoada estrutura ontológica finalística da ação, que imporia uma série de conseqüências necessárias ao jurista e ao legislador, que não poderiam ignorar a essência do agir humano.
A estrutura finalista do conceito analítico do delito, com sua mais importante característica, o dolo típico, nas novas teorias funcionalistas, não resta modificada em sua essência. A aparência externa da teoria do delito permanece quase inalterada [34].
No entanto, os fundamentos ontológicos do finalismo são rejeitados, havendo, ainda, um enfraquecimento da matriz sistemática de pensamento, outrora acentuada.
4.4. A TÓPICA
A contemporânea teoria do direito fez ressurgir, em pleno século XX, o pensamento dialético, o que se vê nas expressivas obras de Chaïm PERELMAN e Theodor VIEHWEG, sendo a este último atribuído o resgate da tópica [35].
ARISTÓTELES, que se ocupou de praticamente todos os temas filosóficos da antiguidade, dedicou expressiva parte de sua obra à retórica. Todavia, por muitos séculos o pensar retórico ficou esquecido, tendo os estudiosos se dedicado ao estudo dos Analíticos e ignorado os Tópicos. Muito contribuiu para isto a idéia de racionalismo cunhada pela modernidade.
VIEHWEG rejeita o pensamento sistemático e o caráter científico do Direito, refutando a "busca da verdade" em favor da "busca do consenso".
Anota CAMARGO [36] que "a tópica parte do problema em busca de premissas, enquanto o raciocínio do tipo sistemático apóia-se em premissas já dadas".
Pode-se dizer com Tércio Sampaio FERRAZ JÚNIOR que a tópica é um estilo de pensar, e não propriamente um método [37]. Trata-se de um "pensar problemático", que desloca o centro das reflexões do sistema para o problema. O primordial é a solução adequada de um problema dado.
A tópica é caracterizada por ser um pensar problemático [38], fundado no problema e não num sistema dedutivo cujas premissas são incontestáveis e válidas. Faz uso de "topoi", os pontos de partida aceitáveis, em vez de axiomas verdadeiros.
Note-se que a tópica não visa a formar um sistema, ainda que aberto, pois é uma atitude zetética, isto é, de livre investigação.
No entanto, conjugada com o pensamento sistemático, pode "arejar" o sistema, precisamente o que parece ocorrer em ROXIN. É a forma de pensar que inspira os "grupos de casos" com que trabalha a teoria da imputação objetiva [39].
O método de "agrupamento de casos", um tanto similar ao o que ocorre nos sistemas de common law, teria a função de sedimentar a construção doutrinária e jurisprudencial acerca dos casos concretos, como elemento de unidade do sistema, possibilitando um ganho em segurança jurídica.
Para GRECO, em razão do quanto exposto, o pensamento de ROXIN acaba por ser a "síntese entre o pensamento sistemático e o pensamento problemático" [40].