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Poder administrativo discricionário, conceitos jurídicos indeterminados e teoria dos motivos determinantes.

Uma sucessão de erros a partir do Exame de Ordem 2010.2

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18/12/2010 às 15:01
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4 Conclusões parciais

Assim, extrairemos premissas que serão fundamentais para o estudo de caso que faremos em relação ao recurso administrativo que atacou a questão em estudo e sua resposta por parte da FGV. São eles:

a)Atos administrativos podem ser discricionários ou vinculados; neste o legislador deixa somente uma forma de agir ao administrador diante de situação de fato em conformidade com a lei, naquele haverá espaço para avaliação subjetiva de oportunidade e conveniência para conteúdo e momento de sua prática.

b)Qualquer ato administrativo está sujeito a controle judicial no plano da legalidade. Em relação ao motivo e objeto de ato discricionário, o controle deve ser mais cauteloso, sempre balizado pelos limites da razoabilidade. Caso a avaliação discricionária do administrado seja razoável, não obstante não ser a melhor opção na visão do juiz, deverá provocar abstenção de controle por parte do Judiciário, sob pena de violação da separação dos poderes. Caso seja irrazoável o Poder Judiciário poderá anular o ato.

c)Sempre que houver motivação de ato administrativo, esta se torna vinculante à validade do ato. Uma vez constatada a falsidade da justificativa do ato, ele poderá ser anulado judicialmente.


5 Aplicação das premissas iniciais à resposta do recurso administrativo que denegou o pedido de anulação da questão em comento

Conforme exposto, entendemos que a questão não deveria ter sido cobrada em prova do tipo objetiva. Não há qualquer esboço de uniformidade na doutrina, havendo opiniões abalizadas nos dois sentidos, sendo difícil, até mesmo, apontar qual seria a corrente majoritária.

Com base em tal entendimento, foi interposto recurso, tentando sensibilizar a fundação aplicadora da prova no sentido de que o examinado poderia acertar ou errar a questão na dependência de qual doutrina adotou durante seus estudos. Não entendemos como razoável que seja este o critério de avaliação, o que por si só, já enseja o controle judicial e possível anulação da questão.

Porém não adentraremos neste tema, nos resumindo a verificar a veracidade dos argumentos utilizados pela Fundação Getúlio Vargas para negar procedência ao recurso. Tal motivação será integralmente transcrita:

"A questão traz à baila o conhecimento do candidato acerca das hipóteses admitidas pela doutrina de direito administrativo, nas quais o agente administrativo está autorizado pela lei a praticar um ato discricionário, ou seja, um ato que lhe confere autonomia de escolha a fim de com ele integrar o comando concreto da norma jurídica em questão.

A questão foi idealizada na obra: FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. Ed: Saraiva. São Paulo, 2009. Págs.144/150. Logo, a questão correta encontra-se na letra "D", pois a única hipótese em que não se admite que o agente administrativo pratique um ato discricionário é na hipótese dele estar diante de uma Lei que se encontra insatisfatória ou ultrapassada.

O administrador público não pode exercer o seu poder discricionário quando a lei for ultrapassada ou insatisfatória ao caso concreto. A Administração Pública, ao contrário do particular, está adstrita à lei e o comando legal impõe ao administrador um dever de agir, em regra vinculado. Se a lei se encontra ultrapassada ou o comando da lei se encontra insuficiente NÃO pode o administrador exercer sua autonomia de escolha a fim de preenchê-la ou adequá-la ao caso concreto. NÃO SE TRATA, pois, de comando legal discricionário, mas sim de comando legal vinculado, a hipótese de lei insatisfatória e ultrapassada.

As demais respostas, portanto, estão incorretas.

A doutrina recente admite, apenas, o exercício do poder discricionário nas hipóteses de conceitos parcialmente indeterminados, conceitos técnico-científicos (discricionariedade técnica) e na hipótese de conceitos valorativos"

Pois bem, diante de incisivos argumentos da FGV, nos restava buscar especificamente o livro do Professor Marçal, afinal, foi realizado raciocínio silogístico concluindo que como a questão foi extraída de livro deste doutrinador, a única hipótese correta de inexistência de exercício de poder discricionário seria no caso de leis ultrapassadas.

Portanto, supostamente estribada na doutrina de Marçal Justen Filho a questão foi idealizada e afirmou-se que no caso de leis ultrapassadas não haverá discricionariedade ao passo que no caso de conceitos jurídicos parcialmente indeterminados, conceitos técnico-científicos e conceitos valorativos haverá discricionariedade.

Pois bem, no item VI. 4.3.3) "As técnicas legislativas de ampliação controlada da autonomia do aplicador", Marçal Justen Filho [35] afirma literalmente:

Por outro lado, existem pelo menos três técnicas pelas quais a lei transfere ao aplicador uma margem de autonomia para determinar a solução cabível para o caso concreto, sem que isso produza o surgimento de autonomia configuradora da discricionariedade. É necessário diferenciar essas três alternativas, porque são entre si bastante diversas. (grifei)

Não foi nossa surpresa quando constatamos que as referidas técnicas que segundo as palavras do próprio Marçal não produzem "autonomia configuradora da discricionariedade" são:

VI. 4.3.3.1) A utilização de conceitos técnico-científicos [36];

VI.4.3.3.2) A utilização de conceitos jurídicos (parcialmente) indeterminados [37];

VI.4.3.3.3) A utilização de conceitos valorativos [38].

Para não deixar qualquer dúvida, após citar especificamente os itens supra Marçal Justen Filho [39] reforça que "a discricionariedade não se confunde com as hipóteses acima indicadas. Na discricionariedade há atribuição pela lei da competência para o administrador formular uma escolha segundo sua avaliação subjetiva".

No mesmo sentido de nossa conclusão, Eloisa Nava de Assis [40] afirma sobre o pensamento de Marçal Justen Filho:

Além dos conceitos indeterminados, Marçal Justen Filho fala ainda sobre aqueles casos em que a lei confere ao administrador margem de autonomia para determinar a solução cabível ao caso concreto, sem que utilize da competência discricionária. São eles a utilização de conceitos técnico-científicos, a utilização de conceitos parcialmente indeterminados e a utilização de conceitos valorativos. (grifei)

Portanto, ao contrário do afirmado pela FGV, a literatura que baseou a formulação da questão não admite o exercício de poder discricionário em nenhuma das hipóteses formuladas no exame de ordem 2010.2. Estavam os alunos diante de 4 respostas corretas possíveis, á luz do pensamento de Marçal Justen Filho.

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Conclusão inevitável: a questão formulada, bem como a decisão de improcedência do recurso foi baseada em motivo falso conforme acabamos de provar neste artigo. Marçal Justen Filho nega, literalmente, a possibilidade de exercício de poder discricionário em todas as alternativas da questão veiculada no exame de ordem trazida à baila neste artigo.


6 Relato sucinto dos fatos ocorridos

Encerramos o artigo confidenciando ao bravo leitor que até aqui chegou, que não conseguimos desfazer a injustiça exposta nem pela via judicial, nem pela via administrativa. Tivemos nossa liminar negada, sob alegação de violação ao princípio da isonomia, em relação aos outros candidatos e em relação a outras áreas de conhecimento, tendo em vista que se para um juiz de direito é fácil avaliar tal situação em uma questão jurídica não seria possível fazer tal avaliação num exame de biologia. Além disso, alegou-se que não se poderia adentrar no mérito administrativo, pois tal apreciação refoge ao Poder Judiciário. Após tal negativa nosso cliente optou por não interpor recurso e estudar para o próximo exame na esperança de ser submetido a prova justa e ser aprovado.

Não obstante o final infeliz dessa jornada, entendemos que o Poder Judiciário não poderá jamais se afastar do controle de questões de provas de concursos públicos ou exame de ordem. Conforme vimos, não se trata de invadir o mérito administrativo, mas sim, de fazer cessar ato irrazoável ou mesmo ato baseado em premissas falsas. Tal situação pode ser empiricamente comprovada mesmo sem amplo conhecimento da matéria, como foi o caso da seguinte questão.

Fica, portanto, nosso apelo aos pensadores do direito para que se debrucem sobre esse tipo de questão e que não aceitem que sob o manto da discricionariedade os avaliadores de concursos públicos elejam arbitrariamente a forma como serão cobradas determinadas matérias e que estes sejam vinculados aos motivos por eles expostos em recursos administrativos e exposições de motivos de modo geral.

E aos juízes, não temam deferir liminares para assegurar direitos dos examinados, durante este tipo de certame, quando inequívocos seus pressupostos, como foi o caso exposto, em nosso entendimento. Mais grave do que uma "indústria de liminares" é a "indústria de ilegalidades", na expressão de William Douglas, perpetradas pelo Poder Público, diariamente, sob nosso olhar complacente.


Notas

  1. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. Malheiros. 2008. p. 122
  2. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo – 10 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2005. p. 79
  3. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 212.
  4. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 56
  5. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. Malheiros. 2008. p. 122
  6. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 209.
  7. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. Malheiros. 2008. p. 156
  8. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed. Malheiros. 2008. p. 157
  9. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010p. 56
  10. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 217
  11. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010.p. 217
  12. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 38.
  13. Apud. ROLIM, Luciano Sampaio Gomes. Uma visão crítica do princípio da proporcionalidade . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em: <http://http://jus.com.br/revista/texto/2858>. Acesso em: 22 abr. 2010.
  14. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 218
  15. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 51
  16. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 59
  17. ALEXANDRINO, Marcelo, PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 18. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. p. 443
  18. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 58
  19. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. 162
  20. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 59
  21. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 59
  22. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 218
  23. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 219
  24. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010.
  25. ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Motivação do ato administrativo – 2. ed. ver. ampl. atual. (abrangendo a Lei 9.784/99) – Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 72.
  26. FARIA, Edimur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo – Atualizado de acordo com a Emenda Constitucional n. 41/03. 5. ed. rev. e ampl. – Belo Horizonte: Del Rey. 2004. p. 197.
  27. FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros   p. 200
  28. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 216
  29. Apud OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Ato administrativo – 5. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 104
  30. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 216
  31. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 124
  32. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 124
  33. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo – 23. ed. – São Paulo: Atlas, 2010. p. 211
  34. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23. Ed. Rev., ampl. E atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 129
  35. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 164
  36. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 164
  37. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 165
  38. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 167
  39. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 167
  40. ASSIS, Eloisa Nava de. A Competência Discricionária do Ato Administrativo. <http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=1636&idAreaSel=1&seeArt=yes> Acesso em: 14 de Dezembro de 2010.
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Sobre o autor
Rafael Torres Smith

Advogado.Formado pela FDV - Faculdades Integradas de Vitória

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SMITH, Rafael Torres. Poder administrativo discricionário, conceitos jurídicos indeterminados e teoria dos motivos determinantes.: Uma sucessão de erros a partir do Exame de Ordem 2010.2. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2726, 18 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18053. Acesso em: 29 mar. 2024.

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