INTRODUÇÃO
No último dia 03, a Câmara de Conciliação e Justiça e de Cidadania aprovou, conclusivamente, o Projeto de Lei nº 405/07 (nº original: 263/2004), que objetiva a inserção do parágrafo 6º no artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor. A redação proposta para o dispositivo é a seguinte:
§ 6º No fornecimento de produtos ou serviços que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor informará aos sistemas de proteção ao crédito, para formação de cadastro positivo, somente o adimplemento da obrigação contraída, sempre que houver a prévia concordância e autorização expressa do consumidor para tal registro.
Por ter sofrido alteração na Câmara dos Deputados, o Projeto será novamente submetido à apreciação do Senado [01] e, embora não tenha sido votado de forma definitiva pelo Poder Legislativo, já é alvo de debates e críticas, por instituir o chamado "cadastro positivo de crédito", espécie de versão às avessas dos famosos SPC e SERASA, que detectam os maus pagadores.
Mas, afinal, representaria esse cadastro um justo reconhecimento daqueles que quitam seus débitos em dia e por isso, merecem maior credibilidade do mercado ou não passaria da instituição de mais um meio para vulnerabilizar o consumidor, tornando-os verdadeiros reféns dos padrões estabelecidos pelas sociedades empresárias?
Embora ainda não se tenha por certo que o Projeto de Lei "vingue", face aos trâmites do processo legislativo, que, por final, será submetido ao Presidente da República para sanção ou veto [02], considera-se relevante a análise acerca da criação do "Cadastro Positivo", por envolver férteis controvérsias quanto à sua constitucionalidade e legalidade.
OS "PRÓS" DO CADASTRO POSITIVO
Amplamente utilizado em vários países europeus e nos Estados Unidos, o "Cadastro Positivo de Crédito" foi pensado como um banco de dados que reúna, em seus cadastros, informações sobre aqueles consumidores que saldaram seus débitos e estão em dia com suas obrigações financeiras.
No "Cadastro Positivo de Crédito", o comportamento financeiro do consumidor fica registrado, sendo-lhe obviamente favorável se os seus débitos e respectivos pagamentos tiverem sido efetuados dentro do prazo estabelecido para tanto. Quanto mais pontual, mais confiável, portanto.
Esse sistema permite que o comportamento financeiro do consumidor seja registrado e conhecido pelos fornecedores que intentam concedê-lo créditos, o que permite maior segurança deste último nos seus negócios, já que o risco de inadimplemento é menor se o "histórico" do interessado demonstrar seu comprometimento com a satisfação de suas dívidas. Além dessa finalidade, o sistema privilegiará os bons pagadores/cadastrados - permitindo que a esses sejam concedidos créditos a taxas de juros menores - bem como aumentará a segurança na concessão do crédito, permitindo o "aquecimento" do mercado financeiro.
Para alguns, tal medida alcança o ideal de isonomia, já que os desiguais seriam tratados de modo diverso, posto que os bons pagadores seriam premiados com as melhores condições de financiamento e crédito.
Atente-se que a alteração proposta para a parte final do § 6º foi vista com bons olhos pois, condicionando a inserção do consumidor no cadastro à sua anuência expressa, eliminou grave ameaça a seus direitos e garantias individuais.
Em que pese os consideráveis aspectos positivos da instituição do mencionado cadastro, é relevante que se analise, do mesmo modo, a sua "outra face".Veja-se.
O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E LIBERDADE DE ESCOLHA
O primeiro efeito negativo da instituição "Cadastro Positivo de Crédito" seria o a vinculação da análise do perfil do consumidor à sua presença ou não no sistema, de modo que se considere "bom pagador" apenas aquele que aí esteja presente. Quem não estivesse no cadastro, portanto, não seria merecedor de condições creditícias personalizadas. A cruel conseqüência desse silogismo seria a desconsideração da situação daqueles que tenham saldado suas dívidas mediante pagamentos à vista, em que são dispensadas as operações creditícias. Desse modo, esse tipo de consumidor, se eventualmente tiver interesse em obter crédito, terá dificuldades, posto que ausente do banco de dados do "Cadastro Positivo".
Outra conseqüência nefasta do citado cadastro seria a exposição da vida financeira do consumidor que, "monitorado" pelo sistema, seria classificado em determinado agrupamento mesmo que possuísse alto grau de endividamento, mas plena capacidade de solvabilidade de seus débitos (sua a renda, portanto, seria suficiente para quitá-los).
Não tendo seus dados inseridos no cadastro, o consumidor não terá acesso a nenhuma modalidade creditícia, o que leva a crer que seu direito de escolha, preconizado no Código de Defesa do Consumidor, seria tolhido, uma vez que estaria compelido a ceder seus dados pessoais para a obtenção do crédito almejado. Leia-se:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
II – a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e igualdade nas contratações. (negritou-se)
O que se vê, portanto, é que existe a possibilidade de que o consumidor tenha cerceada sua liberdade de escolha ao ser tacitamente obrigado a fornecer determinadas informações sobre sua vida financeira, bem como de que a ele seja dispensado o mesmo tratamento dado a pessoas em situação diferenciada. Em outras palavras, as garantias da liberdade de escolha e da isonomia estariam sendo permanentemente ameaçadas.
DIREITO À INTIMIDADE E PRIVACIDADE
Por conseqüência da aparente vinculação da figura do bom pagador àquele que esteja inserido no banco de dados do "Cadastro Positivo de Crédito", dessume-se que oss direito à intimidade e à vida privada do consumidor estariam sendo do mesmo modo aviltados, pois seus dados financeiros seriam expostos e "devassados" por fornecedores ávidos em capturar as boas oportunidades de negócio, com o menor risco possível.
Lembre-se que a última alteração proposta ao Projeto de Lei acerca da necessária autorização prévia do consumidor para inclusão do seu nome no cadastro, foi festejada, por ter lhe dado "poderes" para dispor do seu interesse. No mesmo sentido, observe-se que a nova redação dada ao dispositivo suprimiu a possibilidade de concessão de informações sobre as características das obrigações contraídas, permitindo apenas a comunicação acerca do seu adimplemento, o que também é salutar, por proteger, sob certo aspecto, a privacidade do consumidor.
DA SUJEIÇÃO DO CONSUMIDOR
O CDC tem como pilar a consagração do postulado de que o consumidor é a parte hipossuficiente da relação consumerista e por isso, a ele devem ser dadas garantias de proteção contra os abusos que porventura venham a ser manejados pelas instituições empresariais (artigo 4º, I, CDC).
O domínio das informações financeiras dos consumidores submetem os mesmos ao "poder" das empresas que, sabedoras cada vez mais da vida financeira dos mesmos, terão subsídios para gerenciar políticas específicas, tornando ainda mais vulnerável a parte mais desprotegida da relação de consumo.
DO NECESSÁRIO JUÍZO DE PONDERAÇÃO
Viu-se que embora atenda ao interesse do mercado, tomado tanto do ponto de vista do fornecedor, quanto do consumidor, por permitir a concessão de taxas de juros personalizadas, além de dar maior segurança às relações instituídas, aquecendo o mercado e possibilitando maior vulto de negociações com o menor risco possível, a instituição do "Cadastro Positivo de Crédito" também pode apresentar seu lado "negro", por possibilitar a ameaça de diversos direitos consagrados não só no CDC, como na própria Carta Federal, especialmente aqueles que tragam ínsito o ideal de proteção do consumidor, o hipossuficiente da relação consumerista.
Em vista do conhecimento dos pontos positivos e negativos que envolvem a questão, é necessário considerar que o "duelo" entre o direito à informação, à livre iniciativa e ao desenvolvimento econômico e financeiro, de um lado, e do outro, o direito de escolha, à intimidade, à vida privada, à dignidade da pessoa humana, deve ser solucionado com a resposta mais adequada e equilibrada possível, de modo a não se impedir o avanço dos mecanismos de aquecimento da economia, bem como não se cometer um retrocesso, extirpando ou comprometendo os avanços legais e sociais, tão arduamente conquistados, de que gozam os consumidores na atualidade.
Tais impasses podem ser resolvidos com as respostas das seguintes indagações: No conflito de princípios e valores, qual deles deve prevalecer sobre o outro? E mais, como se chegar a uma solução comprometendo o mínimo possível das garantias em conflito?
São essas questões que devem ter em mente o legislador pátrio ao elaborar a norma definitiva, já que o cadastro positivo será altamente benéfico para a sociedade, desde que seu uso se restrinja aos propósitos para os quais foi criado, facilitando a concessão e obtenção de crédito e assim, estimulando a economia, sem impor obstáculos à garantia dos direitos dos consumidores.
NOTAS
1 A redação originalmente proposta era: "§ 6º No fornecimento de produtos ou serviços que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor informará aos sistemas de proteção ao crédito, para formação de cadastro positivo, as características e o adimplemento das
obrigações contraídas, dispensando-se, na hipótese, a comunicação a que alude o § 2º do art. 43."
2 Ressalte-se que diversos órgãos de defesa do consumidor têm atuado ativamente contra o Projeto de Lei em tela, inclusive mediante o envio de carta ao Presidente da República, tal como fez o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
BIBLIOGRAFIA
Positivo, mas nem tanto!. Revista do IDEC online, São Paulo, 2007.
MALDONADO, José Carlos de. Direito do Consumidor. Fundamentos Doutrinários e Visão Jurisprudencial. 4ª ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010.
LUCCA, Elcio Aníbal de. Cadastro Positivo, um consenso. Boletim Jurídico Serasa Legal. São Paulo. Setembro de 2006.
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, Lúmen Iuris, Rio de Janeiro, 2000.