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A inconstitucionalidade da Lei piauiense nº 6.041/2010, que tributa as compras pela internet

18/01/2011 às 09:59
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Ao tributar mercadorias e bens oriundos de outras unidades da federação, a lei piauiense, indubitavelmente, afronta o texto constitucional.

Foi publicada no Diário Oficial do Estado do Piauí de 30 de dezembro de 2010 a Lei nº 6.041/2010 que "Dispõe sobre hipótese de incidência do Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS", com a seguinte redação:

Art. 1º Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, de que trata a Lei nº 4.257, de 06 de janeiro de 1989, incidirá sobre as entradas neste Estado, de mercadorias ou bens oriundos de outras unidades da Federação destinados a pessoa física ou jurídica não inscrita no Cadastro de Contribuintes do Estado do Piauí – CAGEP, independentemente de quantidade, valor ou habitualidade que caracterize ato comercial.

Parágrafo único. O valor do ICMS, a ser exigido na hipótese de que trata o caput, corresponderá a uma carga tributária líquida entre 4,5% (quatro e meio por cento) e 10% (dez por cento) aplicada sobre o valor da operação constante no respectivo documento fiscal, conforme disposto em regulamento.

Art. 2º Ato do poder Executivo regulamentará a aplicação do disposto nesta Lei.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Inobstante não faça referência a operações que importem em mudança de titularidade de mercadorias, em ostensiva presença nos meios de comunicação piauienses, agentes políticos verberam perdas financeiros do Estado com as compras feitas pela internet, em empreendimentos localizados em outros estados da Federação.

Em entrevista [01] concedida ainda em dezembro de 2010, o Secretário de Fazenda do Estado alegava perdas no montante de R$ 12 milhões em ICMS no ano de 2009, imputadas ao crescimento das transações via internet, indicando para a necessidade de tributação de operações do tipo.

Já no mês de janeiro [02] de 2011, o mesmo gestor alegava perdas no montante de R$ 50 milhões em ICMS por ano, o que leva à conclusão de que o ato normativo em questão visa, primordialmente, ao fomento da arrecadação estadual com a tributação dos bens adquiridos no comércio eletrônico.

Se parecia temerário, do ponto de vista jurídico, o anúncio da exação, a edição da Lei nº 6.041/2010 superou a pior das expectativas: não apenas sua pobre redação, mas também, e principalmente, as gritantes inconstitucionalidades saltam aos olhos.

Nos termos do inciso V do art. 150 da Constituição, é vedado aos entes federativos "estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público". É o que a doutrina denomina princípio da liberdade de tráfego.

No magistério de Kiyoshi Harada [03],

O referido princípio é uma decorrência natural da unidade econômica e política do território nacional. Objetiva assegurar a livre circulação de bens e pessoas ou meios de transportes, que não pode ser limitada ou embaraçada por tributação interestadual ou intermunicipal, ressalvada a cobrança de pedágio.

Aquela norma básica visa a impedir barreiras fiscais entre os membros da federação e, em última análise, o cerceio ao livre ir e vir, igualmente previsto na Carta, em seu art. 5º, XV.

A Lei nº 6.041/2010, quando na cabeça de seu art. 1º assenta que o ICMS "incidirá sobre as entradas neste Estado, de mercadorias ou bens oriundos de outras unidades da Federação",não se duvida, é tentativa deliberada de impedir ou dificultar o ingresso, no Estado do Piauí, de mercadorias e bens provenientes de outros Estados da Federação, encerrando flagrante inconstitucionalidade à luz dos arts. 5º, XV e 150, V, da Constituição, tendo em vista que tributa a simples entrada em território piauiense.

Por conseqüência, tem-se, também, a inconformidade da Lei Estadual ante a Constituição Federal quando esta, em seu art. 152, veda expressamente o estabelecimento de diferenças tributárias entre bens e serviços de qualquer natureza em razão de sua procedência, evidenciando o chamado princípio da não-discriminação.

Leciona Paulo Carvalho de Barros [04] que

a procedência e o destino são índices inidôneos para efeito de manipulação de alíquotas e da base de cálculo pelos legisladores dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

Ao tributar "mercadorias e bens oriundos de outras unidades da federação", a Lei piauiense, indubitavelmente, afronta o texto constitucional que, de maneira assertiva, impede a discriminação com base no destino ou procedência de bem ou serviço.

Relativamente à matriz constitucional do ICMS, as inconstitucionalidades não cessam.

Da leitura do art. 1º da Lei nº 6.041/2010, resta evidente o espírito da norma: a bitributação de operações interestaduais que destinem bens ao consumidor final não contribuinte.

Reza o dispositivo que a exação se dará sobre os bens "destinados a pessoa física ou jurídica não inscrita no Cadastro de Contribuintes do Estado do Piauí – CAGEP [05], independentemente de quantidade, valor ou habitualidade que caracterize ato comercial".

O dispositivo vilipendia o art. 155, § 2º, inciso VII, alínea b, da Carta Política, que estabeleceu que a adoção da alíquota interna (do Estado de origem) quando o destinatário da mercadoria não for contribuinte de ICMS.

Veja-se que o constituinte não equiparou operações internas em que incide o ICMS àquelas em que o consumidor final localiza-se em outro Estado, mas tão-somente definiu as alíquotas em razão da situação do consumidor final – se contribuinte ou não.

Assim, quando operação interestadual destina bem a não contribuinte, a alíquota adotada será aquela do Estado onde se deu a operação, pertencendo a este ente federativo o tributo devido. Para Roque Antonio Carraza "a Constituição fez coincidir, como regra, o aspecto espacial da hipótese de incidência possível do ICMS, com os limites geográficos da entidade tributante" [06].

A incidência de ICMS sobre operação interestadual nos moldes do que estabelecido pelo art. 1º da Lei nº 6.041/2010, portanto, ao ultrajar o art. 155, § 2º, inciso VII, alínea b, da Constituição Federal, encerra bitributação jurídica vedada pela expressa disposição constitucional que assenta a competência do Estado de origem para integrar o pólo ativo a relação jurídica tributária.

Se a Lei Fundamental confere ao Estado de origem a aquela capacidade, a exação instaurada pelo art. 1º da Lei piauiense invade prerrogativa constitucional de unidade federativa diversa e, em conseqüência, institui execrável bitributação.

Quanto às alíquotas previstas no parágrafo único do art. 1º da Lei, a inconstitucionalidade resta ainda mais evidente.

Estabelece o art. 155, § 2º, VI da Carta que as operações relativas à circulação de mercadorias não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais, a fim de se evitar uma guerra fiscal entre os Estados.

A teor daquele dispositivo do Diploma Máximo, deve o Senado Federal fixar por resolução as alíquotas máximas do ICMS para tais operações, o que fez pela Resolução nº 22, de 19 de maio de 1989, estabelecidas em 12%.

Não há dúvida, portanto, que ao fixar alíquotas variáveis entre 4,5% e 10% da operação tributada, o parágrafo único do art. 1º da Lei estadual nº 6.041/2010 apresenta-se flagrantemente inconstitucional em cotejo com o art. 155, § 2º, IV da Constituição.

De outra banda, considerando-se o ICMS interno recolhido ordinariamente, o estabelecimento das alíquotas inconstitucionais sobre o valor da operação elevará a carga tributária a níveis esdrúxulos, evidenciando-se o confisco vedado pelo art. 150, IV do Pacto Fundamental.

Inocêncio Mártires Coelho [07] assevera, referenciando Manoel Cavalcante de Lima Neto [08], que

quando a Constituição proíbe a tributação "com efeito de confisco", o que está a dizer é que a propriedade privada, ao mesmo tempo em que fornece o substrato por excelência para a imposição fiscal, exibe a barreira contra o tributo no seu contorno máximo, e que, por isso, para os fins dessa proteção constitucional, são confiscatórios os tributos que absorvem parte considerável do valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem o exercício de atividade lícita e moral.

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É de se dizer, ainda, que o art. 1º do inconstitucional ato normativo ultraja o próprio âmbito constitucional de incidência do ICMS, delimitado no art. 155, II da Carta Magna.

Apesar da idéia que a literalidade da denominação possa trazer, o ICMS não é tributo incidente sobre a mera circulação de mercadorias ou serviços. O termo circulação trata da circulação jurídica, que implica transferência de titularidade, e não o mero deslocamento físico.

Geraldo Ataliba [09], ladeado pela melhor doutrina, leciona que

a ênfase deve ser posta no termo "operação" mais do que no termo "circulação". A incidência é sobre operações e não sobre o fenômeno da circulação.

O fato gerador do tributo é a operação que causa a circulação e não esta.

Tal entendimento encontrou ressonância no próprio STF desde o julgamento do RE 74852, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, em 20 de outubro de 1972, publicado no DJ 10 de novembro do mesmo ano.

Ao tributar a simples entrada de mercadoria ou bem no Estado, a Lei nº 6.041/2010 refoge ao escopo constitucional do ICMS delineado no art. 155, II da Carta Política, o que, por si só, se afigura inconstitucional.

Assim, nem mesmo a disposição do art. 146, III, alínea a, da Constituição, que prevê a definição de hipótese de incidência de tributo mediante Lei Complementar, possibilitaria a exação sobre a mera entrada de bens e mercadorias no Estado do Piauí, o que, aliás, foi instituído mediante Lei Ordinária Estadual.

De mais a mais, para se configurar mercantil, é mister que a operação tenha por objeto uma mercadoria.

O mesmo art. 155, II da Constituição Federal prevê que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre as operações relativas à circulação de mercadorias. A Lei piauiense, no entanto, estende a exação aos bens, que com mercadorias não se confundem.

Segundo Roque Antonio Carraza [10], mercadoria

é o bem móvel, sujeito à mercância. É, se preferirmos, o objeto da atividade mercantil, que obedece, por isso mesmo, ao regime jurídico comercial.

Não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão-somente aquele que se submete à mercância. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem imóvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria.

Ora, se a tributação sobre mera circulação física de mercadoria não tem guarida constitucional, com menos razão a simples circulação de bens, que, nos termos da Lei nº 6.041/2010, levaria à exação sobre a entrada de quaisquer coisas, em quaisquer circunstâncias, não apenas aquelas relativas à mercância, evidenciando-se, mais uma vez a violação ao art. 155, II, bem assim aos precitados arts. 5º, XV e 150, V da Magna Carta.

A se tomar pelas graves inconstitucionalidades sucintamente argüidas, não é de se estranhar que a voracidade do Fisco estadual avance indiscriminadamente sobre os mais variados atos da vida quotidiana, conspurcando a liberdade, a dignidade e a propriedade dos cidadãos.

A internet mudou o comportamento das pessoas, inclusive seu modo de consumir. A inclusão digital, que ainda engatinha, já é bem sentida pelo mercado: em 2009, as classes C, D e E já respondiam por 51%, em números absolutos, das compras do comércio eletrônico, um mercado com faturamento de R$ 10,6 bilhões [11].

Não se duvida das perdas que a instalação das principais empresas do e-commerce nos grandes centros provoca aos Estados menos desenvolvidos, contudo, penalizar o consumidor – que na condição de contribuinte de fato arcará com a nova exação – como forma de compensação de uma desigualdade que deve ser discutida no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária ou do Congresso Nacional, lançando mão de legislação flagrantemente inconstitucional, não se apresenta a melhor saída.


Notas

  1. SENA, Yala. Governo do Piauí vai cobrar imposto para compras na internet. CidadeVerde.com. Disponível em: <http://www.cidadeverde.com/governo-do-piaui-vai-cobrar-imposto-para-compras-na-internet-69519>. Acesso em: 13 jan. 2011.
  2. GUEDES, Mussoline. Compras pela internet no PI crescem 541% em um ano. Diário do Povo do Piauí, Teresina, p. 3, 15 jan. 2011.
  3. Direito Financeiro e Tributário. 18. ed. rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2009, p. 374.
  4. Curso de Direito Tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 184.
  5. O Decreto nº 13.500, de 23 de dezembro de 2008 - Regulamento do ICMS do Estado do Piauí, estabelece:
  6. Art. 177. O cadastro de contribuintes é o registro centralizado de pessoas e de estabelecimentos obrigados à inscrição, relacionados, direta ou indiretamente, com as operações relativas ao ICMS.

    ...

    Art. 182. São obrigados à inscrição no CAGEP antes de iniciarem as atividades:

    I – o comerciante, o industrial, o produtor e o extrator de mercadorias;

    II – o prestador de serviços de transportes interestadual e intermunicipal e de comunicação;

    III – a cooperativa;

    IV – a instituição financeira e a seguradora, observado os arts. 1.035 ao 1.037;

    V – a empresa de construção civil ou similar;

    VI – a concessionária ou permissionária de serviço público de transporte, de comunicação e de energia elétrica;

    VII – o prestador de serviços não compreendidos na competência tributária dos municípios, que envolvam fornecimento de mercadorias;

    VIII – o prestador de serviços compreendidos na competência tributária dos municípios, que envolvam fornecimento de mercadorias ressalvadas em Lei Complementar;

    IX – o armazém geral e congênere;

    X – as demais pessoas naturais ou jurídicas, de direito público ou privado, que praticarem, habitualmente, em nome próprio ou de terceiros, operações relativas à circulação de mercadorias ou à prestação de serviços, conforme definido neste Regulamento.

    XI – os Leiloeiros Oficiais, observado o disposto nos arts. 821 a 829.

  7. ICMS. ed. 14. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42.
  8. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1399.
  9. Direitos Fundamentais dos Contribuintes. Recife: Nossa Livraria, 2005, p. 230-231.
  10. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, 1. ed. São Paulo: RT, 1966, p. 246, citado por CARRAZA, Roque Antonio. ICMS. ed. 14. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42.
  11. ICMS. ed. 14. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 42-43.
  12. Dados do IBOPE Media e e-commercebrasil.org.
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Sobre o autor
Rodrigo Melo Mesquita

graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí, especialista em Direito Eleitoral pela Universidade Anhanguera-UNIDERP em pareceria com o Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP, advogado em Teresina-PI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA, Rodrigo Melo. A inconstitucionalidade da Lei piauiense nº 6.041/2010, que tributa as compras pela internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2757, 18 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18290. Acesso em: 3 mai. 2024.

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