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Nascimento e morte de um boato: doação de crianças em Teresópolis

21/01/2011 às 16:58
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Momentos de catástrofe são grandes filtros humanos. Corajosos do cotidiano tantas vezes se acovardam. E em desprezados do senso comum surpreende-nos como heróis. E acontece também de aqueles que não teriam direito ao erro, se amesquinharem. Em Teresópolis, de tudo tivemos. A surpresa da coragem do mais humilde, alguma mesquinhez do graúdo de poder e os erros dos que deviam melhor se terem preparado. Mas vamos ao que é positivo.

Em alguns casos, brigas paroquiais foram esquecidas para que se formasse a ceifa da solidariedade. Quem acompanhou a história sabe que, em passado recente, a Vara da Infância, da Juventude e do Idoso desta Comarca foi traída pelas autoridades municipais em sua proposta de legítimo e necessário acordo para transição da execução das medidas socioeducativas e protetivas aos organismos municipais. Politicagem, intervenções desastradas, recomendações ministeriais equivocadas, assessorias falhas, tudo contribuiu para o desastre daquela tentativa de acordo, que proposto por uma respeitada Juíza com 35 anos de carreira foi taxado de "ilegal".

Entretanto, tão logo vinda a atual catástrofe, se viram somando esforços sob o mesmo teto e com o mesmo empenho, todo o pessoal da Vara da Infância com o povo da Secretaria de Desenvolvimento Social e respectivos CREAS, além do Conselho Tutelar. Todos se ajudando mutuamente, muito pouco preocupados com "legalidade" formal. Pessoas capazes de união. Dividimos viaturas, diligências, mesas, anotações, socorros, cadastros. Lideranças sendo acatadas independente do crachá ou carimbo utilizado, apenas porque traziam a palavra mais correta, o comando mais necessário ao momento de crise.

Aqui, a primeira lição. Tragédia não admite vaidades. É impossível trabalhar em segmento de atividade estatal que lide com problemas sociais sem a edificação da harmonia de esforços e da conjugação de rotinas de maneira a evitar sobreposição e retrabalho, ou – pior – a desassistência completa que tantas vezes resulta da carência de diálogo.

Nós, da Vara da Infância e da Juventude de Teresópolis, independente de outras considerações políticas ou organizacionais, somos testemunhas do empenho da Secretaria de Desenvolvimento Social e sua equipe. Sabemos que a observação recíproca será também verdadeira. Se podemos todos veementemente protestar contra o descaso de décadas que precedeu a emergência, não nos somamos às críticas gerais quanto à condução da crise. Havia desorganização? Muita. Mas duvidamos que existisse expertise suficiente ao tamanho inesperado da mega emergência. Sabemos do desastrado incidente com a Cruz Vermelha, essa operosa e valiosa organização, de ímpar história. Mas preferimos atribuí-lo a uma trapalhada em má hora. Mais pausadamente, mais à frente far-se-á toda a crítica necessária, até para que os erros ensinem os acertos que nunca mais poderão faltar. Principalmente a necessidade de um Comando de Crise Unificado, que em muito teria facilitado toda a operação, bem como um briefing diário e um método de comunicação mais célere entre as várias organizações.

Preferimos entender que lições enormes foram aprendidas, e que os mártires de 12 de janeiro não serão esquecidos. Em tributo à sua memória é imperativo que todas as autoridades serranas descubram a humildade e o trabalho solidário, também no cotidiano da administração geral. Administração esta que deverá ser mais proativa, prudente e assertiva. Aprendendo especialmente com o alerta da consultora externa da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, Debarati Guha-Sapir: "O Brasil não é Bangladesh e não tem nenhuma desculpa para permitir, no século 21, que pessoas morram em deslizamentos de terras causados por chuva."

As duras palavras da consultora repercutem ainda mais quando se tem notícia da existência – divulgada no Jornal Nacional de ontem (20/01) - de equipamento montado em Petrópolis pelo Laboratório Nacional de Computação Científica, que teria sido capaz de prever a emergência climática. Criminosa se torna a inércia governamental que não definiu responsabilidades operacionais a tempo de se ter essa estrutura preciosa em funcionamento.

Claro que se poderia argumentar que o mero alerta não teria dado conta de proteger as famílias, eis que inexiste conscientização e treinamento da população, logística de deslocamento, áreas de abrigamento preventivo, etc. Mas que venham agora, todas as providências. O 12 de janeiro exige.

Mas voltando à ação pós catástrofe e à confusão referida no título. Em pessoa, a Juíza da Vara da Infância e da Juventude, Inês Joaquina Sant'Ana Santos Coutinho, montou seu posto de comando ali junto à triagem dos desabrigados. Foi oportuníssima a intervenção, para efetuar rápida verificação da situação das crianças e adolescentes. Como a maioria dos vitimados perdeu documentos, o corpo técnico da Vara atuou por meio de entrevistas, detectando parentescos, de modo a formalizar, conforme a situação, o termo de guarda ou de entrega a um adulto responsável. Até o momento em que redijo o presente (21//01/11 – 10:00 hs) não se teve a constatação de orfandades. O que indica que foi imensurável a tragédia que ceifou famílias inteiras. Provavelmente crianças se encontrarão ainda soterradas. Dentre os sobreviventes, todas as crianças estão acompanhadas de parente adulto responsável. Na maioria dos casos, pai e mãe.

Mas a solidariedade se espraiava de uma tal maneira que se tornava quase impossível organizá-la de forma lúcida, no primeiro momento. Eu mesmo, chegando ao Pedrão no primeiro dia com donativos fui atropelado por voluntários que rapidamente esvaziaram o carro, de maneira atabalhoada, tamanha a necessidade e tantos os braços disponíveis para o apoio. Pessoas se esbarravam, espremidas no corredor lateral do ginásio. Bonito de se ver, complicado de administrar, pois os mutirões espontâneos se espalharam pela cidade.

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Nessa condição confusa, com informações entreouvidas aqui e ali, surgiu o boato da existência de "centenas" de crianças órfãs. O comentário preocupado de um diligente servidor municipal que atuava no IML na identificação de corpos, gerou a resposta casual de um Juiz não especializado que atuava no mesmo local, de que se fosse muito grande o número de órfãos, se poderia fazer cadastramento para lares acolhedores. O servidor passou o comentário adiante e isso, chegando à Comunicação Social da Prefeitura Municipal, após checagem com uma fonte da própria Prefeitura (que tinha como base o mesmo servidor já mencionado) gerou um release distribuído para todo o Brasil que conjugava na construção da sua equivocada conclusão: a presença da Juíza da Infância e da Juventude no centro de triagem de desabrigados; a operação da sua equipe técnica, de identificação das crianças e suas famílias, com a lavratura dos termos já mencionados; e a possibilidade legal da família acolhedora. A conclusão da nota municipal era de que a Vara da Infância e da Juventude estaria cadastrando famílias para adoção emergencial. A partir daí houve uma inútil enxurrada de pretendentes, consumindo grande energia para esclarecimento e dispersão.

Sabemos que a intenção de todos, jornalistas, pretendentes, foi de solidariedade, apoio e cuidado. Mas o lapso – já reconhecido em nota de retratação da Prefeitura (http://teresopolis.rj.web.br.com/noticias/indexfull2.php?sec_not_id=483) - de não se ter aferido a veracidade da informação junto a fontes autorizadas da Vara especializada, provocou "viralização" da errônea informação na internet, a romaria de famílias ao Pedrão para se habilitarem à adoção, telefonemas de todos os pontos do país e do exterior, reportagens de telejornais estrangeiros querendo logo acionar uma rede internacional de adoção, e – claro – protestos virulentos dos mais informados sobre os aspectos legais do caso, inclusive os Grupos de Adoção e Juízes especializados de outras Comarcas. A questão tomou proporções maiores quando chegaram denúncias ao Disque-100 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, de que estariam já ocorrendo entregas ou adoções irregulares! Aliás, muitos dos pretendentes que nos procuraram (e entendemos que usaram o termo sem nenhuma maldade) já falavam em "doações" de crianças. Por conta disso tudo, a Ministra Maria do Rosário veio a Teresópolis efetuar suas apurações, constatando a inverdade.

Vejamos a cronologia: em 15/01 a Prefeitura divulga seu release. Em 16/01, a Juíza da Vara da Infância emite o desmentido. Demos entrevistas sobre o tema. A Juíza presta declarações a todas as redes de TV que se encontravam em Teresópolis. É insuficiente, pois o assunto já se espalhara sem controle. Em 19/01 a Prefeitura, instada pela Vara emite às 10:30 da manhã,"Nota de retratação" sobre seu release anterior. Às 12:45 horas, em Teresópolis, a Ministra Maria do Rosário, já melhor informada, concede entrevista coletiva onde desmente a informação de adoções irregulares, corroborada na mesma ocasião pela Juíza da Vara da Infância de Teresópolis. Hoje, quando escrevo, arrefeceu a demanda de famílias "adotantes".

Ora, em Teresópolis existe um trabalho muito sério na área infanto-juvenil capitaneado pela Juíza Drª Inês Joaquina. Aqui existe um dos Grupos de Adoção mais atuantes. Aqui ocorre anualmente grande evento, quando do Dia Nacional de Adoção, no mês de maio. Dada a qualidade do trabalho, as nossas técnicas (a psicóloga Eliana Bayer Knopman e as assistentes sociais Cátia Regina da Silva Aguiar e Tania Maria Xavier Luna) estão entre as mais requisitadas para palestras e eventos sobre adoção.

Além de tudo isso, o rito do processo de adoção é necessariamente cauteloso, incluindo habilitação prévia, visita domiciliar ao pretendente, entrevista psicológica, comprovação de antecedentes, dentre outros cuidados. Mesmo a candidatura a "Lar Acolhedor" é precedida de enorme cautela. Os candidatos habilitados ingressam numa fila única, do Cadastro Nacional de Adoção. Quando surge uma criança em condições de acolhimento, este é o cadastro consultado, sendo convocada a família pretendente da vez que inicia por um estágio de convivência com a criança. Ou seja, não existe hipótese de "adoção de urgência".

Fica, então, a outra lição necessária. Fundamental a qualquer jornalista confirmar com fontes devidamente autorizadas as informações de relevo que pretenda divulgar, ainda quando elas tenham aparência de benéficas e aparentemente lógicas. A confusão levou à cruel piada, compreensível pela severa crítica nela embutida à irreal hipótese de adoções apressadas, entreouvida nos corredores do Pedrão: "traga um saco de feijão e leve uma criança".

Portanto, saibam, todos: em Teresópolis não se faz doação de crianças. No mais, persiste a necessidade de apoio e solidariedade. Muitas organizações tem procurado as autoridades da cidade. A crise, a partir do momento em que se completarem os resgates e sepultamentos, ganhará contornos dramáticos pelo caráter de continuidade "cotidiana". Tudo que não precisamos é de nos acostumarmos à realidade de tantos desabrigados e desalojados. Muito trabalho ainda se fará necessário. Que nele não mais ocorra nem desinformação, nem falta de harmonia institucional. Que a humildade nos comande.

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Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. Nascimento e morte de um boato: doação de crianças em Teresópolis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2760, 21 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18323. Acesso em: 22 dez. 2024.

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