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Leis ordinárias e leis orgânicas no sistema constitucional espanhol

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IV – A busca de características definidoras da lei orgânica

Se os conceitos tradicionais de lei e o procedimento legislativo apontado pela Constituição espanhola não podem separar substancialmente a lei orgânica da lei ordinária (salvo, evidentemente, a mera existência de quórum especial de aprovação das leis orgânicas), devemos buscar na doutrina constitucional características especiais que confiram identidade própria às leis orgânicas.

Como é de conhecimento comum na literatura constitucionalista espanhola, a instituição da espécie legal chamada "ley orgánica" na Constituição de 1978 foi inspirada pela figura homônima francesa, a "loi organique", prevista na Constituição da 5ª República da França, de 1958[20].  Assim, se se busca uma resposta existencial sobre a identidade jurídica da lei orgânica, a investigação deve começar na França[21].

Na Constituição francesa de 1958, não existe um conceito de "loi organique". O que existe é um procedimento legislativo para sua criação (artigo 46), em que está prevista a necessidade de aprovação pelas duas Câmaras ou pela maioria absoluta dos membros de l’Assemblée nationale. Além do procedimento, também se faz menção no texto constitucional à necessidade de "loi organique" para desenvolver 31 matérias dispostas na Constituição[22]. Na verdade, de uma leitura simples da Lei Política da 5ª República, se pode constatar que em quase todas as matérias em que o constituinte não logrou concretizar todas as regras tratadas genericamente no texto constitucional, há menção à "complementação" por uma lei orgânica. Esse fato, numa primeira análise, gera a impressão de que, sempre que uma matéria não pôde ser regulada inteiramente pela Constituição devido à ausência de consenso constitucional suficiente, remeteu o constituinte francês a decisão sobre seu conteúdo normativo à inovadora espécie da loi organique.

Partindo dessa perspectiva, é compatível com o texto constitucional francês a ideia de que a existência de uma espécie legal como a lei orgânica se justificaria, sob a ótica do poder constituinte, em virtude da impossibilidade de se alcançar, no momento de produção da Constituição, o consenso político suficiente para regular determinadas matérias. Deste modo, não se chegando a um consenso a priori, reservar-se-ia às leis orgânicas a "complementação" da Constituição. Desse ponto de vista, a lei orgânica seria um anexo do texto constitucional, talvez formando o que se chama de bloco de constitucionalidade, tendo um "valeur quasi-constitutionnelle"[23].

Essa mesma ideia foi trabalhada no seio acadêmico espanhol, desenvolvendo-se uma análise da lei orgânica desde o ponto de vista político-institucional que observa na lei orgânica um prolongamento do pacto constitucional[24]. Em sua substância, essa teoria se baseia nas mesmas razões que orientaram a doutrina francesa.

Essa primeira tentativa de distinção não nos parece razoável (em especial, para a realidade constitucional espanhola). Em primeiro lugar, se não há consenso suficiente para tratar determinadas matérias no momento do exercício do poder constituinte originário, o natural seria que essas matérias fossem tratadas pelo legislador ordinário. Em verdade, a existência em si mesma de uma constituição é uma limitação da liberdade de autogoverno de cada geração, já que esta está sempre limitada às decisões políticas que a geração constituinte ajustou como regras e princípios básicos de convivência e de organização estatal. Por isso, não é adequado que toda matéria seja elevada ao nível constitucional. Somente os acordos indispensáveis devem sê-lo. Assim, se no momento constituinte não existe ainda esse consenso, não há sentido algum em limitar a liberdade das gerações futuras e o princípio democrático majoritário por meio da criação de uma espécie legal com quórum especial de aprovação. Deste modo, não cremos que a complementação de um consenso constitucional inexistente possa justificar a existência em si mesma da lei orgânica enquanto instituto legal autônomo.

Cremos também que é especialmente inadequada a teoria da complementação constitucional ao sistema jurídico espanhol, visto que a constituição da Espanha de 1978, diferentemente da francesa de 1958, é muito mais restrita (ainda que, em certos casos, também mais imprecisa) na definição das matérias que são reservadas à lei orgânica. Assim, em vez da discriminação de mais de trinta hipóteses (como no caso francês), a Constituição espanhola reserva às leis orgânicas o desenvolvimento de direitos fundamentais, os Estatutos de Autonomia, o regime eleitoral geral (artigo 81.1, CE) e outras 19 matérias discriminadas[25] no texto constitucional. Apesar de não serem poucas as matérias reservadas, não se pode concluir que todas as hipóteses de desenvolvimento da Constituição espanhola foram atribuídas às leis orgânicas, como parece ser o caso francês. Desse modo, se existem matérias que "desenvolvem" a Constituição e não são reservadas à lei orgânica, a teoria da complementação constitucional não pode ser aceita no sistema espanhol.

Na realidade, a ideia de complementação constitucional pode ser defendida para explicar as leis orgânicas que aprovam Estatutos de Autonomia ou que autorizem a celebração de tratados internacionais que transferem competências derivadas da Constituição. Nessas duas hipóteses, como bem se pronunciou Mercè Barceló i Serramalera, a lei orgânica "deviene funcionalmente Constitución"[26]. Sem embargo disso, esses dois tipos especiais de lei orgânica diferem substancialmente de todos os outros, têm natureza distinta que não pode ser exposta suficientemente nas breves linhas deste artigo. Por essa razão decidimos excluir do âmbito deste estudo essas duas espécies de lei orgânica. Assim, quando nos referimos às leis orgânicas, queremos mencionar todas as leis orgânicas que não se encontram nessas duas hipóteses. E para essas leis orgânicas que "não se transmutam funcionalmente em Constituição" negamos a característica de complementação do texto constitucional.

A segunda forma de diferenciar substancialmente a lei orgânica é defender que ela materializa um apoio democrático mais intenso, sendo assim uma fonte do direito reforçada. De acordo com essa ideia, pelo fato de ser aprovada por maioria absoluta de votos e não por mera maioria simples, a lei orgânica teria mais respaldo democrático que a lei ordinária. Esse mesmo raciocínio também é utilizado a fim de defender uma superioridade hierárquica da lei orgânica sobre a lei ordinária.

A nosso ver, a tese da superlegitimação democrática da lei orgânica também está equivocada. Especialmente na Espanha, onde prevalece o sistema parlamentarista, a formação de maiorias absolutas é relativamente fácil. E mais, a existência de uma maioria absoluta é em si mesma uma condição para a constituição do Governo. Desta maneira, se o Governo sempre tem maioria parlamentar e se essa sempre deve estar de acordo nos temas legislativos, não há nenhuma diferença substantiva entre o alcance de uma maioria absoluta ou de uma maioria simples. Se a exigência constitucional fosse de uma maioria sobrequalificada, com necessidade de voto positivo de uma maioria expressiva que demonstrasse não só uma prevalência de posições e interesses senão também um consenso compreensivo, nossa leitura poderia ser diferente. De fato, uma maioria de, por exemplo, dois terços do Parlamento, no âmbito da realidade política espanhola, representa uma decisão política claramente consensual e suprapartidária. Uma maioria absoluta, sem embargo, não chega sequer a ser um consenso; é uma mera decisão majoritária. Portanto, não reconhecemos maior legitimidade democrática à votação de uma lei orgânica que à aprovação de uma lei ordinária.

A terceira forma de explicar a especificidade conceitual da lei orgânica consiste em defender que sua finalidade seria estabelecer regras sobre a "organização das instituições básicas do Estado"[27]. Aqui estaria a justificativa ao nome deste tipo legal: a lei é orgânica porque organiza as instituições estatais[28]. Esta seria uma linha de pensamento muito próxima à que sustenta a característica de complementariedade da lei orgânica, quer dizer, essa visão segundo a qual a lei orgânica se define por seu objetivo de tratar da organização do Estado é plenamente compatível com a perspectiva de que a lei orgânica seria um complemento da Constituição. Com efeito, se organizar as instituições básicas do Estado é uma tarefa própria da Constituição, e se o constituinte traspassa parte dessa função ao legislador "orgânico", este, em certo sentido, estaria complementando o texto constitucional.

Tampouco nos pode convencer essa explicação. Pensamos que em regras constitucionais procedimentais (como as relativas aos procedimentos legislativos) não há finalidades intrínsecas, senão regras de competência. Obviamente, em toda norma de organização há uma lógica de distribuição de tarefas. Não obstante, essa lógica não se confunde com uma finalidade, quer dizer, com a busca de um fim pensado como "bom" (avaliado positivamente). Em normas que reconhecem direitos ou impõem tarefas substantivas aos Poderes Públicos efetivamente existem finalidades; nas normas formais de organização e procedimento, não. Estas últimas espécies de normas são axiologicamente neutras; não se inclinam a finalidade alguma. Por isso, não se pode definir lei orgânica por sua suposta "finalidade" se no texto constitucional – na parte que trata da formação de leis orgânicas e leis ordinárias – só se pode encontrar normas de procedimento e competência.

Finalmente, a última forma de diferenciar a lei orgânica da lei ordinária é perceber que, ainda que sejam as duas espécies conceitualmente similares, há entre elas uma distinção de competência, segundo a qual algumas matérias são reservadas à lei orgânica e outras são do campo próprio da lei ordinária. Pensamos que essa é a perspectiva mais compatível com o texto constitucional espanhol. De fato, aqui, não se pode reconhecer um conceito distinto de lei orgânica e lei ordinária; nenhuma das perspectivas (funcional, de legitimidade democrática, de finalidade etc.) a partir das quais se pode intentar diferenciar as duas espécies legais são justificáveis da posição do direito constitucional espanhol positivado. A única possibilidade de distinção está na discriminação de competências entre uma e outra espécie legal.

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Dessa maneira, além do procedimento legislativo diferenciado (o qual, por si só, não é suficiente para firmar uma distinção conceitual, como já observamos anteriormente), a única diferença existente entre a lei ordinária e a lei orgânica está nas regras de competência previstas no artigo 81.1 e em outros diversos dispositivos normativos da Constituição espanhola. A partir dessas normas de competência, é possível enumerar as matérias que são reservadas às leis orgânicas na Espanha. São as seguintes:

i) Desenvolvimento de direitos fundamentais;

ii) Aprovação ou alteração dos Estatutos de Autonomia, assim como de normas de distribuição de competências administrativas e financeiras entre Estado e Comunidades Autônomas;

iii) Aprovação ou alteração do regime eleitoral geral;

iv) Regulação das bases da organização militar;

v) Instituição e regulação das funções do Defensor do Povo;

vi) Previsão de hipóteses de suspensão dos direitos relacionados à detenção preventiva e à inviolabilidade do domicílio e das comunicações em investigações correspondentes à atuação de bandos armados ou elementos terroristas;

vii) Resolução de dúvidas sobre a sucessão real;

viii) Estipulação de regras sobre a eleição dos Senadores;

ix) Regulamentação da iniciativa legislativa popular;

x) Regulamentação do referendo;

xi) Autorização para celebração de tratados internacionais que atribua a uma organização ou instituição internacional o exercício de competências derivadas da Constituição;

xii) Determinação das funções, princípios básicos de atuação e estatutos das forças e corpos de segurança;

xiii) Regulamentação da composição e competência do Conselho de Estado;

xiv) Regulamentação dos estados de alarme, de exceção e de sítio, e das competências e limitações correspondentes;

xv) Determinação da constituição, funcionamento e governo dos Juizados e Tribunais, assim como do estatuto jurídico dos Juízes e Magistrados de carreira;

xvi) Estabelecimento do estatuto e do regime de incompatibilidades dos membros do Conselho Geral do Poder Judicial, assim como de suas funções e da composição do Conselho;

xvii) Regulamentação da composição, organização e funções do Tribunal de Contas;

xviii) Alteração dos limites territoriais das províncias;

xix) Regulamentação do funcionamento do Tribunal Constitucional, do estatuto de seus membros, do procedimento ante o Tribunal e as condições para o exercício das ações, assim como da competência do Tribunal e das pessoas e órgãos legitimados para a interposição dos recursos ante o Tribunal.

Como se observa a partir do texto constitucional espanhol, as matérias reservadas às leis orgânicas são as mais variadas. Um jurista adepto à teoria da complementação do pacto constitucional afirmaria que os 19 temas anteriormente mencionados são, de uma forma ou de outra, sobrepostos a normas constitucionais e, por isso, poderiam ser considerados uma prolongação dessas normas. Deveras, há sempre um vínculo entre alguma norma constitucional e a norma "orgânica". Porém, esse vínculo não é exclusivo das leis orgânicas. Na verdade, quase toda matéria legal tem algum vínculo com normas constitucionais; isso se explica pela função central e primordial que a Constituição exerce hoje em diversos sistemas jurídicos ocidentais (e na Espanha não é diferente). No caso espanhol, é especialmente interessante assinalar que todos os princípios fundamentais sociais e econômicos (os quais, em outros sistemas constitucionais, são identificados como normas de direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais plenamente exigíveis judicialmente) previstos nos artigos 39 a 52, relativos à proteção da família, dos filhos, aos direitos laborais, à segurança social, ao direito à saúde, ao acesso à cultura, ao direito ao meio ambiente saudável, à proteção do patrimônio histórico, cultural e artístico, ao direito à moradia digna, à proteção dos deficientes físicos, sensoriais e psíquicos, à proteção dos cidadãos durante a terceira idade e à defesa dos consumidores, podem ser desenvolvidos por leis ordinárias, não havendo nenhuma reserva à lei orgânica. Ou seja, todas as normas que formam o núcleo do Estado Social espanhol estão no espaço de decisão da legislação ordinária.

Desta maneira, não acreditamos que haja uma racionalidade específica na reserva das matérias às leis orgânicas na Espanha. O que existe é uma decisão formal constitucional de reserva de algumas matérias às leis orgânicas e de outras às leis ordinárias. Essa decisão, para o jurista estudioso do Direito Constitucional, é uma verdade objetiva, pura e simples, uma realidade inquestionável, que deve ser reconhecida como dado e obedecida como norma. Sem embargo, essa decisão não nos revela nenhuma finalidade ou motivação; trata-se, simplesmente, de normas de competência que se traduzem na necessidade ou não de uma forma legal distinta, ainda que sejam ontologicamente semelhantes as duas formas possíveis.

Segundo nos parece, essa percepção de que não há diferença causal, ontológica ou teleológica entre lei orgânica e lei ordinária conduziu o Tribunal Constitucional da Espanha a adotar uma interpretação restritiva no reconhecimento das normas que estão reservadas à lei orgânica. De fato, a jurisprudência dessa Corte é no sentido de que, no sistema constitucional espanhol, a exigência de lei orgânica deve ser uma exceção, sendo a regra a lei ordinária, que é resultado da preponderância democrática da maioria parlamentar simples. Segundo consta na Sentencia 76/1983, "en un sistema democrático como el instaurado por nuestra Constitución, basado en el juego de las mayorías parlamentarias, por lo que la exigencia de que éstas sean cualificadas o reforzadas sólo puede tener carácter excepcional y ha de ser explícitamente prevista en la Constitución".

Na mesma sentença, motivado pela mesma linha hermenêutica restritiva, o Tribunal Constitucional decidiu que pela expressão "direitos fundamentais" contida no artigo 81.1 da Constituição da Espanha se deve interpretar somente os direitos previstos na Seção 1ª do Capítulo II[29], e não todos os que podem ser objeto de recurso de amparo, como defendia a corrente doutrinária mais expansiva.

Também motivado pela leitura restritiva das reservas de lei orgânica, o Tribunal Constitucional espanhol, na Sentencia 6/1982, decidiu que, em tema de direitos fundamentais, somente seu desenvolvimento "direto" justifica a exigência de lei orgânica[30]. Segundo decidiu o Tribunal, "el art. 81 de la C. E. se refiere al desarrollo 'directo' de los derechos fundamentales, pues este artículo y las otras muchas alusiones de la Constitución al instrumento de la Ley Orgánica en materias concretas, que, como se ha dicho, convierte a las Cortes en 'constituyente permanente' no puede extremarse, con los importantes problemas de consenso interno que conlleva, al punto de convertir el ordenamiento jurídico entero en una mayoría de Leyes Orgánicas, ya que es difícil concebir una norma que no tenga una conexión, al menos remota, con un derecho fundamental".

Finalmente, na Sentencia 127/1994, proferida em recursos de inconstitucionalidade contra a Lei ordinária 10/1988, que trata de regras sobre o funcionamento de televisões privadas, o Tribunal Constitucional confirmou de modo categórico sua jurisprudência no sentido de que a reserva de lei orgânica prevista no artigo 81.1 da Constituição deve ser interpretada da forma mais restritiva possível. Nesta sentença, o Tribunal decidiu que a regulamentação de funcionamento de televisões privadas não afeta diretamente o regime jurídico de direito à liberdade de informação e, assim, negou provimento aos recursos.

Cremos que a mesma razão hermenêutica que orientou as sentenças aqui comentadas deve ser aplicada a todas às matérias reservadas à lei orgânica. Se esta não difere em sua natureza da lei ordinária e se ela é excepcional no sistema constitucional espanhol, todas as hipóteses de reserva orgânica previstas na Constituição devem ser lidas restritivamente. E mais, sempre que estivermos em uma zona cinzenta, quer dizer, em uma dúvida interpretativa sobre a existência ou não de reserva de lei orgânica, devemos optar pela leitura que dá à lei ordinária a decisão sobre a matéria. Em outras palavras: em caso de dúvida, decida-se em favor do princípio democrático da maioria simples.

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Sobre o autor
Anselmo Henrique Cordeiro Lopes

Procurador da República. Mestre e Doutor (cum laude) em Direito Constitucional pela Universidad de Sevilla. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Anselmo Henrique Cordeiro. Leis ordinárias e leis orgânicas no sistema constitucional espanhol. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2767, 28 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18374. Acesso em: 2 nov. 2024.

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