V – Os conflitos entre lei ordinária e lei orgânica
Uma vez superada a questão de saber se uma matéria está ou não alcançada pela reserva de lei orgânica, é necessário indagar como devem ser resolvidos os conflitos entre lei orgânica e lei ordinária. A solução desse problema depende, antes de tudo, da resposta à seguinte pergunta: a relação entre a lei orgânica e a lei ordinária é de hierarquia ou de competência?
Como bem expõe Luis María Díez-Picazo, a hierarquia exige "una relación de supra y subordinación entre dos tipos normativos que son, en principio, aptos para regular una misma materia". Ao contrário, a competência "supone el reparto de materias entre dos tipos normativos", de maneira tal que "se excluye a radice la superposición de ambos tipos normativos"[31]. Assim, se se reconhece a existência da hierarquia entre lei orgânica e lei ordinária, se admite que as duas espécies normativas podem tratar de mesma matéria, hipótese em que prevaleceria a primeira. Por sua vez, sendo caso de competência, já não se pode reconhecer que, validamente, dois tipos legais distintos possam tratar da mesma matéria.
Escolhendo o critério da coincidência ou não da matéria, se chegaria, a nosso ver, à conclusão de que, no sistema constitucional espanhol, não há hierarquia entre a lei orgânica e a lei ordinária, porquanto elas não podem tratar da mesma matéria. Assim, ou uma matéria é reservada à lei orgânica, ou está no âmbito de competência da lei ordinária. Na lógica jurídica pura, não poderiam os dois tipos legais tratar da mesma matéria. Contudo, a questão não é simples. Essencialmente, o reconhecimento da hierarquia ou competência depende da adoção ou não de alguma das teorias que anteriormente expusemos sobre a distinção de natureza entre leis orgânicas e leis ordinárias.
Caso se entenda que a lei orgânica é um complemento da constituição, ou que a lei orgânica ostenta um plus de legitimidade democrática por ser aprovada por quórum de maioria absoluta, ou também que a lei orgânica é distinta por sua finalidade de organização básica do Estado, a conclusão mais verossímil será a superioridade hierárquica da lei orgânica e a inferioridade da lei ordinária. Assim, nesse caso, sempre que uma lei orgânica estivesse em conflito com uma lei ordinária, a primeira prevaleceria.
Diferentemente, caso se admita que não há diferença ontológica, de natureza, entre a lei orgânica e a lei ordinária e que, ademais do procedimento legislativo superficialmente distinto, a única distinção possível é de competência, a conclusão deve ser no sentido de que não existe hierarquia entre uma e outra espécie legal. Como já se pode perceber, é esta nossa opinião. Cremos que a lei orgânica e a lei ordinária têm o mesmo valor, quer dizer, têm a mesma natureza normativa. A solução do conflito, então, deve obedecer ao princípio da competência: se a matéria está reservada à lei orgânica e a lei ordinária dispõe sobre ela, esta última lei é inconstitucional por violar uma norma de competência. Se, por sua vez, uma matéria não está compreendida por norma de reserva de lei orgânica e ainda assim uma lei orgânica delibera sobre ela, teremos duas possibilidades interpretativas: ou (a) a lei orgânica é conhecida como lei ordinária e, desta forma, é validada; ou (b) a lei orgânica é declarada inconstitucional por violação de norma de competência. Pensamos que a primeira opção é a correta, uma vez que: (i) o procedimento legislativo da lei orgânica, na Espanha, é igual ao da lei ordinária, com a única exceção do quórum de aprovação, o qual, por ser superior, não pode invalidar a lei; (ii) a preservação da validade da lei – orgânica, neste caso – é conforme aos propósitos de segurança jurídica e é necessária sob a perspectiva democrática.
Desta maneira, concluindo que a teoria da competência é mais adequada e que uma norma "não-orgânica" introduzida em uma lei orgânica deve valer como norma de lei ordinária, é necessário também concluir que, neste caso, o conflito normativo deve ser resolvido por meio dos outros critérios disponíveis no sistema jurídico, quer dizer, por meio dos critérios de especialidade (Lex specialis derogat generali) ou de superveniência (lex posterior derogat priori).
O Tribunal Constitucional espanhol, na primeira oportunidade que teve para analisar a questão aqui examinada, também decidiu em favor da teoria da competência[32]. Colacionamos os fragmentos pertinentes da Sentencia 5/1981, ditada pelo Pleno em 13 de fevereiro de 1981:
"Cuando en la Constitución se contiene una reserva de Ley ha de entenderse que tal reserva lo es en favor de la Ley orgánica -y no una reserva de Ley ordinaria- sólo en los supuestos que de modo expreso se contienen en la norma fundamental (art. 81.1 y conexos). La reserva de Ley orgánica no puede interpretarse de forma tal que cualquier materia ajena a dicha reserva por el hecho de estar incluida en una Ley orgánica haya de gozar definitivamente del efecto de congelación de rango y de la necesidad de una mayoría cualificada para su ulterior modificación (art. 81.2 de la C.E.), pues tal efecto puede y aun debe ser excluido por la misma Ley Orgánica o por Sentencia del Tribunal Constitucional que declaren cuáles de los preceptos de aquélla no participan de tal naturaleza. Llevada a su extremo, la concepción formal de la Ley orgánica podría producir en el ordenamiento jurídico una petrificación abusiva en beneficio de quienes en un momento dado gozasen de la mayoría parlamentaria suficiente y en detrimento del carácter democrático del Estado, ya que nuestra Constitución ha instaurado una democracia basada en el juego de las mayorías, previendo tan sólo para supuestos tasados y excepcionales una democracia de acuerdo basada en mayorías cualificadas o reforzadas.
Por ello hay que afirmar que si es cierto que existen materias reservadas a Leyes Orgánicas (art. 81.1 de la C.E.), también lo es que las Leyes Orgánicas están reservadas a estas materias y que, por tanto, sería disconforme con la Constitución la Ley orgánica que invadiera materias reservadas a la Ley ordinaria."
Sem embargo disso, na mesma Sentencia 5/1981, o Tribunal Constitucional parece construir um caminho de exceção ao princípio de competência permitindo que uma lei orgânica imunize, contra futuras leis ordinárias, parte de suas normas que não estão alcançadas pela reserva constitucional de lei orgânica mas que são conexas às matérias reservadas. No entendimento do Tribunal, essa possibilidade se reconheceria em favor da segurança jurídica. São as palavras do Tribunal:
"Pues bien, cuando se dé el supuesto que acabamos de indicar y, por consiguiente, en una misma Ley orgánica concurran materias estrictas y materias conexas, hay que afirmar que en principio éstas también quedarían sujetas al régimen de congelación de rango señalado en el art. 81.2 de la Constitución y que así debe ser en defensa de la seguridad jurídica (art. 9.3 de la C.E.). Pero este régimen puede ser excluido por la propia Ley Orgánica en relación con alguno de sus preceptos, indicando cuáles de ellos contienen sólo materias conexas y pueden ser alterados por una Ley ordinaria de las Cortes Generales o, en su caso, por leyes de las Comunidades Autónomas. Si tal declaración no se incluyera en la Ley orgánica, o si su contenido no fuese ajustado a Derecho a juicio del Tribunal Constitucional, será la Sentencia correspondiente de éste la que, dentro del ámbito propio de cada recurso de inconstitucionalidad, deba indicar qué preceptos de los contenidos en una Ley orgánica pueden ser modificados por Leyes ordinarias del Estado o de las Comunidades Autónomas, contribuyendo de este modo tanto a la depuración del ordenamiento como a la seguridad jurídica, que puede quedar gravemente afectada por la inexistencia o por la imperfección de las citadas normas de articulación."
Na hipótese de ausência de norma explícita da lei orgânica, de acordo com o fragmento antes transcrito, segundo o entendimento do Tribunal Constitucional espanhol, deve valer a norma conexa incluída na lei orgânica como norma de qualidade "orgânica", não podendo ser ela, desta maneira, alterada por outras normas de leis ordinárias posteriores (ou por leis das comunidades autônomas, dependendo do caso). Consequentemente, se fosse intenção do legislador conferir um valor meramente ordinário à norma, deveria ele fazer expressa menção neste sentido na lei. Não obstante, na mesma Sentencia 5/1981, pode-se encontrar um fragmento em que é possível uma interpretação em sentido contrário, ou seja, em que se conclui pela estatura ordinária da norma conexa em uma situação em que não há na lei orgânica referência à hierarquia da norma. Eis o mencionado texto:
"La presencia de este art. 38 en la Ley Orgánica de Centros no es inconstitucional, pero como en él se regula una materia conexa y no estrictamente vinculada al desarrollo de un derecho fundamental, sobre ella podrán legislar las Comunidades Autónomas catalana y vasca (o cualesquiera otras que en el futuro tengan sus mismas competencias en materia educativa), siendo sus Leyes aplicables en tal materia con preferencia a las del Estado."
Dois anos depois, na Sentencia 76/1983, o Tribunal Constitucional retornou ao tema da possibilidade de inserir normas conexas na lei orgânica e assim lhes conceder um valor legal superior. Naquela oportunidade, o Pleno se manifestou neste sentido:
"Este Tribunal, en su Sentencia de 13 de febrero de 1981, ha mantenido que la Ley orgánica puede contener preceptos no orgánicos relativos a materias conexas. Asimismo ha señalado que, como la inclusión produce la congelación de rango salvo excepción expresa, el legislador debe precisar en la Ley orgánica cuáles sean tales preceptos no orgánicos, sin perjuicio de la competencia de este Tribunal para concretarlos mediante sentencia, en caso de impugnación de la Ley.
Pero el que una Ley orgánica pueda contener preceptos no orgánicos no significa – como pretende el Abogado del Estado – que sea suficiente la existencia de algún precepto de contenido orgánico para que pueda atribuirse a toda la Ley dicho carácter. Es preciso, en primer término, que el núcleo de la Ley afecte a materias reservadas a la Ley orgánica, de acuerdo con lo establecido en el art. 81.1 de la Constitución, y la conexión no puede consistir en yuxtaponer preceptos referidos a materias distintas de las reservadas a tal tipo de Ley. Por otra parte, la Ley orgánica sólo puede incluir preceptos que excedan del ámbito estricto de la reserva cuando su contenido desarrolle el núcleo orgánico y siempre que constituyan un complemento necesario para su mejor inteligencia, debiendo en todo caso el legislador concretar los preceptos que tienen tal carácter."
Do texto da jurisprudência constitucional por último transcrito, se pode chegar a algumas conclusões: (i) a lei orgânica somente pode conter "preceitos não-orgânicos" se o núcleo da lei afete as matérias reservadas à lei orgânica; (ii) os "preceitos não-orgânicos" devem ser conexos com os "preceitos orgânicos", no sentido de que devem desenvolver o núcleo orgânico, constituindo um complemento para sua melhor interpretação e aplicação; (iii) o legislador "deveria" especificar que preceitos têm natureza orgânica e quais têm natureza ordinária; (iv) se a lei é omissa, a natureza dos preceitos conexos é de norma de lei orgânica; (v) em todo caso, sendo expresso ou implícito o legislador, pode o Tribunal Constitucional decidir se tal ou qual norma é orgânica ou não; (vi) se a lei não é objeto de decisão do Tribunal Constitucional, ou se esse não se pronuncia sobre a questão, valem as regras anteriormente mencionadas.
Essa parece ser a jurisprudência ainda válida do Tribunal Constitucional espanhol. No nosso humilde entendimento, essa não é a melhor interpretação constitucional. Se se admite (como parece admitir o Tribunal Constitucional) que não há distinção ontológica entre lei orgânica e lei ordinária e que a diferença entre as duas é uma mera questão de competência, cremos que a única conclusão lógica é admitir que somente ostentam valor de lei orgânica os "preceitos orgânicos"; os demais deveriam ser conhecidos como normas de lei ordinária, alteráveis, obviamente, por leis ordinárias posteriores. Concluir de outro modo seria admitir que a vontade expressa em uma lei orgânica pode mudar uma norma constitucional de competência que impõe o procedimento legislativo ordinário em uma matéria, que a destina ao jogo democrático majoritário ordinário.
Tampouco nos convence o argumento do Tribunal de que sua interpretação preservaria a segurança jurídica. Na realidade, o efeito da segurança já é suficientemente obtido com a simples manutenção da validade dos preceitos não-orgânicos incluídos na lei orgânica (teoricamente, poder-se-ia inclusive advogar pela total negação de validade a esses preceitos, por vício formal de constitucionalidade).
É plausível que se questione o que ocorre se, adotando nossa interpretação lógica, um preceito não orgânico é incluído em uma lei orgânica e esta não é contestada no Tribunal Constitucional. Qual seria, neste caso, o valor dessa norma? A questão é, de fato, plausível, porém não parece ser útil. É que, se uma norma legal não tem sua constitucionalidade questionada na Espanha, essa norma, em razão de presunção constitucional, "vale" e é eficaz de modo absoluto. Assim, pouco importa se é uma norma teoricamente de natureza orgânica ou ordinária. Nessa hipótese, cabe ao Parlamento interpretar se tal matéria está ou não reservada à lei orgânica (como ocorre em todo procedimento legislativo). Se as Casas Legislativas entendem que a norma em questão é ordinária e decidem reformá-la por meio de uma lei ordinária, essa nova lei também vale e é eficaz de modo absoluto até que o Tribunal Constitucional decida em sentido contrário (isso é decorrência da preponderância do controle concentrado de constitucionalidade na Espanha). Não há, desta forma, nenhuma necessidade de defender regras intermediárias de modificação da hierarquia legal de preceitos que se encontram fora do âmbito de reserva da lei orgânica.
Dessa maneira, a nosso ver, os conflitos entre uma norma de lei orgânica e uma norma de lei ordinária na Espanha devem ser resolvidos de forma bastante simples. Antes de tudo, deve-se saber se o objeto da norma é reservado à lei orgânica ou se está no campo da lei ordinária. No primeiro caso, a lei ordinária é formalmente inconstitucional e, desta maneira, inválida, não apresentando, portanto, nenhum conflito real. No segundo caso, a lei orgânica e a lei ordinária tratam da mesma matéria porque a lei orgânica contém normas que deveriam ser introduzidas por lei ordinária. Nesse caso, as normas "ordinárias" da lei orgânica devem ser conhecidas – e validadas – como normas pertencentes à lei ordinária, e o conflito com outras normas de leis ordinárias deve ser resolvido com base nos critérios de especialidade e superveniência.