RESUMO
Lex Mercatoria - Novas Tendências e Análise da Viabilidade de um Sistema de Autônomo de Normas Internacionais tem por objetivo demonstrar as novas vertentes do direito internacional e a possibilidade de adoção de um sistema autônomo de normas internacionais para regular o comércio privado e principalmente os contratos.
Palavras chave: lex mercatoria; contratos internacionais; autonomia da vontade; sistema autônomo.
ABSTRACT
Lex Mercatoria - New tendencies and assessing the viability of an autonomous system international aims to demonstrate new aspects of international law and the possibility of adopting an autonomous system of international rules to regulate trade and private contracts mainly.
Keywords: lex mercatoria, international contracts, freedom of choice; autonomous system.
Sumário: 1. Introdução; 2. Antecedentes históricos; 3.A nova Lex Mercatoria; 4. A Lex Mercatoria como sistema autônomo - Da Visão de Goldman às críticas de Paul Lagarde e Antoine Kassis; 5.As novas tendências da Lex Mercatoria; 6. Conclusão; Referências Bibliográficas
1.Introdução:
A evolução do comércio internacional ao longo do século XX, com a abertura de novos mercados, a ruptura de barreiras alfandegárias pela criação de blocos econômicos, e a constante atualização tecnológica e industrial, aquece a economia mundial, fazendo com que ressurja a "comunidade dos mercadores" internacionais.
O ressurgimento da societas mercatorum [01]com a criação de regras próprias, aplicadas a determinados setores do mercado internacional, fatores esses acentuados depois da segunda guerra mundial, levou Bertold Goldman, por meio do artigo intitulado Frontières du droit et lex mercatoria: Archives de philosophie du droit, de 1964, a afirmar o ressurgimento da lex mercatoria.
Depois de quarenta anos da publicação do referido artigo, com raras exceções, a discussão sobre a existência ou não de regras supraestatais que regulam o mercado internacional já pode ser considerada incipiente. Contudo, a afirmação de que a lex mercatoria compreende um ordenamento jurídico anacional, aplicável exclusivamente às relações privadas de comércio e crédito internacional, provoca intenso debate e críticas acirradas.
Segundo os críticos, as regras que formam a nova lex mercatoria são ainda esparsas e despidas de um comando unificador, comprometendo a indagação sobre sua capacidade de trazer à societas mercatorum a segurança jurídica tão almejada.
O surgimento da arbitragem internacional acentuou essa discussão, pois tem induzido a aceitação de regras contratuais setorizadas, próprias da lex mercatoria, pelo ordenamento estatal, uma vez que estão enraizadas nos instrumentos em que as próprias partes deliberam sobre qual regra aplicar na solução de conflitos, por meio da consagração dos princípios da pacta sunt servanda e da autonomia da vontade.
Questiona-se, ainda, se a lex mercatoria é benéfica à toda societas mercatorum, ou se apenas os grupos mais privilegiados economicamente é que tiram proveito de regramentos próprios, elaborados em seu benefício?
Quais seriam as novas tendências da chamada lex mercatoria? Permanecer aberta, flexível e atual, ou ter suas regras codificadas de modo a albergar maior aceitação do direito estatal, com a criação de um órgão próprio, de onde emanem as regras do comércio internacional, de maneira a mitigar os críticos do sistema atual.
Neste diapasão, o presente estudo tem por objetivo trazer a os novos elementos da lex mercatoria, seja pela visão do criador desse conceito (Berthold Goldman), seja pela crítica lançada por Paul Lagarde e Antoine Kassis, além de demonstrar suas novas tendências.
2. Antecedentes Históricos
O comércio marítimo tem direta relação com o desenvolvimento da mercancia internacional, sendo atribuído aos fenícios, povo eminentemente dedicado a essa prática, a criação das primeiras regras próprias do comércio internacional.
A esse respeito, o Prof. Irineu Strenger pontua o seguinte:
"O comércio internacional historicamente está intimamente ligado com o direito marítimo e com as atividades do mar.
Apesar de não se ter acesso a elementos mais específicos, sabe-se que os fenícios se destacaram como civilização eminentemente comercial, sendo-lhes atribuível um dos grandes momentos do direito marítimo, que foi a Lex Rhodia de jactu, podendo-se registrar na alta antiguidade muitas disposições relacionadas com o comércio internacional, principalmente já naquela época dispensando tratamento aos contratos internacionais." [02]
A influência grega e romana no comércio do mediterrâneo também merece destaque, em um primeiro momento com as conquistas de Alexandre e a construção Império Helênico, a expansão do comércio até a Índia, a circulação das riquezas conquistadas, o estímulo ao desenvolvimento do comércio e indústria nas terras conquistadas, etc...
Como momento jurídico a ser lembrado, o Prof. Strenger destaca o nauticum foenus, criado para propiciar ao armador ou negociante exportador crédito no ambiente internacional.
Em Roma, a implantação do jus gentium [03], que assegurava certos direitos ao estrangeiro no império, teve papel determinante no fortalecimento do comércio internacional.
A queda do império romano com as invasões bárbaras, seguida da chamada idade das trevas, levou ao declínio também as relações comerciais internacionais.
A evolução do Direito Medieval em matéria internacional é bem retratada por Douglas Alexandre Cordeiro, em seu estudo intitulado "A LEX MERCATORIA E AS NOVAS TENDÊNCIAS DE CODIFICAÇÃO DO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL", que assim se pronuncia:
A partir do século XI o comércio internacional é revitalizado na Europa, diante de fatores como as Cruzadas, a conquista da Sicília, Sardenha e Córsega, a criação da Liga Hanseática, dentre outros. A sociedade medieval estava isolada após o declínio do Império Romano, as leis, usos e costumes variavam de cidade para cidade e algumas delas, em especial aquelas derivadas do direito canônico, eram empecilhos ao desenvolvimento do comércio.
O comércio, entretanto, ao invés de cessar ou regredir evoluiu e transpôs as fronteiras então existentes, encontrando outras fontes normativas para embasar as relações comerciais além das fronteiras nacionais. As Regras de Oléron, por exemplo, desde 1150 já eram aceitas e utilizadas por um vasto número de comerciantes marítimos e utilizada por um grande número de portos Marítimos no Mar do Norte e no Oceano Atlântico.
As Leis de Wisby, possivelmente derivadas das Regras de Oléron, que em 1350 regulavam o comércio no mar báltico e as disposições do Consulado do Mar, editadas pela Corte Consular de Barcelona no século XIV para consolidar os costumes do comércio marítimo, são também consideradas manifestações de um direito medieval dos comerciantes.
Aos poucos, o rigor e a burocracia das regras do direito romano foram substituídos pelos usos e costumes dos comerciantes que, ante a falta de um poder político central, uniram-se em grupos de acordo com as atividades exercidas por seus membros.
Tais grupos, denominados corporações de mercadores, possuíam patrimônio próprio constituído através de doações de seus associados. Tinham o objetivo inicial de proteger e dar assistência aos seus membros e, aos poucos, acabaram assimilando também função jurisdicional para resolver os conflitos havidos entre mercadores. A magistratura mercantilista assumia, então, (i) funções políticas (ao defender a honra e dignidade das corporações às quais pertenciam, colaborar com a manutenção da paz, etc.), (ii) funções executivas (observar o cumprimento das disposições estatutárias, leis e usos mercantis) e (iii) funções judiciais (solucionando os conflitos mercantis).
Surge, então, um conjunto de normas direcionadas a um grupo específico de profissionais, lastreado nos usos e costumes de uma classe carente de um direito estatal específico. Tal conjunto não surge de uma atividade legislativa nem da criação de jurisconsultos, como na Roma Antiga, mas sim dos próprios comerciantes em uma tentativa de superar as obsoletas e frágeis normas feudais e romanas, que não mais correspondiam aos seus interesses e ao novo modelo de comércio nacional e internacional então existente.
Para Malynes, a lex mercatoria era definida como "a lei de todas as nações" e não de um Estado particular20 e parecia, então, ser baseada na lei romana, no costume marítimo e, também, nas leis das feiras medievais européias. Esses costumes comerciais se cristalizaram de tal forma que foram acolhidos, inclusive, pelas Cortes Inglesas, através do reconhecimento da então denominada law merchant.
Para Baddack, tal reconhecimento se dava ante o interesse dos soberanos e da população em geral em ter acesso aos produtos de mercados estrangeiros. O crescimento do comércio, então, era do interesse de todos e os comerciantes "estavam livres para definir suas próprias regras e não havia leis ou regulamentos impostos pelos soberanos".
As diferenças existentes entre os sistemas legais de cada país trouxeram a necessidade, aos comerciantes internacionais, de encontrar um conjunto de regras universal, baseado nas necessidades mercantis da época.
Tal conjunto, então, se estabeleceu a partir dos usos e costumes comerciais e era aplicado por cortes especiais, criadas para a solução de litígios havidos entre comerciantes.
As chamadas piepowder courts existiam em praticamente todos os mercados ingleses desde o século XIII . Eram compostas por árbitros que tinham domínio da prática mercantil, e julgavam com agilidade e rapidez eventuais conflitos surgidos entre comerciantes, aplicando então esse conjunto de regras nascido da prática mercantil, denominado lex mercatoria.
Outras cortes medievais aplicavam, também, a denominada lex mercatoria, como as English Staple Courts, criadas em 1354 e as alemãs Bozner Merkantilgerichtsrat, criadas em 1635. O estatuto das English Staple Courts, por exemplo, estabelecia que "todos os comerciantes, ao chegar a Staple, serão regulados pela lei mercante e não pela lei comum local, nem pelos usos e costumes das cidades, burgos ou outros locais".
As cortes medievais eram em muito semelhantes às atuais cortes arbitrais. Eram compostas, em sua maioria, por comerciantes experientes e com amplo conhecimento da matéria que seria julgada, ao invés de juristas.
Ainda, as cortes medievais também aplicavam uma lei transnacional adequada às necessidades comerciais da época e, assim como as cortes atuais, suas decisões eram cumpridas espontaneamente pelos comerciantes, os quais temiam desrespeitar uma decisão da corte e arriscar suas reputações perante a comunidade mercante internacional, podendo até mesmo ser excluídos da participação nas feiras medievais caso tal fato ocorresse. As cortes nacionais, então, eram raramente invocadas para a execução das decisões proferidas pelas cortes medievais.
Em suma, a lex mercatoria medieval era destinada a uma classe especial de pessoas e em locais específicos, ou seja, aos comerciantes em feiras, portos e mercados. Era distinta das legislações locais (de feudos, reinos e mesmo dos sistemas eclesiásticos), sendo, portanto, transnacional. Possuía como fonte principal os usos e costumes do comércio internacional e era aplicada principalmente pelos próprios comerciantes. [04]
Os séculos XVIII e XIX caracterizaram-se pela incorporação das práticas e usos comerciais em ordenamentos internos, dando ensejo à formação do direito comercial estatal, merecendo destaque as reformas promulgadas por Luís XIV, pela influência da política de Colbert, com a edição das "Ordennances" e posteriormente em 1807 com o Código Comercial Francês.
Nesse panorama os litígios comerciais eram tratados pelo direito estatal, deixando de lado a independência da ordem jurídica comercial, prejudicando sobremaneira a expansão do comércio internacional.
A partir da metade do século XIX é que surge uma nova perspectiva para o comércio internacional, a qual tomou corpo durante o século seguinte, fazendo com que renomados juristas reconhecessem certa autonomia às regras do comércio internacional, e sua necessidade evolutiva em descompasso com os ordenamentos estatais.
Surgiram corporações profissionais setorizadas, disseminando regras próprias em cada setor da economia, de onde se destaca a atividade da "London Corn Trade Association"que:
"(...)constituída em 1877 e reorganizada em 1886, que, no comércio de venda de cereais, procurou dar certa unidade a essas operações para possibilitar a adoção de usos baseados em princípios justos e equânimes, principalmente para os contratos, cartas partidas, conhecimentos e apólices de seguro, de modo a estabelecer a adoção de fórmulas-tipo para os contratos e diversos outros documentos utilizados na prática do comércio de cereais."
Goldman destaca que esses contratos tipo se expandiram para diversas áreas do comércio de produtos agrícolas à bens e equipamentos, aumentando o campo de atuação das associações profissionais de modo a fomentar o comércio existente entre o leste e o oeste, e acrescenta o Prof. Irineu Strenger que:
"As atividades das associações profissionais, que existem em número bem grande, praticamente abrangendo todo comércio internacional, em função dos setores especializados, como os que foram exemplificativamente citados acima, são sempre orientadas de molde a criar facilidades e ajustamentos que permitam aos seus membros desempenho atualizado e equivalente ao quanto for necessário para o alcance dos principais objetivos comuns.
Os contratos-tipo emanados dessas entidades tornaram-se fundamental fonte do direito do comércio internacional, porquanto as cláusulas aí inseridas, mais do que permear a vontade das partes, se constituem em regras gerais com força de direito, e adotadas sem restrições e sem "eficácia receptiva".
Acrescente-se ainda que, em seus contextos, os documentos elaborados pelas associações profissionais assimilam normas editadas por inúmeras organizações particulares, como a Câmara de Comércio Internacional e outras, incluindo-as em seu repertório técnico de modo a dar, ainda, maior extensão e abrangência às disposições que regem o setor comercial concernente. " [05]
Igual repercussão sofreu as operações de crédito internacional, as quais se mantiveram autônomas ao direito estatal, regulando procedimentos e implantando regras típicas para a circulação do crédito internacional.
Praticamente o mercado bancário, por meio da institucionalização de seus usos e costumes, é que disciplinou a forma de circulação de crédito, até que a Câmara de Comércio Internacional implantou em 1933 o RUU ("Règles et Usages Uniformes relatives aux Crédits Documentaires"), os quais foram revisados em 1951, 1974, 1983 e finalmente em 1993.
Também no transporte de mercadorias foram adotadas cláusulas tipo, emanadas pela Convention International des Marchandises (CIM), firmada em Berna em 1888, o mesmo ocorre com o transporte aéreo regulado pela Air Transport Association (IATA).
Somado às organizações profissionais, o regime arbitral vem a confirmar a independência do mercado internacional, aplicando soluções a partir da livre manifestação das partes em contratos originados dessas instituições e com base em suas regras, de forma a afastar cada vez mais o direito internacional do direito estatal.
Esse elevado número de regulamentos esparsos é que conduziram Goldman no desenvolvimento de sua teoria sobre a nova lex mercatoria, a qual teve seu nascimento declarado pelo artigo intitulado Frontières du droit et lex mercatoria: Archives de philosophie du droit, de 1964, posteriormente ratificado por outro: La lex mercatoria dans les contrats et l’arbitrage internationaux: réalités et perspectives, de 1979.
A partir de então passou a se discutir as bases formais para a constituição desse sistema intitulado nova lex mercatoria, ao qual alguns pretendem caracterizar como sistema de normas jurídicas, e outros apenas como um sistema esparso de regras setorizadas, típicas do mercado internacional.
E é essa discussão que será abordada a seguir, a partir da criação de Goldman até hoje, com a tentativa de sistematização e codificação da lex mercatoria.
3.A Nova Lex Mercatoria
As regras do comércio e do crédito no mercado internacional clamam por um ordenamento supranacional, despido das amarras estatais, e que ao mesmo tempo que seja flexível em relação à evolução das transações internacionais, fluido para permitir a assimilação de novas tecnologias e novos mercados, também dê segurança jurídica às relações mercantis internacionais.
A proliferação das organizações profissionais, com regras setorizadas, cláusulas e contratos tipo, e uma séria de outros sistemas próprios do comércio internacional deu margem ao surgimento da nova lex mercatoria, que tem seu nascimento no artigo de Goldman de 1964, "(...) baseada, além de nos usos e costumes, em contratos-padrão, preparados por entidades estrangeiras e, mas recentemente, composta de inúmeros outros elementos, inclusive Direito Internacional Público, leis uniformes e regras das organizações internacionais" [06].
O debate sobre a nova lex mercatoria, segundo Berger [07]divide-se em três correntes autônomas, sendo que as duas primeiras consideram a lex mercatoria apenas como um mero conjunto de regras e princípios heterogêneo, enquanto uma terceira a considera com um sistema jurídico independente e supranacional.
A primeira teoria conceitua a lex mercatoria como um "conjunto de princípios e regras esparsos e inconsistentes, sem a qualidade de "sistema", servindo apenas de complemento à aplicação da lei doméstica" [08]. Já a segunda corrente entende que a lex mercatoria representa a totalidade dos usos e costumes que são refinados de acordo com as necessidade do comércio internacional, constituindo um ius commune de fato.
A terceira corrente, considera a lex mercatoria como um sistema jurídico independente e supranacional, justificado e validado por seu caráter autônomo expresso pela vontade das partes ao celebrar suas transações no mercado internacional.
Nesse sentido, ao situar a lex mercatoria em um campo supra nacional, autônomo e independente das normas estatais, os doutrinadores colocam-na em confronto com as duas primeiras teorias, que, em princípio, não compreendem a lex mercatoria como sistema de normas, deixando-a à margem da legislação estatal, que a utiliza apenas como método subsidiário na resolução de conflitos.
Percebe-se, porém, que o ordenamento jurídico estatal está visivelmente alterado, criando-se normas para atender as expectativas do mercado externo, provocando inclusive um fenômeno classificado como "descodificação" do direito estatal por Ricardo Luis Lorenzetti, em sua obra Teoria da Decisão Judicial, o qual faz a seguinte referência à influência da lex mercatoria nesse fenômeno:
Em relação à economia global, é dito que predomina o costume comercial (lex mercatoria), e é por isso que o direito codificado permanece imutável, uma vez que já não é a lei, senão o contrato, o instrumento mediante o qual se realiza a inovação jurídica. É conhecida a influência que têm os novos tipos contratuais de raiz transnacional, com os contratos de leasing, franchising, trust ou fideicomisso, shopping center, dentre outros.
A isso deve ser agregada uma série importantíssima de normas ditadas pelo funcionamento dos organismos internacionais, que passaram a ter uma gravitação decisiva sobre os ordenamentos nacionais. Isso produz modelos de leis, como a "lei-modelo da Uncitral" em matéria de comércio eletrônico, ou as leis de proteção de investimentos.
Essa penetração nos direitos nacionais produz tanto benefícios como grandes riscos e problemas em relação à soberania nacional, assim como um direito declarativo cada vez mais distante da sua aplicação efetiva.
A lei surge da prática social nacional, senão dos costumes e da burocracia internacional, o que provoca tensões profundas no seio das sociedades. Em muitos casos cidadãos a aceitam, em outros a rechaçam claramente, e em muitos casos tem sucesso. Em definitivo, pode-se observar que a eficácia da lei depende exclusivamente do consenso social que alcance, e não da autoridade da qual emana. [09]
Como se vê, o questionamento sobre a existência ou não da lex mercatoria já não tem muito vulto, com poucas exceções [10], discute-se sim a sua conceituação como sistema legal supranacional, ou ainda, a formação de um "conjunto sistematizado" de regras aplicáveis ao mercado internacional.
Porém, antes de adentrar a essa temática, é bom perambular pelos diversos conceitos atribuídos à lex mercatoria por vários doutrinadores, os quais são lembrados e comentados pelo Professor Irineu Strenger:
(...) Langen: "The rules of the game of international trade". Nessa definição, em verdade, estão subentendidas todas questões que se possam aventar no jogo do comércio internacional, que pode ser entendido, nessa expressão, como o ramo de atividade submetido a muitas injunções imprevisíveis, como na realidade ocorre.
(...) Loquin: "la lex mercatoria este un nouvel ordre juridique, qui se forme au sein d'une communauté internationale d'hommes d'affaires et de commerçants suffisamment homogène et solidaire pour susciter la création de ces normes et en assurer l'application".
Trata-se de definição analítica, esboçada com cuidado de não excluir qualquer elemento que possa interessar à boa compreensão da lex mercatoria, e que, realmente, consegue atentar para os pontos fundamentais que bem de perto expressam a idéia do significado dessa peculiar atividade que identifica o comércio internacional.
Bermann Kauffman, na mesma linha, definem a lex mercatoria como "an international body of Law, fourded on commercial understandings anda contract pratices of an international community, composed principally of mercantile, insurance and banking enterprises of all counstries".
Esses autores são incisivos quanto ao reconhecimento de que a lex mercatoria é um verdadeiro corpo de direito com regras fundadas na prática e no exercício contratual de uma comunidade extensa envolvendo atividades mercantis, navegação, seguro e operações bancárias, desenvolvidas por empresas de todos os países.
Trata-se de definição abrangente, que consegue atingir de modo adequado as principais diretrizes da lex mercatoria.
Godstajn define lex mercatoria como "the body of rules governing commercial relationships of a private law nature involving different counstries".
Esse conceito traduz o modo pelo qual Goldstajn considera o problema do comércio internacional, ou seja, baseado nos princípios gerais aceitos em todo o mundo, isto é, o fato de serem os beneficiários das transações diferentes, neste ou naquele país, não é obstáculo para o desenvolvimento do comércio internacional. [11]
O professor Strenger, após enfatizar que todos os conceitos acabam por refletir um "estado de insatisfação com os sistemas nacionais", define que a lex mercatoria "é um conjunto de procedimentos que possibilita adequadas soluções para as expectativas do comércio internacional, sem conexões necessárias com os sistemas nacionais e de forma juridicamente eficaz" [12].
Já Goldman, a quem será melhor dirigido o presente estudo, define lex mercatoria como "um conjunto de princípios, instituições e regras com origem em várias fontes, que nutriu e ainda nutre as estruturas e o funcionamento legal específico da coletividade de operadores do comércio internacional". Define assim que a lex mercatoria tem suas bases: a) nos princípios gerais do direito; b) nos provimentos contratuais, como cláusulas especiais e novos tipos convencionais; e c) nas decisões arbitrais que contribuíram para a elaboração de princípios do comércio internacional.
Já em relação à suas fontes, alguns doutrinadores as diferenciam do conteúdo da lex mercatoria, fato este sem significado relevante para Goldman [13], que entende que as únicas fontes que merecem ser suscitadas são aqueles mencionadas pelas decisões arbitrais.
Não obstante, os doutrinadores debatem acerca das fontes sendo que Baddack [14] as divide sob dois aspectos, um restrito, no qual a lex mercatoria não levaria em consideração as convenções internacionais, uma vez que a lei mercante não poderia ter nenhum contato com as leis estatais por seu caráter anacional; e outra no sentido amplo, dando menos consideração ao caráter espontâneo da lex mercatoria, que considera todas as normas aplicáveis ao comércio internacional a integram.
Sob esse diapasão, a doutrina mais aceita para definição das fontes da lex mercatoria é a do professor Ole Lando [15], que atribui sete fontes à lex mercatoria, quais sejam:
1.O Direito Internacional Público, que segundo Lando deve ser aplicado não só às disputas envolvendo os Estados, mas também às relações privadas;
2.As convenções internacionais, principalmente aquelas emanadas do Institut pour L 'Unification Du Droit (UNIDROIT), da United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL) e da United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (CISG);
3.Os princípios gerais do direito (artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça), de onde se destaca a boa-fé, a pacta sunt servanta e a cláusula rebus sic standibus;
4.As recomendações, resoluções, pareceres e códigos de condutas emanados de organizações internacionais como a United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), a United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL)e a Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD), dentre outras;
5.Os usos e costumes internacionais;
6.Os contratos-tipo desenvolvidos por organizações comerciais, exemplo: Grain an Feed Trade Association (GAFTA); Air Transport Association (IATA)e a Fédération Internationale dês Ingénieurs-Conseils (FIDIC);
7.E por fim, os laudos arbitrais, que ao aplicar os usos, costumes e os princípios ao caso concreto, por vezes "cria" o direito [16].
Enfim, o reconhecimento da lex mercatoria é indispensável para o enquadramento do comércio estatal no mercado internacional, a ponto do professor Anoldo Waldo, em seu artigo denominado "Algumas Aplicações da Lex Mercatoria aos Contratos Internacionais Realizados com Empresas Brasileiras", afirmar o seguinte:
A lex mercatoria é um instrumento jurídico importante para os povos que pretendem participar ativamente da evolução econômica mundial, sendo preciso conhecê-lo e acompanhar a sua evolução, não havendo razão para se ter medo do novo direito do comércio internacional, que relembra o direito pretoriano e o próprio ius gentium de uma fase da evolução do direito romano.
Porém, resta ainda um setor a ser explorado, o fato de a lex mercatoria ser compreendida como sistema legal, ou simplesmente um amontoado de regras de direito internacional sem características de sistema.
Para melhor elucidar a questão, e enfim dirimir o tema da lex mercatoria, nada melhor que analisar os estudos de Goldman, seguindo pelas críticas de Antoine Kassis e Paul Lagarde.