5 A RESPONSABILIDADE PESSOAL DO MAGISTRADO E DO ESTADO
Antes de analisar a responsabilidade do requerente da tutela antecipada, um impulso natural é questionar se seria possível a responsabilização do juiz que a concedeu. Frise-se que a responsabilidade do juiz na concessão da tutela antecipada não é diferente da sua responsabilidade, em qualquer outro ato do processo, e sobre esse assunto é possível encontrar bastante controvérsia na doutrina, mas importa observar que o entendimento predominante na jurisprudência [20] é de que o Magistrado só seria civilmente responsabilizado por decisões equivocadas, quando comprovada sua má-fé, ou então em casos de decisões teratológicas. Este posicionamento é bem arrimado no artigo 133 do CPC in verbis:
Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.
Parágrafo Único. Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas no II só depois que a parte, por intermédio do escrivão, requerer ao juiz que determine a providência e este não Ihe atender ao pedido dentro de 10 (dez) dias.
Apesar do entendimento doutrinário diverso de parte da doutrina [21], de respeitável consistência, a jurisprudência atual trilha o melhor entendimento acerca do tema. É preciso resguardar a liberdade e imparcialidade do magistrado, e isso não seria possível se a cada decisão proferida estivesse em risco seu patrimônio pessoal. Em causas que envolvem grande valor econômico, a convicção do magistrado poderia ser corrompida pelo temor de causar prejuízos as partes e ser responsabilizado posteriormente.
Especialmente, no caso das tutelas antecipadas, a pressão exercida sobre o Magistrado seriaainda maior eis que sua decisão, proferida em caráter urgente e com base em substratos probatórios incipientes, poderia ser encarada como um verdadeiro ato de risco contra seu patrimônio pessoal.
Afora as conseqüências práticas da responsabilização dos Magistrados, já citadas, tem-se que o legislador ao enumerar no artigo 133 do CPC as possibilidades de responsabilização do magistrado, teve como objetivo instituir exceção à regra, que é a de não responsabilização pessoal do magistrado, e na mesma tocada, do Estado. Ao menos, essa é definição que tomamos como paradigma para que seja possível afirma a necessidade de responsabilização do requerente da antecipação de tutela.
6 DA NECESSIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO
Como dito, parte da doutrina ainda resiste à aplicação da responsabilidade objetiva ao requerente da tutela antecipada, o faz apegando-se à tese que ao se incutir a um ato lícito uma punição objetiva, isto é, independente de culpa ou dolo, estar-se-ia violando o princípio do acesso a justiça e todo o sistema do direito civil, que se baseia, em regra, na necessidade de comprovação de culpa.
Provavelmente, o representante de maior expressão da supracitada corrente, Ovídio Baptista da Silva já criticava o instituto, antes mesmo de sua inserção no CPC, com o advento da reforma impingida pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002, fazendo menção ao fato de que a Lei. 8.952 de 13.12.1994 "[...] ao criar as medidas antecipatórias, prescreveu-lhe o procedimento próprio das execuções provisórias, livrando-as, porém da ameaça de responsabilidade objetiva" [22]. Assiste razão ao renomado doutrinador, já que na antiga redação, o art. 273, §3º tinha a seguinte redação: "§ 3°
A execução da tutela antecipada observará, no que couber, o disposto nos incisos II e III do art. 588." [23]. Assim, o inciso I do mencionado artigo, que trata da responsabilização objetiva do requerente da execução provisória, ficou excluído de aplicação sobre as tutelas antecipadas.
É admissível que a exclusão da responsabilidade objetiva quando da instituição da tutela antecipada no CPC tenha sido proposital, e não fruto de omissão do legislador. Contudo, com a já citada reforma de 2002 [24], houve a inserção clara e inequívoca do inciso I do art. 588, uma vez que foram suprimidas as remissões aos incisos II e III, ou seja, passa a valer para a tutela antecipada, todos os regramentos inerentes à execução provisória, especialmente a responsabilidade objetiva.
À época, diante da já previsível alteração do CPC, Ovídio Baptista da Silva detinha visão extremamente pessimista acerca dos efeitos práticos que a modificação de 2002 [25] traria, prevendo até mesmo anulação dos efeitos das antecipações de tutela:
Não será exagero afirmar que a sorte das antecipações de tutela, uma vez transformado em lei o projeto que institui o princípio da responsabilidade objetiva, ficará a mercê de uma trindade diabólica que o sistema lhes opõe, para amoldá-las a seus princípios ou, se possível, anular-lhes inteiramente os efeitos. [26]
Antes de qualquer avaliação crítica é preciso com justiça destacar o supracitado doutrinador, que destoando dos demais, tratou com verdadeiro esmero e profundidade a questão, embasando-a com valiosos princípios extraídos do direito comparado, mormente o italiano. O fato é que a conclusão dos seus estudos o levou a posicionar-se, totalmente, contra a responsabilização objetiva do requerente da tutela antecipada. Nos seus trabalhos, ainda deixa implícito que, mesmo após a reforma de 2002 [27], a responsabilização objetiva seria descabida por suposta inconstitucionalidade.
Afiliado a essa tese, Fábio Luiz Gomes, critica severamente o regramento processual atual sobre o tema e argúi sua inconstitucionalidade, entendimento que compartilha com Ovídio A. Baptista da Silva que bem sintetiza nos seguintes termos:
Aliás, a manutenção da responsabilidade objetiva, tal como está posta em nosso Código de Processo Civil, caracteriza inequívoca ofensa ao princípio constitucional da isonomia, de forma que o mesmo não a estabelece para um réu que sustenta um direito na sentença final reconhecido como inexistente, mas apenas para o autor que "acelera" a efetivação do direito por ele deduzido mercê de antecipações depois revogadas. [28]
O que se sustenta, nessa linha de entendimento, é que a antecipação de tutela inverte o ônus da espera, que antes pesava sobre o autor e passa a pesar sobre o réu, e por conta dessa benesse seria o requerente responsabilizado objetivamente com relação aos danos que da antecipação tenham decorrido. Ocorre que a resistência do réu à pretensão autoral, quando não antecipados os efeitos da tutela, também, pode gerar o prejuízo, mas o demandado não é responsabilizado objetivamente pelos danos que sua resistência gera, mormente em consequência da demora no processo.
Concorde-se que, a princípio, é possível diagnosticar uma desigualdade entre as partes, por outro lado, não se pode esquecer que a locução tutela jurisdicional designa "o resultado final do exercício da jurisdição estabelecido em favor de quem tem razão (e assim exclusivamente), isto é, em favor de quem está respaldado no plano material do ordenamento [29]". Em outras palavras, a tutela tem que garantir o resultado útil do processo ao vencedor, e isto não é possível sem a concreta e integral reparação de todos os danos que teve que suportar em decorrência da medida, injustamente, concedida mediante requerimento da parte contrária.
Destarte, se no regramento processual não há previsão de responsabilidade objetiva que pese sobre o demandado que resiste à pretensão e ao final resta derrotado, o sistema deve se amoldar e estabelecer a igualdade no sentido de também garantir a reparação dos prejuízos sofridos pelo autor, e não ao contrário, isentando as partes de responsabilidade e deixando que prejuízos decorrentes advindos da atividade contenciosa sejam encarados como perdas necessárias e irreparáveis.
O doutrinador Fábio Luiz Gomes alude, ainda à questão social relacionada ao processo civil, encarando a responsabilização objetiva do requerimento da antecipação dos efeitos da tutela como um sério prejuízo aos desafortunados, e mais um privilégio às classes dominantes:
Assim sendo, nosso sistema processual, que já privilegia as classes dominantes com os chamados "procedimentos especiais", vários deles com cognição sumária e sem a vigência da "ampla defesa", intimida os desafortunados a postularem antecipações de tutela no âmbito do anacrônico procedimento ordinário, o único instrumento de que dispõem para a efetivação de seus direitos. [30]
Entretanto, as trágicas previsões com relação ao futuro da eficácia das tutelas antecipadas não se confirmaram, o que se pode afirmar com segurança. Ao menos até o atual momento, a responsabilização objetiva do requerente não gerou aos demandantes desestímulos à pretensão de ver antecipados os efeitos da tutela jurisdicional, muito pelo contrário. Não se faz necessária uma pesquisa de campo para contabilizar o percentual das demandas que incluem o pedido de tutela antecipada – o que não obstante, seria interessante – pois é notória a popularização do instituto, que não seria exagero chamar de banalização.
É de se realçar que a referenciada banalização da antecipação de tutela conta, em certa dose, com a corroboração dos magistrados de primeira instância. É que em um sistema processual como o brasileiro, onde via de regra as decisões de primeiro grau estão sujeitas aos recursos que lhes imprimem efeito suspensivo, a antecipação de tutela é compreensivelmente uma ferramenta atraente aos magistrados, pela possibilidade que lhes outorga de influir, direta e de maneira rápida, na modificação do status das partes, na efetivação daquilo que considera justo, ao invés de constituírem apenas um veículo de colheita das provas e saneamento do processo que de outra forma só viria a ter efeitos práticos quando decidido pelas instancias superiores.
De outro lado, em razão da morosidade do processo, existe hoje uma cultura processualista no sentido de oferecer ao autor da demanda, cada vez maiores possibilidades de obter sua satisfação em curto prazo, tendência que parece ignorar o fato de que nem sempre o autor da demanda é quem tem o direito substancial, e que, estando à razão com o réu, é em favor deste que o processo deve assegurar o resultado, ou pelo menos resguardar seu status quo, como já dito.
Nesse sentido, "[...] a responsabilidade objetiva vem como um contrapeso a ponto de, na prática, criar um desestimulador econômico, evitando requerimentos antecipatórios injustificados, temerários ou eivados de más intenções [31]".
Frise-se, apenas de passagem, que não é verdade que a responsabilidade de indenizar está sempre atrelada à ocorrência de um ato ilícito, mesmo no direito civil brasileiro, pois como bem exemplifica Humberto Teodoro Júnior, o agente que ao praticar um ato lícito em estado de necessidade causa dano a outrem, está obrigado a repará-lo, independente de má-fé, dolo, ou qualquer perquirição de culpa.
Tudo se passa à semelhança do ato danoso praticado em estado de necessidade. O agente tinha o direito reconhecido de praticá-lo, mas, se a vítima não tinha o dever de suportar o prejuízo, cabe ao agente proceder ao competente ressarcimento, embora tenha agido na licitude (Código Civil, arts. 160, 1.519, 1.520). [32]
Assim, não há motivo para desprestigiar o legislador que, intencionalmente, incluiu a responsabilidade objetiva como regra a ser observada na aplicação da antecipação de tutela, pelo que se tem como melhor entendimento que tal responsabilidade será aplicada independente do tipo de tutela pleiteada e concedida, antecipadamente, pelo magistrado, sempre a requerimento da parte. Da mesma forma, não há porque cogitar a aplicação por analogia do artigo 811 do CPC, pois como visto, se havia lacuna na lei, essa foi preenchida com a alteração do art. 273, §3º em 2002 [33]. Naturalmente, onde não existe lacuna, não há espaço para aplicação da analogia.
Feita a consideração acerca inaplicabilidade do art. 811, do CPC, registre-se que ela é apenas teórica, pois como se verá adiante, não haverá diferença procedimental no concerne à formação do título executivo que possibilitará que o prejudicado seja ressarcido dos prejuízos que sofreu em decorrência da antecipação de tutela, aliás, mais essa semelhança corrobora a já ventilada tendência de aproximação das tutelas antecipadas e cautelares.
7 DA VIA DE FORMAÇÃO DO TÍTULO EXECUTIVO
Conforme o art. 475-O, inciso II do CPC, que se aplica a efetivação das tutelas antecipadas como já esmiuçado, a liquidação dos prejuízos advindos serão feitas, nos mesmos autos, já que a transcrição do referido inciso determina, ipsi literis que serão "liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento".
Apenas por argumentar, já que se descartou a aplicação do art. 811 do CPC, a natureza da liquidação dos prejuízos ocorridos no processo cautelar e na execução provisória têm a mesma natureza, e decorre do efeito anexo originado com a sentença que reforma a tutela provisoriamente concedida.
Tal como o Código disciplina o assunto, o dever de indenizar passou a ser o que PONTES DE MIRANDA denomina "efeito anexo" da sentença (Tratado das ações, v. l, p. 231) proferida no processo principal, enquanto resultado inexorável pela mesma produzido, sem que seja necessário, quanto a ele, pedido expresso do autor nem manifestação sentencial que contenha declaração sobre esse dever de indenizar e, menos ainda, necessidade de o juiz condenar, na sentença com que julga o processo principal, a parte que obtivera a medida cautelar, se tal sentença lhe for desfavorável. O efeito anexo é externo à sentença e inexorável, como procuramos mostrar em obra anterior (Sentença e coisa julgada, p. 112). Externo, porque o legislador poderá a qualquer tempo suprimi-lo sem que isto modifique, quanto às suas eficácias peculiares, a sentença que antes o produzia. Inexorável, por decorrer o chamado efeito anexo da mera existência da sentença, sem que a parte o tenha postulado e sem que o julgador o tenha inserido em seu julgamento. [34]
O mencionado efeito anexo tem o cunho de dispensar a existência de uma sentença condenatória para que seja possível a liquidação dos prejuízos, ou seja, ao sentenciar a improcedência de uma demanda onde havia uma tutela antecipada surtindo efeitos, não há necessidade de que o magistrado se pronuncie acerca do ressarcimento dos danos advindos da antecipação. A condenação é substituída pelo efeito anexo atribuído pela lei à sentença que julga improcedente a demanda.
Não se pode perder de vista que, invariavelmente, será necessário comprovar a existência do dano, do nexo de causalidade, e a apuração do quantum debeatur, já que a lei suprime apenas a necessidade comprovação da culpa. Obviamente, não há que se falar de responsabilidade objetiva por um dano inexistente.
Assim, pela liquidação, serão colhidas provas tal como ocorreria numa demanda autônoma. Como afirma Cândido Rangel Dinamarco, "[...] a liquidação é atividade que em princípio precede à execução forçada, justamente porque se destina a torná-la viável [35]".
Nesse particular poderia residir um novo questionamento acerca do cabimento da aplicação do artigo 475-O, inciso II, já que a previsão no mencionado dispositivo é de que a liquidação será, nos mesmos autos, por arbitramento.
Ocorre que, o arbitramento é uma modalidade de liquidação extremamente restrita, pois consiste na avaliação do prejuízo por um perito, que analisa os fatores técnicos já existentes nos autos. Assim essa modalidade não suporta extensa dilação probatória no que se refere a fatos novos, e na maioria das vezes seria incompatível com o objetivo de comprovar danos decorridos da antecipação dos efeitos da tutela.
Seria inapropriado que se atribuísse ao perito a incumbência de alegar e provar" fatos novos. Essa é a matéria submetida ao princípio dispositivo, insuscetível de ser usurpada pelo credor, mesmo pelo juiz, quanto mais por um auxiliar da Justiça. Proposta a demanda liquidatória, com a alegação de fatos novos, nada impediria que, no seu âmbito fossem produzidas as provas periciais requeridas, seja para a comprovação dos fatos novos, seja para a apuração de valores referenciados aos fatos antigos, já postos no processo de conhecimento. [36]
A título de exemplo, imagine-se a apuração da indenização decorrente do dano moral (perfeitamente possível de ocorrer com a efetivação da tutela antecipada), apenas com a análise de um perito, nomeado pelo juiz da causa. A liquidação do prejuízo, inquestionavelmente, não seria alcançada. Por isso, a determinação geral encontrada no CPC é de que a modalidade de liquidação seja sempre a mais apropriada para o caso concreto, consoante se extrai dos artigos, 475-C, inciso II, e principalmente o artigo 475-E, que determina que "a liquidação por artigos, quando, para determinar o valor da condenação, houver necessidade de alegar e provar fato novo".
À liquidação por artigos, consubstanciada num procedimento à semelhança dos previstos no art. 272 do CPC é a modalidade que oferece a possibilidade de comprovação de danos, por meio da colheita de novas provas, inclusive testemunhal e amplo contraditório, ou seja, na maioria das vezes seria o formato mais apropriado para a apuração e quantificação dos danos, eventualmente, existentes. Tendo em vista esse panorama, seria a especificação contida no do artigo 475-O inciso II do CPC, empecilho para a aplicação da liquidação por artigos?
Tem-se que a melhor resposta é não, isto porque o legislador imaginou que estatuindo a predileção pela liquidação por arbitramento, estaria zelando pela celeridade e objetividade do processo, no sentido de conferir maior eficácia à reparação dos prejuízos decorrentes da execução provisória de um julgado posteriormente reformado.
Não há sentido em que a norma visasse excluir a reparação dos prejuízos impossíveis de apuração em sede de liquidação por arbitramento. Em conformidade com esse entendimento está Daniel Roberto Hertel:
De qualquer sorte, não nos parece haver óbice na utilização da liquidação por artigos desde que seja conveniente ao executado-demandante. Se este pretender alegar e provar fatos novos, a liquidação incidente poderá ser realizada na modalidade por artigos. Nenhum prejuízo é gerado para o exeqüente-demandado na adoção da liquidação por artigos. [37]
Portanto, a exemplo do que ocorre com relação à execução provisória, deverá o prejudicado pela efetivação da antecipação de tutela "[...] promover a liquidação das perdas e danos, por qualquer dos procedimentos, nos próprios autos [...] [38]", inclusive através da liquidação por artigos, que se possibilita com uma justificada interpretação extensiva do 475-O, inciso II do CPC. Uma vez apurado o prejuízo, poderá ter início a fase de cumprimento de sentença, tal como o CPC prescreve para todas as sentenças judiciais, sem distinção do procedimento usual.