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A consolidação do Estado moderno e suas repercussões no pensamento criminológico

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5. A ILUSTRAÇÃO E OS NOVOS RUMOS DO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO

O pensamento criminológico forjado nos séculos XVII e XVIII foram fundamentais quanto às críticas ao sistema punitivo da modernidade, e sua análise possibilita conhecer as bases do penalismo atual.

As principais idéias do período dizem respeito à forma de organização da coisa pública, ou seja, o modo como os governos absolutistas conduziam a administração do poder, oscilando apoios entre a burguesia urbana emergente e os poderes tradicionais da nobreza e do clero.

A ilustração surge como o momento em que a burguesia se volta contra esses poderes tradicionais em nome de uma democratização do exercício do poder. Parte da aceitação da noção de soberania limitada pelos direitos de cidadania, que não contemplavam todas as categorias de indivíduos, excluindo na prática estrangeiros, mulheres e minorias.

As críticas direcionadas ao projeto iluminista apontam no sentido de que as concepções iluministas não eram consensuais, pois assim como idéias diferentes chegavam ao mesmo fundamento contratualista, as diversas noções de contrato eram assimétricas.

HOBBES (2006) por exemplo, ao justificar o direito de punir, afirma que:

(...) antes da instituição do Estado, cada um tinha direito a todas as coisas e a fazer o que considerasse necessário à sua própria preservação, podendo com esse fim subjugar, ferir ou matar a qualquer um. Este é o fundamento daquele direito de punir em todos os Estados. Não foram os súditos que deram ao soberano esse direito. Ao renunciarem ao seu direito, apenas reforçaram o uso que ele pode fazer do seu próprio, da maneira que achar melhor, para a preservação de todos eles. (...) cada um se obriga a ajudar o soberano na punição de outrem.

ROUSSEAU (2000), justificando a punição do infrator pela manutenção do pacto social, ensina que:

Todo o poder vem de Deus. (...) Todo o malfeitor, quando insulta o direito social, torna-se por seus crimes rebelde e traidor da pátria, de que cessa de ser membro por violar suas leis e a qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua, deve um dos dois morrer, e é mais como inimigo que se condena à morte que como cidadão.

Por sua vez, LOCKE (2006), tentou explicar que o Estado estaria justificado a punir por que os homens, apesar dos privilégios de que gozam no Estado de Natureza, nele permanecendo em condições precárias, são rapidamente induzidos a se associar, pois, os percalços a que os expõe o exercício irregular e aleatório do poder próprio de punir as transgressões dos outros homens acabam por obrigá-los a buscar abrigo nas leis e no governo, o que os induz a abrir mão do poder individual de punir em favor de um escolhido que o exerça.

Isto posto, enquanto Hobbes parte da legitimação do poder absoluto do monarca justificando que, diante do estado de natureza os indivíduos cedem, por medo, suas capacidades ao soberano para que este administre o poder da maneira que achar conveniente; Locke supõe indivíduos livres que gozam de direitos naturais, e pactuam para criar uma autoridade superior que resguarde alguns interesses, de forma que o indivíduo é ilimitado, e o Estado limitado pelos direitos naturais. Por sua vez, Rousseau entende o contrato como um ato originário da forma social Estado, que governa seguindo uma vontade geral.

As teorias criminológicas iluministas que se inspiram em uma das 3 idéias têm explicações diferentes sobre as leis penais, a natureza e a finalidade dos castigos. Teorias justificadoras do poder penal máximo partem de Hobbes; Teorias limitadoras do poder punitivo que justificam as garantias emergem de Locke; e derivados de Rousseau acreditam que o Estado não deve proporcionar garantias por ser impossível que esse Estado queira prejudicar seus súditos, já que atuaria conforme a vontade geral.

O ponto comum das diversas concepções ilustradas parte dos questionamentos contrários à visão organicista da sociedade e da valorização da razão humana como base contratual para uma mudança radical nas questões punitivas.

Se a revolução mercantil necessitou do descobrimento e da exploração de novos territórios, da verticalização do poder e de uma burocracia que se apropriou dos conflitos particulares, a revolução industrial do século XVIII exigiu inovações tecnológicas e novas formas de organização política e punitiva, que respondesse às necessidades de ordem das novas e maiores concentrações urbanas.

Isso repercutiria no pensamento político liberal que tentaria justificar um Estado não só limitado pela lei, mas compromissado com os detentores dos meios de produção e repressivo com os improdutivos.

As primeiras teorias criminológicas propriamente ditas foram forjadas a partir da razão experimental ou da experiência racionalmente elaborada, com destaque para Montesquieu e Voltaire, que lutaram contra a superstição, que na seara política criminal deu vazão às piores barbáries.

Refletindo sobre a moderação e a imposição de limites como elementos para um equilíbrio político ideal, Montesquieu (1689 – 1755) propôs a separação dos poderes para evitar as arbitrariedades, criticou a injusta proporção entre delitos e penas, exigiu uma ponderação entre penas e bens jurídicos afetados, criticou a sanção de delitos com base na superstição, foi contrário à regulação dos comportamentos anteriores, aos castigos severos, e defendeu uma reforma processual que negasse as denúncias anônimas e as torturas.

Por sua vez, Voltaire (1694 – 1778) tinha interesses dirigidos para a tolerância, humanização e civilização dos costumes e instituições; não era reformista, pois acreditava que o homem não tinha cura, mas criticava o despotismo do poder político e religioso. Seu pensamento criminológico denunciava os sofrimentos humanos e os erros de um sistema de direito penal arbitrário. Defendeu a presunção de inocência, o direito de defesa e a publicidade das sentenças. Acreditava que as leis deveriam ser claras, uniformes e precisas, sendo que seriam as próprias leis punitivas e as perseguições que criariam os delitos e os delinqüentes.

A síntese do movimento ilustrado revela uma extrema confiança na razão humana e na idéia de progresso da sociedade como forma de emancipação do homem em face da ignorância e das superstições do antigo regime. Contudo, há de se destacar que, do contrário do que possa parecer, o movimento não pregava a necessidade de mudança no regime ou discussão da legitimidade da soberania, mas um governo guiado pela razão com objetivos de educar o povo para conhecer a verdade e guiar-se por ela.

Como conseqüência criminológica do predomínio ilustrado da razão, cite-se como exemplo o materialismo de Claude Helvetius (1717 – 1771) e Paul Dietrich Thiry (1723 – 1789), que desenvolveram uma teoria de imposição de castigo a partir da situação econômica do condenado, que viria a servir de base para o utilitarismo de Bentham e Beccaria.

Considerando que a manifestação do poder ilimitado e dos abusos tirânicos do soberano era verificada na prática punitiva, o pensamento criminológico ilustrado se ocupa inicialmente da imposição de limites a esse poder de punir, a partir da verificação empírica de problemas reais, culturais, e não apenas de conjecturas teóricas.

De acordo com as novas pretensões o Estado só se justificaria na medida em que trouxesse segurança para os indivíduos, estando esta relacionada com a garantia dos direitos naturais, pois estar seguro significaria estar em condições de gozar tais direitos. Uma idéia de segurança que se opõe ao poder do Estado como maior violador dos direitos individuais, e impõe a necessidade de um Estado liberal e mínimo. Em torno dessa idéia de segurança surgem os direitos e garantias processuais penais.

Nesse contexto, a finalidade do Estado liberal ilustrado seria tão somente a garantia da consecução dos objetivos individuais, sem interferência na esfera particular dos indivíduos, exceto para regular as ofensas entre os homens.

Tal justificativa de Estado mínimo iria requerer a regulação dos limites de cada indivíduo na satisfação de suas necessidades frente aos projetos dos outros, ou seja, a regulação das intromissões ilegítimas e transgressoras. Daí que o princípio da legalidade passa a definir os delitos e as penas, sendo que a proteção da segurança de terceiros tinha a dupla função de justificar o poder punitivo e limitar esse mesmo poder, a partir das idéias de bem jurídico e reforço das instituições penais.

A prática revolucionária teve um papel decisivo na consolidação do projeto ilustrado, com destaque para as revoluções Inglesa, Francesa e Americana. Os modelos de legislação penal posteriores às revoluções burguesas aliaram elementos do sistema inquisitivo, como a persecução penal pública e a busca da verdade, bem como elementos do sistema acusatório, como o respeito à dignidade e às liberdades humanas, impondo a proteção do cidadão como limite ao exercício do poder penal.

Outro elemento a ser destacado no pensamento criminológico ilustrado é a obra de Cesare Beccaria, considerado por muitos o mais expressivo representante do iluminismo penal

Partindo do racionalismo, do humanitarismo e do cientificismo como bases de suas idéias, Beccaria acreditava que o progresso técnico capitalista continha um progresso moral que exigia um novo projeto penal favorável às liberdades individuais. Assim, na sua obra mais célebre, "Dos delitos e das penas" de 1764, posicionou-se contra o poder punitivo da época, servindo de inspiração para inúmeros projetos legislativos da época, como na Rússia, Toscana e Áustria.

A base contratualista de seu pensamento defendia que a origem das penas estaria legitimada na necessidade de defesa do contrato social frente aos ataques particulares.

Nas palavras de Beccaria, cansados de viver em meio aos temores que ameaçavam a conservação de suas liberdades no estado de natureza, os homens sacrificaram parte de suas liberdades individuais para usufruir do restante com mais segurança, a reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir.

O aspecto utilitarista de seu pensamento resta-se configurado na finalidade da pena, que seria sua utilidade na prevenção de novos delitos. Assim, todo ato de autoridade seria tirânico se não fosse baseado na necessidade, sendo injusto o castigo que não objetivasse exclusivamente a manutenção do contrato.

O princípio da legalidade defendido por Beccaria limitava o arbítrio do magistrado pela lei, limitava o legislador pela exigência da utilidade social, e limitava o comportamento dos indivíduos pelo efeito dissuasivo da punição. Assim, a certeza da punição ganhava espaço em detrimento da severidade dos castigos.

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Criticou ainda a concessão de graças e indultos, o processo penal inquisitorial, e as confissões secretas. Defendia a oficialidade, a imparcialidade e a publicidade, a proporcionalidade entre delito e pena, e a pena de prisão.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A VALORIZAÇÃO DO HOMEM E DO DIREITO COMO ESTRATÉGIAS PENAIS ILUSTRADAS

A proposta penal iluminista pretendia racionalizar o castigo para que atuasse ao mesmo tempo como instrumento para os fins sociais do Estado e limitação do poder desse mesmo Estado em face do cidadão, a partir da aplicação da teoria do contrato na esfera penal.

Delito e pena aparecem então como estratégias jurídicas desvinculadas do poder político, de forma que o direito justificaria o poder soberano não pelo seu exagero, mas pelo efeito prático, convincente e racional de sua aplicação no benefício de todos.

A idéia da pena fundada no livre arbítrio e na culpabilidade pessoal funcionaria como estratégia, juntamente com a legalidade, a proporcionalidade e a codificação, para uma maior aceitação das novas justificativas punitivas, e consequentemente para os propósitos de harmonização da liberdade econômica e do convívio social seguro.

A prevalência do jurídico, expressada na lei escrita como sinônimo de clareza e racionalidade foi fundamental para a aceitação da função limitadora da punição. No mais, a legalidade iluminista ia além da legalidade inquisitorial, que estacionava num Estado com leis, mas alcançava limitações ao Estado e ao legislador, como o reconhecimento da culpabilidade do agente e da lesão ao bem jurídico para a caracterização do delito. O direito assumia assim uma dupla função de legitimador e limitador do poder.

As mudanças nas estratégias de legitimação do poder punitivo ensejaram diferentes critérios justificadores do castigo, que até hoje continuam presentes nos ordenamentos jurídicos, as chamadas teorias da pena.

Segundo o critério utilitarista, o castigo deveria possuir uma função útil para a sociedade, que seria a prevenção de novos delitos. Já para o critério retributivista ou absoluto, o castigo seria uma conseqüência do crime que não exigiria uma função futura

Como exemplo de teoria absolutista, cite-se a idéia Kantiana de que a pena se justificaria pelo merecimento ocasionado pela culpa do infrator, de forma que a punição seria determinada pela responsabilidade individual decorrente do livre arbítrio humano. A pena seria então uma vingança pelo desrespeito voluntário à ordem legal

Exemplificando a teoria utilitarista, tem-se a idéia da defesa social de Bentham, para o qual a pena deve ser a mínima possível para garantir a prevenção de novos delitos, não sendo o castigo um mal oposto a outro, mas algo que justifica pela capacidade de promover um bem maior no futuro.

Desde a ilustração, o poder de punir não seria mais justificado como um tributo do mais forte ou do legitimado pela tradição, mas como um instrumento racional conveniente para a sociedade, sendo que a opção pelas de teorias retributivas ou utilitárias vem partindo das necessidades de cada momento histórico.

O abandono das justificativas cosmológicas e dogmáticas para o exercício do poder de punir cedeu espaço para a aplicação contratualista fundada na liberdade humana e no benefício da coletividade, e essa idéia, por defender interesses tão elevados, resistiria contra os limites que ela mesmo traçaria, segurança ou liberdade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Mazukyevicz Ramon Santos do Nascimento Silva

Agente de Segurança Penitenciária da Paraíba; Ex-Professor da Escola de Gestão Penitenciária da Paraíba e da Escola Penitenciária do Rio Grande do Norte; Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela UFPB/MJ; Mestrando em Direitos Humanos pela UFPB; Membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Mazukyevicz Ramon Santos Nascimento. A consolidação do Estado moderno e suas repercussões no pensamento criminológico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2777, 7 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18425. Acesso em: 17 nov. 2024.

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