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Lei dos Transplantes: duas abordagens diferentes

12/10/1997 às 00:00
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ESTA NOITE DESAPROPRIAREI O SEU CADÁVER

O Congresso acaba de aprovar lei que faz de cada cidadão um potencial doador de órgãos para transplante. A obra tem aspectos singulares de plágio: o cineasta Zé do Caixão já há tempos vem ameaçando encarnar no cadáver alheio; o órgão transplantado será devolvido quando o receptor morrer, mas existe o risco de ser transplantado de novo e o doador nunca tê-lo de volta, como já aconteceu com o imposto compulsório; é um modismo ecológico, ou seja, o homem reciclável. lembra Lavoisier: "No mundo nada se perde, nada se cria, tudo se transplanta".

Espero que não seja sancionada (*), para não plagiar Luiz XIV: "O Estado sou eu".

Evitando classificar o fato como violência legal, prefiro enquadrá-lo no campo da teratologia jurídica, ciência que vem sendo construída a custa de inconstitucionalidades e arbitrariedades.

O lado bom é que produzirá, nos poucos segundos de uma canetada, uma coisa que vem sendo tentanda há dois mil anos: dotar o homem do nobre sentimento da solidariedade com seus semelhantes. Também, muitos ficarão satisfeitos porque vislumbram nas entrelinhas da lei o provérbio: É doando que se recebe.

Os institutos de pesquisa já fizeram a projeção de que, metade dos entrevistados não tomará conhecimento da existência da lei, e outra metade está com a saúde tão abalada que é imprestável para transplante, e a terceira metade pensará que é uma piada. Afinal, será reconhecida a beleza interior, e no carnaval já próximo poderão ser admirados balouçantes fígados e rítmicos corações.

Quem morrer (e doar os olhos) verá.

Poderá vir, em seqüência, o ICI (imposto sobre o cadáver improdutivo) de aliquota progressiva: os naturalistas estarão isentos, os bebuns pagarão 51%, e os fumantes serão taxados em dobro. Ex-vedetes não serão mais veladas de bruços pois preferirão doar a parte boa para observação depois da morte. O maneta pedirá a ficha policial do doador e explicará que não quer mão de ladrão. O pirata da perna de pau já comprou um par de sapatos, enquanto o cara de pau pouco está ligando, já que lhe basta uma tábua.

Pelo lado jurídico algumas conseqüências serão inevitáveis. É que, o acessório segue o principal, e o receptor de uma boa cabeça receberá também os cornos do falecido. Brincadeira !

A lei inverte toda a doutrina sobre a manifestação de vontade, por atribuir ao cidadão o direito de dizer o que não quer, e isto é uma violação do regime democrático, dentro do qual a regra é de o cidadão dizer o que quer.

Não se pode admitir que um Estado Democrático de Direito conviva com a presunção da vontade individual, sob pena de a criatividade chegar à raias do absurdo legal:

Quem cala consente.


LEI E DIREITO

"No entanto, para que se possa julgar se os fundamentos de que parti são bastante sólidos, encontro-me, de algum modo, obrigado a falar deles."
(René Descartes, Discurso do Método)

A Lei dos Transplantes foi sancionada e publicada. Uma lei não é simplesmente uma lei: alguma coisa oriunda do poder e à qual todos devem obediência. Uma lei, num País que tem uma Constituição que declara existirem a ordem jurídica e o regime democrático, dentro de um Estado Democrático de Direito, não pode produzir lesões nestes institutos.

Num País em que a regra, por questões culturais genéricas, é não doar órgãos, a regra foi transmudada em exceção:

Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem.

Num País em que a esmagadora maioria dos indivíduos desconhece os direitos fundamentais, não é de se esperar que todos venham a tomar conhecimento de que é um doador presumido e que pode negar-se a tal. Quantos Josés da Silva terão seus órgãos transplantados sem nunca ter sabido que a lei existe.

O doador presumido só pode negar-se se mandar inscrever a negativa (mortis causa non donat) na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação (art. 4º, § 1º). E as outras carteiras de identidade (OAB, MP, Militar etc.) que são legais e válidas em todo território nacional ?

Diz o art. 6º que o cadáver de pessoa não identificada não é alcançado pela lei, mas não diz o que é pessoa identificada. Caso o intérprete decida que pessoa não identificada é aquela que não possui os documentos citados no art. 4º, § 1º, muitos já ficarão fora do alcance da lei. No entanto, se o intérprete optar a identificação se dá por qualquer forma admitida no direito, quem não tiver os tais documentos será um doador presumido, mas não tem, pelos termos da lei, onde inscrever a sua negativa pois a lei atribui forma especial. Ou será que a lei já vai ser avacalhada desde o início admitindo-se que qualquer forma hábil de manifestação da vontade é válida ?

O cerne da questão parece estar mais profundo, como anota Robert Henry Srour, em Classes, Regimes, Ideologias, Ática, 1987, pág. 229/231:

"No regime liberal, direitos civis e políticos estão assegurados, mas podem manter-se formais ou aquém de sua efetiva prática quando se trata das camadas mais humildes das classes subalternas." "Há uma diferença qualitativa entre o regime liberal e o democrático: o primeiro favorece amplamente as classes proprietárias, no quadro de um Estado que se enquadra para respeitar direitos e garantias formais; o segundo faz pender a balança para as classes subalternas, para o bloco popular, graças à vigência de liberdades reais às quais se agregam os direitos sociais, de vital importância."

O velho ditado diz que é a ignorância que atravanca o progresso, é o que em outras palavras anota José Eduardo Faria, em Eficácia Jurídica e Violência Simbólica, USP, 1988, pág. 116 e 117, quando, abordando a questão da modernização e da legalidade, esgrima a questão das implicações entre o autoritarismo político e a dogmática jurídica nas sociedades em desenvolvimento:

"Em primeiro lugar, porque seus regimes políticos preocupam-se, basicamente, com a realização de metas modernizantes - a história não é farta em exemplos de países que conseguiram, por vias espontâneas e democráticas, fornecer respostas imediatas e flexíveis para neutralizar as inevitáveis tensões comuns a qualquer processo de reorganização e modernização das estruturas sócio-econômicas. Em segundo lugar, porque a identificação da eficácia gerencial como condição de legitimação desses regimes, no sentido de que a consecução de metas previamente planejadas justificaria a posteriori um exercício autoritário do poder, é incompatível com os paradigmas positivistas de um direito voltado para a permanência e estabilidade de seus institutos."

Não tenho nada contra os que necessitam de transplantes, pois são tão vítimas quanto os famintos e os abandonados de toda sorte; apenas não consigo, como jurista, entender que num País onde se faz mutirão para das aos indivíduos uma carteira de identidade, estes mesmos indivíduos recebam a graça estatal de serem doadores presumidos.

À família de José da Silva (maior, capaz, analfabeto, trabalhador braçal, portador de carteira de identidade civil, que não tomou conhecimento da lei e não inscreveu a negativa), com morte cerebral por causa de um andaime que desabou sobre sua cabeça, envio meus antecipados pêsames, pois ele será transplantado antes que vocês saibam o que aconteceu.

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Fernando Noronha, em Direito e Sistemas Sociais, UFSC, 1987, pág. 131, explica:

"A realidade social tinha, evidentemente, de falar mais alto. O Direito, precisamente porque é um elemento vivo da própria sociedade, não pode ser contido em códigos, nem em leis avulsas de atualização, nem mesmo em correntes jurisprudenciais imutáveis. O "direito livresco", "the law in the books", na expressão de Pound, não consegue abarcar a "law in action", não consegue exprimir nem a riqueza do "corpus juris real" (Esser) de uma dada época, nem, muito menos, as transformações que este está continuamente experimentando."

Não vi, também, qual o caráter jurídico da lei, dado que parece ter mais de uma cara.

Antes de fazer alguns apontamentos civis (que por incrível vão parecer brincadeira de novo), quero anotar que o Código Penal, no capítulo que cuida dos crimes contra o respeito aos mortos, diz que a intenção é proteger o sentimento de respeito, e que a vítima é a coletividade.

A lei lida com doadores presumidos e receptores difusos, e o governo apenas intermedia (ou será intermedeia como está no art. 15 da lei). Acontece que o doador presumido apenas pode declarar que não quer cumprir.

O que será isto?

Será desapropriação prévia, deferido ao desapropriado o domínio útil do corpo enquanto vivo for, ou será um contrato (com a alma) para uso do corpo com a cláusula mortis causa cessat. Depósito legal, enfiteuse, testamento social, contrato de não adesão, legado coletivo, doação compulsória, o quê?

A lei criou um problema seríssimo para os intérpretes, não só para descobrir qual o seu caráter mas, principalmente porque criou uma nova teoria para a autonomia da vontade: ao Estado pertence por inteiro o "dogma da vontade" e mais meio "dogma da declaração", e ao cidadão pertence o sobrante meio "dogma da declaração", em resumo, é o direito de só poder dizer não.

Interessante é (não consigo me conter) que os bancos começaram a mandar cartões de crédito para quem não pediu, com a cláusula se não quiser diga não e se não disser nada está valendo, e o governo caiu de pau em cima porque desrespeitava a autonomia da vontade.

Que o diga Vicente Ráo, em Ato Jurídico, Saraiva, 1981, pág. 19:

"É certo que a incoincidência das normas com as condições sociais não obsta a eficácia obrigatória das leis, mas o desconhecimento ou o desrespeito dessas condições tornam as normas ilegítimas por violação do princípio ético-social que deve norteá-las, as fazem injustas, ou inadequadas, ou obsoletas, provocando o seu abandono, seja uma reação social, para, afinal, imporem a sua reforma e o seu aperfeiçoamento, à busca do equilíbrio indispensável entre os fatos sociais e o direito. Não é a norma, pois, a fonte exclusiva dos direitos, senão a norma com os fatos sociais substancialmente conjugada, segundo as necessidades, as contingências e as aspirações humanas, individuais e coletivas, cujas soluções formam a ordem jurídica."

Se não se encontra o fundamento ético-social e a compatibilidade com a ordem jurídica e o regime democrático, então, é teratologia jurídica.


(*) NOTA

O referido projeto de lei encontra-se em vigor, como Lei nº 9437/97.

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Sobre o autor
Serrano Neves

procurador de Justiça em Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Serrano. Lei dos Transplantes: duas abordagens diferentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. -2089, 12 out. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1845. Acesso em: 22 dez. 2024.

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