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A manipulação do patrimônio genético no contexto do ordenamento jurídico vigente

10/08/1997 às 00:00
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Está em debate o assunto mais importante que até hoje a humanidade já enfrentou, o segredo mais íntimo do homem, que a ciência está revelando: seu código genético, seu destino. A recente notícia da clonagem da ovelha Dolly, que alvoroçou a comunidade científica e a opinião pública, deu ensejo a reacender a discussão da manipulação do patrimônio genético. Neste breve ensaio , procuramos analisar sucintamente essa relevante questão no contexto do ordenamento jurídico vigente.

Nos nosso dias, os laboratórios de biologia molecular de todo o mundo unem os seus esforços com o objetivo de catalogar toda a informação biológica contida no DNA, um desafio comparado por alguns à cisão do átomo ou à ida à Lua. A idéia não é recente, mas apenas pode ser posta em prática a partir do momento em que seqüenciar um gene (1) se tornou numa ação de rotina laboratorial.

Na origem deste esforço está o chamado PROJETO GENOMA HUMANO. Desde 1985 que se discutia, em várias reuniões científicas, a possibilidade de organizar um projeto para o genoma humano. A possibilidade de obter mapas detalhados de todos os cromossomos humanos e a sua sequência nucleotídica é intelectualmente excitante e possui um enorme potencial para o progresso científico e médico. Em muitas áreas de investigação a procura e identificação de genes específicos constitui aspecto essencial para a continuação da pesquisa. Deste modo torna-se inevitável que se procure mapear e seqüênciar sistematicamente o genoma humano. As discussões que se iniciaram, (e que se arrastam até aos nossos dias) foram amadurecidas, até que o projeto tomou a sua forma atual. Estas idéias e mais concretamente os planos e linhas gerais do projeto foram apresentadas em 1988.

O Projeto Genoma (2), em andamento, possui característica de um trabalho de pesquisa internacional, concebido para que no espaço de 15 anos se obtenham os mapas biológicos detalhados de cada um dos vinte e quatro cromossomos humanos, de forma a saber onde se encontra cada gene. Pretende-se também determinar a sequência desses genes, o que perfaz um total de cerca de três bilhões de nucleótideos a serem codificados, por meio de técnicas que permitam manejar e analisar os dados obtidos.

Nesse mesmo contexto de manipulação genética, em julho de 1996, em Roslin, na Escócia, nasce Dolly, uma ovelha da raça Finn Dorset. A equipe do embriologista Ian Wilmut, do Instituto Roslin, na Escócia, conseguiu realizar algo que muitos pensavam ser impossível: uma cópia idêntica de um mamífero adulto, produzida artificialmente e de forma assexuada, isto é, sem a participação do gameta masculino. O código genético das duas ovelhas não tem qualquer diferença foi duplicado, por um procedimento intitulado clonagem.

Surge, pois, a discussão acerca da manipulação genética de genes humanos. A ovelha replicante Dolly provocou uma febre legal nos Parlamentos de todo o mundo, que preparam comissões e projetos de lei para evitar que sejam criadas réplicas de seres humanos. Para Ian Wilmut, "pai" de Dolly, é possível a clonagem de seres humanos. Entretanto, ele afirmou que nunca o fará. Não encontra "razões de ordem clínica" para clonar seres humanos e, em última análise, seria "inaceitável do ponto de vista ético". E do ponto de vista do ordenamento jurídico vigente, como poderia ser tratado esse tema?

No Brasil, a pesquisa genética obteve assento na Constituição Federal de 1988, a qual no Título VII - Da Ordem Social e no Capítulo VI, que trata do Meio Ambiente, compreendido como "complexo de relações entre o mundo natural e os seres vivos, as quais influem na vida e comportamento de tais seres", dispôs no art. 225 , verbis: :

"todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

Dispõe, ainda, no § 1º que, para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

a) inciso II - "preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético";

b) inciso V - "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente".

Ademais, convém lembrar que a Carta Magna estabelece uma gama de direitos individuais e coletivos que resguardam, dentre eles, o direito à vida ( artigo 5º, caput), o direito à integridade física e moral , a dignidade humana ( art. 1º, inciso III) , bem como, a saúde como direito de todos e dever do Estado (artigo 196).

A vigente Lei nº 8.974/91 (Lei de Biossegurança) , concretizando o texto constitucional, estabelece normas para o uso de técnicas de Engenharia Genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados (OGM) e , expressamente, veda A MANIPULAÇÃO GENÉTICA DE CÉLULAS GERMINAIS HUMANAS, bem como autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.

Assim, logo em seu artigo 1º , essa importante legislação, dispõe:

"Art. 1º Esta lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização no uso das técnicas de engenharia genética na construção, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, liberação e descarte de organismo geneticamente modificado (OGM), visando a proteger a vida e a saúde do homem, dos animais e das plantas, bem como o meio ambiente."

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Ademais, restringe ao âmbito de entidades de direito público ou privado as atividades e projetos, inclusive os de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico e de produção industrial que cultivam OGM no território brasileiro (artigo 2º). Ficam vedados, assim, às pessoas físicas, como agentes autônomos independentes, as atividades e projetos mencionados na lei (artigo 2º, parágrafo 2º).

Em face da relevância da matéria, a lei estabelece , além da responsabilização civil, penas privativas de liberdade de 3 meses de detenção a 20 anos de reclusão , consoante o disposto no artigo 13 da legislação referida, abaixo parcialmente reproduzido:

"Art. 13. Constituem crimes:

I - a manipulação genética de células germinais humanas;

II - a intervenção em material genético humano in vivo, exceto para o tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência, e com a aprovação prévia da CTNBio".

A par dessas normas, o Código de Ética Médica estabelece (artigo 7º) que "o médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir ou acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade".

Claramente, percebe-se nestas normas a preocupação incipiente no âmbito legislativo sobre o tema , a fim de que o Direito possa disciplinar e ordenar a conduta com vistas a harmonização dos bens constitucionais relevantes à discussão em comento: a "preservação da diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético", expressão do respeito ao Meio Ambiente , e " o direito à integridade física e moral(art. 5º)" , bem como "a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196)".

Para o Estado de Direito, o direito de disposição personalíssima de determinados bens não é uma mera força social; é um poder jurídico, um poder de direito; é um poder que decorre, para a comunidade, da ordem jurídica natural. Logo, o poder que tem o Estado e os particulares de decidir o que fazer com o mapeamento genético não é um poder de fato, e , sim, um poder de direito, nesse sentido, interessante , lembrar a tutela desse bem jurídico no âmbito penal e civil pela legislação já referida ( Lei 8.974/95).

A análise do que foi dito nos permite perfilhar a tese da necessidade de fiscalização das conseqüências trazidas pelo PROJETO GENOMA e da IMPOSSIBILIDADE DE CLONAGEM HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO, isto porque, a topologia dos direitos de preservação da integridade do patrimônio genético impede a sua modificação pela via legislativa ordinária . Desse modo, harmoniza-se de forma efetiva o progresso científico com a dignidade da pessoa humana ( art. 1º , inciso III da Constituição Federal) e com a garantia de um meio ambiente equilibrado que preserva a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País.



NOTAS

(1) Os GENES são segmentos de moléculas de DNA com um código genético específico pela ordem de seus nucleotídeos. Situam-se em estruturas intranucleares chamados cromossomos. Além da dominância e da recessividade, existem diversos padrões de comportamento entre os genes, como co-dominância, a interação gênica, a epistasia e outros. ( Biologia, José Luís Soares, volume 2, página 266) . A espécie humana possui 23 pares de cromossomos. Cada gene possui um lugar no cromossomo, denominado locus - local. Para cada posição que esse gene ocupa no cromossomo, possuirá duas expressões genéticas, uma materna e outra paterna, que são os alelos. Ao conjunto de ambos dá-se o nome de genótipo; o que se poderá constatar externamente no indivíduo chama-se fenótipo. Este resultará do caráter recessivo ou dominante de cada gene. (Apud Márcia Cristina Ananias Neves, "Investigação de Paternidade", página 838) . Existem de 100.000 a 200.000 genes no ser humano.

(2) De acordo com o ensinamento de TOM WILKIE , na obra Projeto Genoma Humano: um conhecimento perigoso , tradução de Maria Luiza X. de A. Borges; revisão técnica, Darci Fontoura de Almeida, Jorge Zahar Ed , Rio de Janeiro , 1994, p. 15:

"Cerca de quatro décadas mais tarde, depois de dividir o Prêmio Nobel de 1962 pela descoberta da hélice dupla, James Watson pôs seu talento a serviço de expedição dos Estados Unidos à estrutura genética da humanidade, assumindo seu comando. O Projeto Genoma Humano é um esforço internacional: trata-se não de um, mas de muitos projetos, com pesquisadores em diferentes laboratórios de diferentes países empenhados na busca dos genes que mais lhes interessam. O programa dos Estados Unidos é, sem dúvida, o mais bem financiado e coordenado. De modo um tanto inusitado, está sendo conduzido conjuntamente pelos Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health - NIH), o órgão que financia a pesquisa médica nos Estados Unidos, e pelo Ministério da Energia. Durante os três primeiros anos, de 1989 a 1992, Watson foi diretor da principal agência, o Centro Nacional para Pesquisa do Genoma Humano, fundado pelos NIH".

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Sobre o autor
Paulo José Leite Farias

promotor de Justiça em Brasília (DF), diretor da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal, professor da Universidade Católica de Brasília, professor substituto da Universidade de Brasília, mestre em Direito e Estado pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Paulo José Leite. A manipulação do patrimônio genético no contexto do ordenamento jurídico vigente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 17, 10 ago. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1848. Acesso em: 16 abr. 2024.

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