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O direito fundamental à boa administração sob a ótica do Estado.

Problemas e desafios

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17/02/2011 às 19:53
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7.Licitações e alguns dos seus problemas

A busca pela eficiência dos gastos públicos passa, necessariamente, pela melhoria do procedimento estatal utilizado para adquirir os bens e insumos necessários ao seu agir. Isto faz com que este mesmo procedimento seja um dos pontos mais nevrálgicos da Administração Pública. Alguns dados empíricos servem para demonstrar esta criticidade.

As tabelas [05] abaixo foram construídas a partir de dados do Tribunal de Contas de Pernambuco. Nelas, foram totalizadas, apenas, as prestações de contas julgadas do executivo municipal (PCMs).

A primeira tabela mostra que o percentual de PCMs que contenham alguma menção ao instituto da licitação - seja na fundamentação da decisão (como considerando – apontando o cometimento de uma irregularidade mais grave), seja como uma recomendação (irregularidades mais simples ou formais) – cresce gradualmente.

Ano

Qtd. PCMs

Qtd. PCMs cuja decisão contenha alguma menção ao instituto da licitação

Percentagem

2005

400

56

14

2006

348

63

18,10

2007

355

71

20

2008

300

83

27,67

2009

287

77

26,83

2010

136

48

35,29

Quando focamos a nossa atenção para as PCMs que tiveram julgamento pela irregularidade das contas (segunda tabela, abaixo), o peso do desvio de conduta no procedimento licitatório apresenta um crescimento percentual ainda maior. Pelos números pode-se concluir que, em média, nos últimos cinco anos, cerca de um terço das PCMs irregulares tiveram problemas com licitação.

Ano

PCMs irregulares

PCMs irregulares com menção a licitação

Percentagem

2005

89

28

31,46

2006

127

37

29,13

2007

167

55

32,93

2008

164

60

36,60

2009

148

60

40,54

2010

86

33

38,37

Este aumento gradual da relevância das irregularidades em licitação na apreciação das prestações de contas reflete o próprio aumento da complexidade social. De fato, à medida que o tempo passa, a sociedade brasileira torna-se mais consciente de seus direitos fundamentais. Isto faz com que a pressão pela concretização dos referidos direitos se torne cada vez maior.

Como resultado desta pressão, o Estado vê-se forçado a modernizar-se e a buscar melhorias em sua gestão. Como consequência direta deste processo, o Estado providencia a aquisição, no mercado, de novos bens e serviços, nunca dantes utilizados ou requeridos, com vistas a criar os meios necessários para a concreção dos direitos. Naturalmente, a inovação dos objetos da licitação provoca um aumento do risco da existência de irregularidades na licitação (direcionamento, objeto genérico, especificação incompleta, etc).

Quando se fala em problemas da licitação, há um certo consenso na doutrina que aponta os seguintes itens como os principais: a complexidade da legislação, a burocracia do procedimento, o custo de transação associado e a corrupção.

Devido a nossa tradição romanística, há uma clara opção por se tentar normatizar tudo que envolve este procedimento. Isto faz com que a utilização do instituto seja extremamente complexa, necessitando-se de pessoas que detenham um conhecimento técnico especializado. Infelizmente, esta não é a realidade em todo o território brasileiro.

Por outro lado, em função da grande quantidade de princípios constitucionais que a licitação tem de obedecer (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, vinculação ao instrumento convocatório, objetividade do julgamento, etc), o procedimento licitatório torna-se lento e burocrático. Eduardo FIUZA (2010, p. 8) lembra que, "na União Européia, os únicos princípios a serem observados (Diretiva 2004-17-CE, Artigo 14) são tão-somente a igualdade de tratamento; a não discriminação; e a transparência".

Outrossim, deve-se levar em conta que os contratos administrativos são, na sua maioria, incompletos, ou seja, os planos iniciais e as especificações dos bens e serviços procurados são mudados e refinados após a adjudicação do bem. Vários são os motivos para isso: especificação inadequada do objeto, mudanças ambiental ou fática, ou a própria incompletude do contrato inicial. Isto faz com que as propostas incluam este risco de adaptação e os custos da renegociação, o que aumenta ainda mais o preço final praticado. Neste ponto, a teoria econômica dos contratos poderia trazer insumos valiosos para a prática licitatória.

Os custos de transação associados a uma licitação são inúmeros. Entre os custos da Administração, pode-se contabilizar os econômicos (direto e indiretos, tais como papel, computadores, comunicação, entre outros), as horas de trabalho dos servidores alocados para proceder com o iter processual (construção do edital, acompanhamento dos feitos, construção de pareceres, etc), taxas, seguros, garantias, fretes, etc.

Além destes, temos os custos incorridos pelos licitantes, que fatalmente serão transferidos para o preço final do bem/serviço a ser adquirido. Neste grupo, incluem-se os custos de cadastramento, obtenção de certidões necessárias para a prova de qualificação ou regularidade, deslocamento de pessoal e material para amostra, etc. FIUZA (2010, p. 3) coloca que "quanto mais trâmites burocráticos e quanto maior a incerteza sobre a conclusão do processo de compra, maiores ficam sendo os custos das firmas participantes da licitação".

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Por fim, um dos principais problemas das licitações é a corrupção. Por envolver um ambiente em que a capacidade de decisão do gestor é por demais ampla, adicionado ao fato de que os controles são escassos e a visibilidade pública bastante limitada, as licitações transformam-se num ambiente propício para o desenvolvimento de tal prática. Em alguns setores, o principal fator de competitividade torna-se a capacidade da empresa em corromper o sistema. Estima-se que, em alguns casos, a corrupção representa mais de 30% dos custos governamentais derivados dos processos licitatórios.

Hodiernamente, as licitações tem sido alvo de uma forma mais elaborada de fraude: a cartelização. Os cartéis, ao fraudarem o caráter competitivo das licitações, prejudicam substancialmente os esforços governamentais na busca do desenvolvimento do país, beneficiando indevidamente as empresas participantes do conluio. Ainda que a Administração busque racionalizar suas compras por meio de controles orçamentários mais estritos e de melhoria nas formas de contratação – como por meio do uso do pregão eletrônico –, isso não impede a ação dos cartéis, que provocam transferência indevida de renda do Estado para as empresas.

Dia a dia, vê-se que as práticas de cartéis nas compras públicas se tornam cada vez mais comuns. Tal conclusão é evidenciada, nos últimos anos, pela grande quantidade de operações policiais que buscam combater tal ilícito (Vampiro [2004], Sentinela [2004], Sanguessuga [2006], Carta Marcada [2006], Fox [2006], Alcaides [2006], Jaleco Branco [2007], Castelo de Areia [2009], entre outras).

O prejuízo causado, ao estado brasileiro, por essa prática pode ser estimado na ordem das centenas de milhões de reais, considerando que as compras de bens, serviços e a construção de obras públicas pelo Estado representam parcela expressiva do seu PIB. Além disso, a experiência da Secretaria de Direito Econômico (SDE) e de outras autoridades concorrenciais estrangeiras demonstra que o formato de licitações pode facilitar a formação de cartéis.

No entanto, não existem muitos trabalhos jurídicos que procurem estudar, com mais afinco, esta problemática. Assim, deve-se buscar um tratamento científico adequado para a caracterização do conluio nas licitações.


8.Conclusões

A "boa administração" é um direito de origem européia. De início, foi tido como um princípio específico para garantir a competitividade. Com o passar do tempo, evoluiu através da jurisprudência da Corte Européia para ser visto como um princípio geral até que, em 2000, foi sufragado como um direito fundamental na Carta de Nice.

Neste diploma legislativo, o direito a boa administração foi justificado como uma decorrência do próprio Estado de Direito. Logo, todo e qualquer Estado que assuma esta forma, já alberga este direito, no mínimo, de forma implícita.

O Brasil não é exceção. Além de albergá-lo, viu-se que a Constituição Federal provê todo um conjunto de institutos e órgãos para a sua proteção. Em especial, os Tribunais de Contas possuem um papel especial na proteção deste direito, ao utilizar as técnicas da auditoria operacional para avaliar a efetividade das medidas adotadas pelos gestores públicos.

Este "novo" papel dos TCs visa a garantir, de forma transversa, que o Estado cumpra com o dever ao qual ele está vinculado, por decorrência do direito fundamental a boa administração: a boa gestão. Sem uma gestão eficiente dos recursos públicos, boa parte dos direitos fundamentais, especialmente os sociais, estão fadados a serem meras "letras mortas".

Os desafios para o Estado são enormes. Vários são os problemas que devem ser evitados para que se garanta uma boa gestão: a captura política, a falta de transparência e a baixa qualidade dos gastos públicos.

Focando, especificamente, na qualidade dos gastos públicos, percebe-se que uma melhoria nesta área passará, necessariamente, por uma melhor compreensão do ambiente que envolve o procedimento adotado para as aquisições de bens e serviços. Neste ponto, uma grande contribuição pode ser trazida pela utilização do instrumental adotado pela economia, tais como, teoria dos contratos incompletos, teoria dos jogos, racionalidade econômica dos agentes, etc.

Os benefícios trazidos por esta visão multidisciplinar possibilitará o surgimento de um Estado mais eficiente com relação à utilização dos seus recursos. Isto facilitará o atendimento das demandas sociais por novos direitos e a efetiva concretização do direito fundamental a boa administração. Eis o grande desafio da modernidade brasileira.

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Sobre o autor
Bruno de Oliveira Lira

Advogado. Especialista em Direito Processual. Mestrando em Ciência Jurídica pela Faculdade de Direito do Recife.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIRA, Bruno Oliveira. O direito fundamental à boa administração sob a ótica do Estado.: Problemas e desafios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2787, 17 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18515. Acesso em: 27 abr. 2024.

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