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Limites éticos e jurídicos à experimentação genética em seres humanos.

A impossibilidade da clonagem humana no ordenamento jurídico brasileiro

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19/11/1997 às 00:00
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V - Limites bioéticos à clonagem humana

Nesta parte do trabalho, procura-se analisar a clonagem humana à luz dos princípios norteadores da bioética (respeito às pessoas, beneficiência e justiça) consagrados no Relatório Belmont que trata especificamente da adequação de pesquisas realizadas em seres humanos.

Deve-se observar, entretanto, que há íntima relação entre a análise jurídica efetuada e a análise ética em especial em matéria que se relaciona intimamente com o maior valor humano : a vida.

No que se refere ao primeiro princípio ético o do respeito às pessoas ( também chamado princípio da autonomia) , o Relatório Belmont propõe , dentre outras proposições, que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas.

Assim, há uma exigência moral de se proteger aqueles com autonomia reduzida. Uma pessoa com autonomia é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e agir na direção desta deliberação. Todo ser humano deve ser amparado, no que se refere ao seu direito de existir. Nesse sentido, boa parte da doutrina a qual me filio defende que a personalidade civil começa na concepção, até no interesse de se proteja os que tem sua autonomia reduzida. Para essa concepção, o "nascituro", já existe como pessoa, sendo sujeito de direitos (conforme assegurado no Código Civil (18)) , tendo como direito constitucional prioritário, até para o exercício dos outros, o de nascer com vida.

Indo mais além, entretanto, defendo que o respeito às pessoas, primeiro dos princípios bioéticos, abarca a peculiaridade que caracteriza o ser humano: o de ser concebido no seio da família, por meio da união sexuada de um homem e de uma mulher.

Mediante este ato fundamental da concepção amparado pelo art. 226 da Constituição Federal, que define a família como base da sociedade (19) ("célula mater"), a procriação da espécie humana tem um lugar único e insubstituível que lhe garante a maior riqueza do indivíduo: ser diferente e único em relação aos outros, uma vez que seu patrimônio genético é fruto das infinitas combinações possíveis entre a carga genética do seu pai e a carga genética de sua mãe.

Desse modo, a clonagem vai de encontro, conforme já comentado, a possibilidade da enriquecedora atuação do ambiente familiar que começa no ato conceptivo e se estende ao longo da vida do indivíduo.

Ademais, a clonagem humana também fere o princípio da beneficência, verificando-se que o indivíduo oriundo do processo de clonagem possui uma qualidade de vida inferior ao gerado pelo ato sexuado natural. A própria ovelha, DOLLY, apresenta, consoante boletins médicos, problemas de gigantismo (tendo nascido em proporções consideravelmente maiores que uma ovelha comum) e de duração de vida menor.

Dos três princípios, objetivamente, a maior ofensa ocorre ao terceiro princípio da bioética, o da justiça, aquele intimamente relacionado com o princípio da isonomia.

Observa-se que a utilização da clonagem iria criar uma distinção absurda entre seres humanos: aqueles com carga genética própria e aqueles "xerocopiados" destes.

Haveria, implicitamente, uma idéia de ser primário e ser secundário, não existente na concepção natural que, sabiamente, torna cada um único. Tal diferenciação não se coaduna com o preceito valorativo de igual respeito a todos os seres humanos.

Nesse sentido, chega-se ao cúmulo, de se sugerir no meio médico, que um indivíduo clônico poderia ser fonte permanente de reposição de órgãos para outro, o que fere, sobremaneira, a dignidade humana, diferenciando, de forma injusta, pessoas humanas que independentemente da sua origem não perderiam sua intangível natureza humana.



VI - Conclusão

A análise do que foi dito nos permite perfilhar a tese da IMPOSSIBILIDADE DE CLONAGEM HUMANA , seja sob o ponto de vista jurídico, seja sob o ponto de vista ético, isto porque, a topologia dos direitos fundamentais relacionados a essa técnica de manipulação genética impede a interpretação da norma ordinária em desrespeito aos valores constitucionais por ela concretizados. Desse modo, harmoniza-se de forma efetiva o progresso científico com "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º , inciso III da Constituição Federal) e com "a garantia de um meio ambiente equilibrado que preserva a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País"(art. 225, § 1º).

Ademais, os princípios biéticos de respeito às pessoas, da beneficiência e de justiça são, visceralmente, violados, conforme visto, o que condena eticamente o uso de qualquer modalidade de clonagem com seres humanos.



NOTAS

1. Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar. Nesse sentido, importante ressaltar que no Rio Grande do Sul existe o Núcleo Interinstitucional de Bioética composto por profissionais, alunos e bolsistas vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ou ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) que desenvolvem atividades em Bioética, mantendo inclusive na INTERNET uma preciosa HOME PAGE (http://www.ufrgs.br/HCPA/gppg/bioetica.htm).

2. O Prof. JOAQUIM CLOTET em interessante artigo intitulado "A Bioética : uma ética aplicada em destaque" afirma que : " Partindo do conceito de ética aplicada, como aproximação dos princípios da ética num caso ou problema específico, a Bioética poderia ser definida, brevemente, como a abordagem dos problemas éticos ocasionada pelo avanço extraordinário das ciências biológicas, bioquímicas e médicas. (...)" (Clotet, J. "A bioética: uma ética aplicada em destaque" in A saúde como desafio ético, Anais do I Seminário Internacional de Filosofia e Saúde, Florianópolis 1994, p. 115 a 129).

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3. No "Belmont Report" foi, pela primeira vez, estabelecido o uso sistemático de princípios ( a saber "respeito às pessoas", "beneficência" e "justiça") na abordagem de dilemas bioéticos .

4. Hippocrates. Hippocratic writings, Penguin, London, 1983, p. 94.

5. Melo, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1984, p. 16/17.

6. Importante ressaltar que a CTNBio baixou recentemente uma instrução governamental sobre a manipulação genética e clonagem em seres humanos(Instrução Normativa nº 08/97), que em seu art. 2º veda experimentos de clonagem radical através de qualquer técnica de clonagem.

7. Uma das normas morais mais importantes que surgiram na história da humanidade é chamada Lei de Ouro (golden rule). Esta norma surge em diferentes épocas e culturas, e não apenas na tradição judaico-cristã, como muitas vezes é afirmado. A sua redação algumas vezes tem uma abordagem beneficente, de fazer o bem, outras vezes não-maleficente, de evitar o mal. Todas, contudo, têm o mesmo objetivo: preservar a dignidade da pessoa humana, consoante KÜNG(Küng H. Projeto de Ética Mundial, Paulinas, São Paulo, 1993, p. 88 a 89) , que exemplifica com ensinamentos de :

a) Confúcio (551 AC - 489 AC)
b) "Aquilo que não desejas para ti, também não o faças às outras pessoas."
c) Rabi Hillel (60 AC - 10 DC)
d) "Não faças aos outros o que não queres que te façam."
e) Jesus Cristo ( 0 - 33 DC)
f) "Tudo o que vocês quiserem que as pessoas façam a vocês, façam-no também a elas." (Mateus 7,12 e Lucas 6,31)

8. A palavra clone procede do grego "Klon", equivalente a broto, galho ou ramo. E muitas pessoas , sem alardes científicos, já terão clonados em suas vidas roseiras ao enxertar galhos e produzir outras roseiras. Dessa origem etmológica, surge a sinonímia com multiplicação vegetativa.

9. O preâmbulo do documento que regulamenta a Organização Mundial de Saúde, compreende que a saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, não consistindo em apenas a ausência da doença ou da enfermidade.

10. A Lei nº 8.974/91 (Lei de Biossegurança) define em seu artigo 3º, verbis:

" Art. 3º Para os efeitos desta lei, define-se:

I - organismo - toda entidade biológica capaz de reproduzir e/ou de transferir material genético, incluindo vírus, prions e outras classes que venham a ser conhecidas;

..................................
IV - Organismo Geneticamente Modificado (OGM) - organismo cujo material genético (ADN/ARN) tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética".

11. Células germinais são as que dão origem ao embrião. Ao se multiplicar, essas células dão origem a células especializadas, chamadas somáticas, que vão dar origem às diferentes partes do organismo.

12. Atente-se para o fato que a técnica usada na Escócia para clonar a ovelha Dolly instrumentalizou-se de uma célula somática da glândula mamaria do animal, que se multiplicou graças à substituição do núcleo de um óvulo pelo núcleo da célula mamária proveniente de uma ovelha adulta.

13. HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional ( selección), Madrid, Centro de estudios constitucionales, 1983, p.18 .

14. Idem, p. 48.

15. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5ª ed, Coimbra, Livraria Almedina, 1991, p. 197.

16. CANOTILHO, op. cit. , p. 229.

17. CANOTILHO, op. cit. , p. 234.

18. O art. 4º do Código Civil ( Lei nº 3.071, de 1º de Janeiro de 1916) afirma, verbis :
"A personalidade civil do homem começa dos nascimento com vida, mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro" (grifo nosso)

19. O art. 226 da Constituição de 1988 assinala, verbis:

"A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".

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Sobre o autor
Paulo José Leite Farias

promotor de Justiça em Brasília (DF), diretor da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal, professor da Universidade Católica de Brasília, professor substituto da Universidade de Brasília, mestre em Direito e Estado pela UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS, Paulo José Leite. Limites éticos e jurídicos à experimentação genética em seres humanos.: A impossibilidade da clonagem humana no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 21, 19 nov. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1856. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Palestra proferida no III Curso de Medicina Legal e Deontologia Médica, realizado em Teresina, de 23 a 25 de outubro de 1997 pela Escola Superior de Advocacia do Piauí; pela OAB - secção do Piauí e pelo Conselho Regional de Medicina do Piauí.

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