O Jornal da Globo (G1) noticiou o seguinte:
Dois presos foram submetidos ao ridículo. Os rapazes foram obrigados a se beijar na frente dos policiais, que gravavam tudo com telefones celulares. As imagens circulam na internet há meses, mas só agora chegaram ao conhecimento das autoridades.
"É um caso típico de abuso de autoridade, que viola todos os princípios norteadores das questões dos direitos humanos, de respeito à dignidade da pessoa humana, de civilidade", afirma o presidente da OAB de Pernambuco Henrique Mariano.
Por não concordar com o desrespeito, utilizamos um recurso gráfico para proteger a identidade dos presos. As imagens postadas na internet foram vistas também pelo secretário de Defesa Social Wilson Damázio. Ele comentou as cenas de abuso da polícia.
"Achei bastante constrangedor. Ambiente policial é um ambiente sério. Quem se propõe a trabalhar na segurança pública tem que levar esse trabalho a sério", avisa Damázio.
Há menos de uma semana, outro caso chocou os moradores de Pernambuco. Policiais militares agrediram dois ladrões que tinham acabado de assaltar o prédio onde o mora o vice-governador. Um PM chega a prender, com o pé, a cabeça de um dos homens dentro d´água.
Depois que foram levados para a prisão um dos bandidos passou mal. Levado a um hospital e submetido a exame de imagens se constatou que ele havia engolido joias roubadas. Só com uma endoscopia foi possível recuperar as joias.
"A ação foi truculenta. A Corregedoria está em fase adiantada de apuração e certamente ali poderá acontecer a sanção disciplinar que vai desde a prisão disciplinar em um dos nossos quartéis até a pena de demissão do serviço público, que é a exclusão do policial", declara Damázio.
Fonte: Jornal da Globo - http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2011/02/presos-sao-obrigados-se-beijar-na-frente-de-policiais-em-pernambuco.html
Nossos comentários:
Nas últimas décadas tornou-se possível constatar (com toda evidência no Brasil e na América Latina) dois modelos de prisão: (a) até o final da década de 80 ainda se sonhava com o velho projeto da prisão disciplinar-correcional; (b) a partir da década de 90 (século XX), por força de um populismo penal exacerbado, claramente se vê o incremento da desumana "prisão-jaula" (a prisão é vista como local para animais e os seres humanos aí depositados são tratados como animais, como não-pessoas). [01]
O primeiro modelo de prisão (disciplinar-correcional) tinha por propósito reeducar o preso, torná-lo dócil, útil (Foucault). [02] O segundo (atual sistema) tem precipuamente a finalidade securitária (defesa social).
O primeiro modelo tinha uma finalidade nobre (ressocialização do preso), que lhe proporcionava uma certa legitimação. A prisão é dolorosa, mas se trata de uma dor com finalidade de fazer o bem, fazer o ser humano progredir (evoluir). O segundo modelo (prisão-jaula) não tem nenhum propósito humanístico, não tem nenhuma preocupação com a evolução (individual) do preso. Ela procura se legitimar por si mesma, na medida em que abandonou completamente o velho sonho da correção ou da disciplina e correção.
O velho modelo ressocializador (correção do preso) retribuía o dano gerado pelo crime, mas ao mesmo tempo procurava "melhorar" o preso (ao menos no plano do discurso). A pena tinha finalidade retibutivo-preventiva. Isso tornava os presídios um pouco "humanos". O novo modelo da prisão-jaula é regido pela cultura da desumanidade, pela discriminação (visto que trata as pessoas como não-pessoas, como animais).
O antigo modelo correcional tinha como meta a recuperação do preso. O novo está sob o império de um propósito (culturalmente) retrocessivo que consiste em intencionalmente prender e, mais que isso, causar dor e humilhação ao preso. Crueldade, desumanidade, tortura, humilhação: esses são, dentre outros, os escopos do novo modelo prisional. O preso está ali para ser destroçado, animalizado, humilhado, dizimado, aniquilado (moral e fisicamente). Em uma palavra: ele tem que sofrer e se envergonhar. E se morrer, nada será feito (porque o preso é também "mortável").
No novo modelo (prisão-jaula) já não é suficiente a neutralização do preso (sua incapacitação, sua inocuização), sua eliminação dos espaços públicos. Mais que isso: ele passou a ser objeto de uma tão poderosa quanto diabólica máquina de destruição humana, moral e física. Que o criminoso tenha que ser condenado pelo dano causado não há nenhuma dúvida. Mas o Estado (seus agentes) não tem o direito de transformar o criminoso em vítima, ou seja, não tem o direito de impor nenhum tipo de sanção além do que o ordenamento jurídico permite. O princípio da dignidade humana constitui uma barreira intransponível que não pode ser violada.
É no contexto do novo modelo prisional, o da prisão-jaula, que deve ser compreendido o humilhante, bizarro, desumano e cruel episódio dos beijos acima referido.
Um alerta: se não houver reação urgente do Poder Jurídico (Advogados, Defensores, Ministério Público e Juízes) podemos alcançar níveis estratosféricos e insuportáveis de desumanidade. Quem destrói em seu redor todas as condições vitais civilizatórias, retornando ao estado de natureza de que falava Hobbes, naturalmente será também atingido pela destruição.
Notas
- Cf. SOZZO, Máximo, "Populismo punitivo, proyecto normalizador y "prisión-depósito" em Argentina, em Sistema Penal & Violência, Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-RS, v. 1, n. 1, p. 33-Porto Alegre, 65, julho/dezembro 2009.
- Cf. FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, tradução de Raquel Ramalhetes, 39 ed., Petrópolis: Vozes, 2010, p. 9 e ss.