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Discutindo a terceira velocidade do direito penal

02/03/2011 às 15:51
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I. INTRODUÇÃO

No presente trabalho trataremos de um tema que envolve estudos que buscam diminuir a crescente criminalidade encontrada em nosso mundo, a Terceira Velocidade do Direito Penal. Apesar dos diversos pensadores que enfrentaram estas discussões e criaram, além dessa, outras alternativas para tentar acabar com este problema, ninguém obteve sucesso nesta guerra.

Vale observar que o direito penal mínimo já foi considerado por muitos doutrinadores como um sonho impossível de se realizar, colocando esta teoria como inaplicável no mundo real.

A Terceira Velocidade do Direito Penal tem respaldo na teoria do doutrinador alemão Günter Jakobs, denominada Direito Penal do Inimigo, a qual vem sendo estudada por muitos cientistas do direito pelo mundo, atraindo uma série de defensores e, ao mesmo tempo, muitos críticos.

O fundador desta teoria pretende obter a prática de um Direito Penal que realizaria uma divisão entre os delinqüentes e os criminosos em duas classes: a primeira parte continuaria a ter o status de cidadão e, quando infringisse a lei, teria garantido o direito ao julgamento previsto no ordenamento jurídico estabelecido e possuiria a chance de se readaptar à sociedade; a segunda classe, entretanto, teria seus indivíduos denominados como inimigos do Estado e seriam adversários, recebendo um tratamento frio, diferenciado, rigoroso.

Os então chamados de inimigos perderiam o direito a uma série de garantias constitucionais. Por se considerar estes seres como incapazes de adaptar-se às normas da sociedade, deveriam ser afastados, separados, excluídos, deixando-os sob a tutela do Estado, retirando destes indivíduos o status de cidadão.

Günter Jakobs utilizou as idéias de inúmeros filósofos como Rosseau, Hobbes, Kant para fundamentar suas teorias, como se verificará na exposição do tema. Verificaremos também que aos cidadãos delinqüentes ele procurou garantir proteção e julgamento de acordo com o sistema legal; aos inimigos, coação para neutralizar suas atitudes e seu potencial ofensivo e prejudicial.


II. A TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL

A denominação Direito Penal do Inimigo também é conhecida como direito penal de terceira velocidade, esta última adotada por Silva Sanchez, que significa a punição com base no autor e não no ato praticado. Contudo, cada vez mais, esta classificação tem recebido um maior destaque, devido aos diversos atentados terroristas que presenciamos nestes últimos tempos. Desta maneira, determinados países começaram a adotar uma forma de punição bastante radical, na qual grande parte dos direitos humanos é flexibilizada.

Silva Sánchez, citada no artigo de Dámasio de Jesus [01], faz a seguinte divisão:

a) Direito Penal de primeira velocidade: trata-se do modelo de Direito Penal liberal-clássico, que se utiliza preferencialmente da pena privativa de liberdade, mas se funda em garantias individuais inarredáveis;

b) Direito Penal de segunda velocidade: cuida-se do modelo que incorpora duas tendências (aparentemente antagônicas), a saber, a flexibilização proporcional de determinadas garantias penais e processuais aliada à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc.). No Brasil, começou a ser introduzido com a Reforma Penal de 1984 e se consolidou com a edição da Lei dos Juizados Especiais (Lei n. 9.099, de 1995);

c) Direito Penal de terceira velocidade: refere-se a uma mescla entre as características acima, vale dizer, utiliza-se da pena privativa de liberdade (como o faz o Direito Penal de primeira velocidade), mas permite a flexibilização de garantias materiais e processuais (o que ocorre no âmbito do Direito Penal de segunda velocidade). Essa tendência pode ser vista em algumas recentes leis brasileiras, como a Lei dos Crimes Hediondos, Lei n. 8.072, de 1990, que, por exemplo, aumentou consideravelmente a pena de vários delitos, estabeleceu o cumprimento da pena em regime integralmente fechado e suprimiu, ou tentou suprimir, algumas prerrogativas processuais (exemplo: a liberdade provisória), e a Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034, de 1995), entre outras.

O chamado direito penal do inimigo é proposto por Günter Jakobs [02] com a finalidade de combater as pessoas refratárias, pois para as mesmas o direito penal do cidadão não tem vigência. De acordo com o autor, o inimigo seria aquele criminoso que comete delitos econômicos, terroristas, crimes organizados, bem como delitos sexuais e outras infrações penais perigosas. "Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma". [03]

O direito penal do inimigo é na realidade uma forma de direito que serve para combater determinadas classes, ou seja:

"(...) a reprovação não se estabelece em função da gravidade do crime praticado, mas do caráter do agente, seu estilo de vida, personalidade, antecedentes, conduta social e dos motivos que o levaram à infração penal. Há assim, dentro dessa concepção, uma culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida ou culpabilidade pela decisão de vida". [04]

A fundamentação do direito penal do inimigo pode ser encontrada em livros clássicos que foram escritos por mentes brilhantes. É com base nesses pilares que Günter Jakobs defende o Direito Penal do Inimigo:

(a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o "estado comunitário-legal", deve ser tratado como inimigo (Kant). [05]

O direito penal que parte de uma concepção antropológica que considera o homem incapaz de autodeterminação, só pode ser um direito penal do autor: o ato criminoso é o sintoma de uma personalidade perigosa, que deve ser corrigida do mesmo modo que se conserta uma máquina que funciona mal. Por isso, esta forma do direito penal se fundamenta na punição da personalidade e não do ato.

Há um direito penal de autor, mas também de ato (o mais difundido): que não nega a autonomia moral do homem, mas entende que isto o leva à destruição. Existe no homem uma personalidade inclinada ao delito, que é gerada pela repetição de condutas num momento livremente escolhido, por isso a reprovação é feita ao autor, à sua personalidade, e não em virtude do ato. "O direito penal de autor considera a conduta como um simples sintoma de uma personalidade inimiga ou hostil ao direito. O delinqüente é um ser perigoso". [06]

O ordenamento jurídico brasileiro não ficou afastado das consequências em torno do chamado direito penal do inimigo. Surge em 2003 a Lei 10.792 que alterou a Lei de Execuções Penais e introduziu entre nós o chamado Regime Disciplinar Diferenciado – RDD, que, para muitos, é característica marcante do chamado direito penal de terceira velocidade. A referida lei trouxe a possibilidade de o RDD "abrigar o preso provisório ou condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando". [07] Os doutrinadores que defendem essa idéia, entendem tratar tal situação específica da punição não pelo fato praticado, regra do nosso ordenamento jurídico, mas pela análise do autor como característica marcante do direito penal do inimigo.

Cancio Meliá, assim como outros penalistas, apresentam uma visão crítica sobre o Direito Penal do Inimigo. Para ele, não se justifica a dicotomia Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo. Aquela conteria um pleonasmo e esta uma contradição em seus termos. Cancio Meliá somente reconhece validade no Direito Penal do Inimigo e no Direito Penal de Terceira Velocidade de Silva Sánchez como categorias descritivas, ou seja, na condição de constatação de fenômenos, mas jamais como algo juridicamente admissível.

O autor afirma que o "código" do Direito Penal do Inimigo resulta da incorporação do punitivismo, idéia de que o aumento da pena é a solução para conter a criminalidade, e do Direito Penal simbólico, para o qual a tipificação penal atua como mecanismo para a criação de uma identidade social.

As críticas de Cancio Meliá ao Direito Penal do Inimigo, segundo Damásio de Jesus [08], podem assim ser sintetizadas:

a) O Direito Penal do Inimigo ofende a Constituição, pois esta não admite que alguém seja tratado pelo Direito como mero objeto de coação, despido de sua condição de pessoa (ou de sujeito de direitos);

b) O modelo decorrente do Direito Penal do Inimigo não cumpre sua promessa de eficácia, uma vez que as leis que incorporam suas características não têm reduzido a criminalidade;

c) O fato de haver leis penais que adotam princípios do Direito Penal do Inimigo não significa que ele possa existir conceitualmente, como uma categoria válida dentro de um sistema jurídico;

d) Os chamados "inimigos" não possuem a "especial periculosidade" apregoada pelos defensores do Direito Penal do Inimigo, no sentido de praticarem atos que põem em xeque a existência do Estado. O risco que esses "inimigos" produzem dá-se mais no plano simbólico do que no real;

e) A melhor forma de reagir contra o "inimigo" e confirmar a vigência do ordenamento jurídico é demonstrar que, independentemente da gravidade do ato praticado, jamais se abandonarão os princípios e as regras jurídicas, inclusive em face do autor, que continuará sendo tratado como pessoa (ou "cidadão");

f) O Direito Penal do Inimigo, ao retroceder excessivamente na punição de determinados comportamentos, contraria um dos princípios basilares do Direito Penal: o princípio do direito penal do fato, segundo o qual não podem ser incriminados simples pensamentos (ou a "atitude interna" do autor).


III. CONCLUSÕES RELATIVAS À TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL

O surgimento desta teoria demonstra a crise em que se encontra a nossa sociedade, o Direito Penal do Inimigo é apenas um reflexo da atualidade. Hodiernamente, nos deparamos com crimes que exigem uma atuação mais radical do Estado, por exemplo, os crimes ambientais, qual a necessidade do Estado atuar depois que metade da floresta foi desmatada? O fato de prender o indivíduo responsável não fará com que mil árvores de mais de um século de existência renasçam.

Deste modo, percebemos que em alguns casos, a legitimidade para a implantação dessa teoria vai muito mais além do que a busca de fundamentação legal ou constitucional, ofensas aos princípios ou aos direitos humanos, temos que nos colocar como seres humanos no meio de uma crise de normas e de caos mundial. A decisão aqui será uma decisão muito mais política do que jurídica.

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O surgimento dos bens jurídicos de terceira geração, os inúmeros crimes transnacionais, a evolução tecnológica e muito mais, fez com que a clássica técnica legislativa se tornasse insuficiente, obrigando-nos a correr atrás de novas soluções e, muitas vezes, nos forçando a flexibilizar determinadas garantias para que a sociedade esteja protegida.

Inevitavelmente, esta teoria terá problemas ao responder perguntas como: quem é o inimigo? Quem os elegerá? Em que situações? Possivelmente o Direito Penal não é a cura para todas as doenças, mas temos que começar de alguma forma.


IV. BIBLIOGRAFIA

BATISTA, Nilo. Introdução Critica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 3ª Ed. Madrid: Editorial Trotta, 1993

HASSEMER, Winfried. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alfen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005.

HULSMAN, Louk, e BERNART DE CELIS, Jacqueline. Penas Perdidas. O sistema penal em questão, 2ª Ed.. Niterói: Luam, 1997.

JAKOBS, Günter e CANCIO MELIÁ, Manuel, Derecho penal del enemigo, Madrid: Civitas, 2003.

JESUS, Damásio E. de. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10836>. Acesso em: 02 fev. 2010.

MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do Inimigo - a Terceira Velocidade do Direito Penal, 1ºed.Editora Juruá, 2008.

OLIVEIRA, Salete Magda. Um desafio à dissuasão penal, in Conversações Abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCRIM, 1997.

SANCHEZ, Jesus-Maria Silva. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da política criminal nas sociedades pós industriais. São Paulo: Revistas dos Tribunais, Série As Ciências Criminais no Século XXI, v. 11. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha, 2002.

SILVA, Evandro Lins. Uma visão global da história da pena. Anais do 1º Encontro Nacional da Execução Penal. Brasília: FAP/DF, 1998.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte geral / Eugenio Raul Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 4 ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.


Notas

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando."(NR)

  1. JESUS, Damásio E. de. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10836>. Acesso em: 02 fev. 2010.
  2. JAKOBS, Günter e CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo, Madrid: Civitas, 2003.
  3. GOMES, Luís Flávio. http://www.juspodivm.com.br/i/a/{5CAC2295-54A6-4F6D-9BCA-0A818EF72C6D}_8.pdf.
  4. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
  5. GOMES, Luís Flávio. http://www.juspodivm.com.br/i/a/{5CAC2295-54A6-4F6D-9BCA-0A818EF72C6D}_8.pdf.
  6. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte geral / Eugenio Raul Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 4 ed. rev. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2002.
  7. "Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:
  8. JESUS, Damásio E. de. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10836>. Acesso em: 02 fev. 2010.
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Sobre o autor
Eric de Assis Santos

Mestrando em Direito Penal na PUC/SP. Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi monitor durante três anos nas áreas de Direito Processual Penal e Sociologia Geral e Jurídica na PUC/SP. Foi membro da Comissão de Fiscalização e Defesa da Advocacia - OAB/SP por dois anos consecutivos. Atualmente faz parte do quadro de Escrivães da Polícia Federal, após ser aprovado nos Concursos de Especialista em Regulação Aérea - ANAC e Oficial de Promotoria do Ministério Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Eric Assis. Discutindo a terceira velocidade do direito penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2800, 2 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18603. Acesso em: 24 abr. 2024.

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