3 A NECESSÁRIA ATUAÇÃO INTERDISCIPLINAR DE PROFISSIONAIS
As demandas em que se discutem direitos infanto-juvenis levam inevitavelmente à necessidade de análise do contexto familiar no qual o menor está inserido. Nem sempre o genitor que pleiteia a destituição do poder familiar em face do outro está protegendo a vida ou a integridade psíquica da criança ou do adolescente; suas motivações podem estar camufladas, e o profissional da área jurídica não está preparado para desvendá-las. A interdisciplinaridade vem em socorro para propiciar uma decisão mais justa, que realmente venha a suprir as necessidades das partes envolvidas.
Deste modo, a identificação de um processo de alienação iniciado ou já concluído só poderá ser realizada com segurança a partir da perícia realizada por psicólogos e assistentes sociais. De fato, a Lei nº Lei 12.318/10 reforça a importância da multidisciplinaridade, enfocando os métodos possibilitados ao perito para a adequada investigação do contexto familiar:
Art. 5 Havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial.
§ 1 O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor.
De maneira breve e elucidativa, a perícia psicológica pode assim ser definida:
Assim, pode-se afirmar que a perícia psicológica [...] consiste em um exame que se caracteriza pela investigação e análise de fatos e pessoas, enfocando-se os aspectos subjetivos das relações entre as pessoas, estabelecendo-se uma correlação de causa e efeito das circunstâncias e buscando-se a motivação consciente (e inconsciente) para a dinâmica familiar do casal e dos filhos. Através dessa investigação o perito psicólogo poderá apurar, com muito mais precisão, a responsabilidade de cada um dos membros da família pelo estado das relações e sugerir ao juiz a melhor solução para garantir o equilíbrio emocional de todos, resguardando-se os direitos fundamentais das crianças e adolescentes envolvidos no litígio (SILVA, D. M. P. da, 2009, p. 4).
O estudo realizado pelo assistente social, por sua vez, é realizado in loco, consistindo na coleta de dados acerca do cotidiano do menor e de seus pais, tanto para constatar o suprimento ou não das necessidades infanto-juvenis, como para averiguar a dinâmica da relação entre os genitores. Através de visitas domiciliares e entrevistas, por exemplo, o assistente social busca, após a coleta, interpretar estes dados confrontando-os com o referencial teórico que faz parte de sua formação (PIZZOL, 2003).
A perícia pode ser determinada de ofício pelo juiz ou a pedido do autor ou do réu, seguindo-se, na sua produção, as normas do CPC que se encontram do art. 420 ao art. 439. As conclusões do perito, contudo, podem ser desprezadas pelo magistrado, em função do princípio do livre convencimento motivado do juiz. Embora não esteja vinculado obrigatoriamente ao laudo, percebe-se o quanto será árdua a tarefa do julgador em diagnosticar a presença da alienação parental, mesmo conhecendo-se no que ela consiste e quais as atitudes mais recorrentes do genitor alienador. Como a criança ou o adolescente também expressarão repúdio à figura do outro genitor, o profissional que não domina conhecimentos específicos para detectar nas entrelinhas de um depoimento algum vestígio de informação implantada anuirá com as pretensões deduzidas pelo alienador. A sutileza com que o processo de alienação por vezes é desencadeado, a firmeza com que memórias falsas são implantadas no filho, fazem do genitor alienador a pessoa que aparentemente mais se preocupa com o bem estar da prole.
4 UM EXEMPLO DE DECISÃO JUDICIAL ENFRENTANDO A PROBLEMÁTICA DAS FALSAS DENÚNCIAS
Antes do advento da Lei nº 12.318/10 algumas decisões judiciais foram prolatadas, nas quais os julgadores consideraram a possibilidade de estarem diante de um quadro de alienação parental. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul desponta como pioneiro na iniciativa de questionar, em muitos recursos manejados, a atuação de genitores que disputavam a guarda de menores ou nas quais se discutia a efetivação do direito de visitas. O maior destaque, contudo, dá-se mediante a análise do ponderado julgamento que o tribunal confere às alegações de abuso sexual, demonstrando que seus desembargadores encontravam-se atentos à doutrina nacional que à época já alertava acerca do fenômeno da alienação parental, bem como à tendência das cortes estrangeiras em se adotar medidas concretas para identificar e sanar este nociva prática.
A decisão a ser comentada refere-se ao agravo de instrumento nº 70014814479, julgado em 2006 pela Sétima Câmara Cível, tendo como relatora a Desembargadora Maria Berenice Dias. A agravante é Gislaine S.A., mãe da menor Luísa W., e a agravada é Thereza M.W., avó paterna da criança. A íntegra do acórdão oferece um panorama bastante elucidativo de como a alienação parental pode estar presente nos litígios judiciais.
Quando constava com dois anos de idade, a mãe de Luísa acusou seu genitor de abusar sexualmente da filha, o que levou, inicialmente, à abertura de um processo cível visando a destituição do poder familiar, e um criminal objetivando a punição pela prática delituosa imputada ao pai da menina. Este recorreu ao Tribunal para garantir o direito de visitação da filha até o julgamento final da lide, no que logrou êxito, através da interposição de um agravo de instrumento. A mãe, contudo, embora ciente da determinação da corte no sentido de cooperar, realizou justamente a ação inversa, deixando de levar a criança à casa do pai ou de avisar a este para providenciar algum transporte. Somado a isto, os relatórios da assistente social Valdeci G. Campos, que assistia a criança nas visitas, mostraram a instalação da síndrome na infante. Vide trecho referente ao Relatório 22/2005, realizado em 09/09/2005, reproduzido na íntegra do acórdão:
A menina brinca, corre, abraça e beija o pai, quando lembra pede que eu "não comente com a fada" pois sua mãe diz que ela "só é amada pela mãe e só pode amar a mãe. A menina disse: "eu amo meu pai mas digo para minha mãe que não gosto, para ela não me bater" (...)
A seguir, trecho do relatório 28/2005, elaborado em 3-12-2005 reforça a observação de que o comportamento de Luísa muda completamente com a ausência da figura materna:
Luiza chorava muito e não queria ir comigo, queria que a mãe fosse junto. Como não parava de chorar, falei com a Srª Gislaine para que ficasse com a menina, pois estávamos atrasando a saído do ônibus. (...) O episódio do embarque me pareceu ter sido provocado pela mãe de Luiza, que continua fazendo uma espécie de "terrorismo psicológico" pois, além de dizer para filha que "faltava pouco para que esta situação se resolva e ela não vai precisar ir mais", a mãe levou a Luiza para a rodoviária acompanhada de babá com as duas filhas pequenas, a Luiza chorava e dizia que ‘a mãe e as meninas vão tomar sorvetes e brincar com meus brinquedos’. Cinco minutos depois que saiu o ônibus ela já não chorava mais. Falou-me que ela "queria ir para casa da avó, mas se a mãe descobre ela me bate", ou seja, na frente da mãe (possivelmente por medo) a Luiza chora e diz que não quer ir, longe da mãe ela se solta e fica feliz em viajar, mas aí também fica com medo porque a Assistente Social vai contar, "nos papéis ou no relatório", que ela está feliz. Ela disse ainda: "tenho que fazer isso (chorar), dizendo que não quero vir porque se não a minha mãe me bate e me xinga, diz que eles vão me levar embora e eu não vou mais ver ela. Ela não gosta da gente do pai, por isso tenho que chorar para não vir".
As atitudes da mãe de Luísa se adequam ao comportamento próprio de um genitor que promove a alienação parental, tendo em vista, primeiramente, a desmoralização da figura paterna, bem como dos familiares deste último, e a ameaça explícita de abandonar a filha caso esta não comungue dos sentimentos negativos que a mãe nutre em relação ao pai da menor. Maria Pisano Motta (2008) também ressalta que é típico do alienador o descumprimento de ordens judiciais que beneficiem, de alguma forma, o genitor alienado. A instalação da síndrome é cabalmente demonstrada, em virtude da brusca mudança de temperamento observada em Luísa quando não está na presença da genitora, e o medo de que esta saiba do carinho que a menor ainda reserva ao pai e aos avós paternos. O conflito de lealdade não podia ser melhor externalizado. Aqui se observa a importância do trabalho de equipe multidisciplinar, apta à análise do cotidiano da criança e conseqüentemente a captar detalhes que passariam despercebidos ou seriam camuflados perante o magistrado.
A avó paterna da criança conseguiu sua guarda, em caráter provisório, tendo em vista o reconhecimento, pelo juízo de primeira instância, da falta de colaboração da mãe para a efetivação das visitas. O direito à convivência familiar é implicitamente reconhecido como fundamental, através da leitura de trecho do posicionamento do Ministério Público neste caso:
Como bem colocado pela Promotora de Justiça da Comarca de Santa Vitória do Palmar, Drª Daniela Silveira Timm, os laudos juntados, por assistente social e psicóloga, denotam uma abuso psicológico da menina por parte de sua mãe. Há, então, de forma concreta, um abuso da filha pela requerida (fl. 100-101). É patente que este abuso está colocando em risco a saúde emocional da infante.
De fato, as consequências oriundas da instalação da síndrome são tão graves que a alienação parental só pode ser compreendida, no mínimo, como uma forma de abuso. Atualmente esta conclusão está inserida no texto da lei 12.318/10, alertando todos os que militam em prol dos direitos infanto-juvenis a tratar com seriedade a situação na qual se suspeita de que esteja ocorrendo o processo alienatório, ou já esteja instalada sua síndrome:
Art. 3º A prática de ato de alienação parental fere direito fundamental da criança ou do adolescente de convivência familiar saudável, prejudica a realização de afeto nas relações com genitor e com o grupo familiar, constitui abuso moral contra a criança ou o adolescente e descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental ou decorrentes de tutela ou guarda.
A avó paterna de Luísa continuou com a guarda da neta, por determinação do TJRS ao julgar o agravo interposto pela mãe, considerando que, enquanto está pendente o julgamento da ação de destituição do poder familiar, em nome da proteção da vida e da saúde da criança, deve continuar apenas visitando seu pai, mas, contudo, sem estar sob a guarda da mãe, pelas atitudes nocivas à integridade psíquica da menor que aquela vinha tomando. Como a infante se mostrava, ao longo das visitas, apegada aos avós, estes possuíam as melhores condições para propiciar a Luísa uma convivência familiar sadia e integrada. Segue abaixo a íntegra da ementa:
GUARDA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA. SÍNDROME DA ALIENAÇÃO PARENTAL. Havendo na postura da genitora indícios da presença da síndrome da alienação parental, o que pode comprometer a integridade psicológica da filha, atende melhor ao interesse da infante, mantê-la sob a guarda provisória da avó paterna. Negado provimento ao agravo (Apelação cível nº 70014814479, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator(a): Maria Berenice Dias, Julgado em: 07/06/2006).
Esta decisão auxilia indubitavelmente na visualização de importantes aspectos psicológicos e fáticos que envolvem a alienação parental (ou sua síndrome), quando ela está em curso ao longo de litígios judiciais.
CONCLUSÃO
O respeito ao direito infanto-juvenil de convivência familiar deve-se, sobretudo, em razão das seqüelas de cunho inquestionavelmente grave que podem impedir o saudável desenvolvimento de crianças e jovens, decorrentes, por sua vez, do indevido afastamento de um dos genitores. Como este é justamente o objetivo do genitor alienante, devem-se alertar os profissionais do direito para que não sejam utilizados como instrumento de tão egoístico intento. Pode-se afirmar com certeza que, se existe algum abusador, ele está representado na figura do alienador, por submete próprio filho, a acreditar que foi vítima de um ato tão grotesco como é o abuso sexual e depois submetê-lo ao transtorno de um processo judicial que gira em torno de uma inverdade. Enquanto isto, o menor será privado indevidamente do laço familiar que possuía com o genitor alienado, havendo o perigo de que este vínculo seja cada vez mais desgastado.
O estudo de doutrinas que esclarecem pontos da Lei nº 12.318/10 é imprescindível, bem como a análise de julgados que enfrentam diretamente a problemática das falsas acusações, para que o jurista se acerque dos conhecimentos minimamente básicos para, diante de um caso concreto, ao menos suspeitar da ocorrência de alienação parental. Se tempestivamente uma equipe multidisciplinar puder oferecer seu auxílio, não apenas o diagnóstico da situação será mais seguro, como mais rapidamente poderão ser estabelecidos os vínculos entre o genitor alienado e seu filho supostamente abusado. Conclui-se, portanto, que diante da possibilidade de uma notícia inverídica a ser averiguada, se faz imprescindível socorrer-se dos conhecimentos da psicologia e do serviço social.
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