1. INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por finalidade analisar a questão da atividade de siderurgia e de carvoejamento em face ao disposto no artigo 21, parágrafo único do Código Florestal que busca o desenvolvimento sustentável desta atividade mediante o alcance gradual da auto-sustentabilidade dos grandes consumidores de carvão vegetal.
O enfrentamento da questão é de extrema relevância e urgência dado à situação alarmante de desmatamento do cerrado na região centro-oeste – com enfoque principalmente para Mato Grosso do Sul – com finalidade de abastecimento de siderúrgicas, principalmente as instaladas no Estado de Minas Gerais.
Segundo levantamentos feitos pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul, estão inscritas no Estado mais de cinco mil carvoarias as quais trabalham, em sua esmagadora maioria, queimando madeira oriunda da vegetação nativa de cerrado, acelerando o processo de desmatamento.
De outro norte, grande parte deste carvão segue para as siderúrgicas do Estado de Minas Gerais, pois segundo o Promotor de Justiça Mineiro, Alex Fernandes Santiago (artigo inédito, p. 04), as unidades independentes de produção de ferro-gusa no Estado de Minas Gerais, que totalizam 75 empresas, com 118 (cento e dezoito) fornos a carvão vegetal, produzem, anualmente, 4 (quatro) milhões de toneladas de ferro-gusa, e segundo o Instituto Estadual de Florestas daquele Estado, são consumidos por ano 30 (trinta) milhões de metros cúbicos de carvão, sendo 40 % de origem nativa e 60% plantado. O consumo do setor siderúrgico corresponde a 25 milhões de metros cúbicos.
Levantamento do ano de 1998 dá conta de que Minas Gerais consome algo em torno de 63% do carvão vegetal produzido no Brasil - avaliações mais recentes falam em 80%, sendo que nos últimos 20 anos, 50% do seu cerrado foi transformado em carvão (RODRIGUES, p. 01).
O mesmo processo de supressão da vegetação nativa para produção de carvão visando o abastecimento de siderúrgicas está ocorrendo, agora, em outros pontos do país, com a proliferação de carvoarias, as quais muitas vezes operando de forma clandestina e ilegal.
Usando-se critérios técnicos (Instrução Normativa n. 06/06 do Ministério do Meio Ambiente), pode-se afirmar que para cada hectare de cerrado desmatado é produzido 40 metros cúbicos de lenha, os quais produzem 23,33 metros de carvão (mdc). No caso do cerradão, este volume chega a 29,17 mdc por hectare.
Dados do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais constatam que entre os anos de 1997 e 2006, somente de Mato Grosso do Sul foram consumidos naquele Estado a quantia de 8.736.180 mdc (oito milhões, setecentos e trinta e seis mil, cento e oitenta metros de carvão), oriundos de mata nativa.
Portanto, pode-se afirmar que só para abastecer as siderúrgicas do Estado de Minas Gerais, foram desmatados entre 299.491 (duzentos e noventa e nove mil, quatrocentos e noventa e um) e 377.461 (trezentos e setenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e um) hectares de cerradão ou cerrado nativo, respectivamente, no Estado de Mato Grosso do Sul no período mencionado.
Ou seja, todos os dias, inclusive sábados, domingos e feriados, foram desmatados 114,90 hectares de mata nativa de Mato Grosso do Sul, somente para abastecimento dos fornos de carvão de Minas Gerais: é uma pequena fazenda por dia.
Por outro lado, também utilizando-se critérios técnicos da reposição florestal calculada pelo IBAMA, citados por Teresa Cristina de Deus (2003, p. 117), para cada metro cúbico de carvão consumidos, são calculadas 10 árvores. Assim, em processo inverso, para a quantia de carvão remetido, foram consumidas 87.361.807 (oitenta e sete milhões, trezentos e sessenta e um mil e oitocentas e sete) árvores do Estado de Mato Grosso do Sul.
Toda esta situação evidencia o completo desrespeito ao princípio do desenvolvimento sustentável, o qual, na hipótese em questão, deveria ser implementado principalmente com a aplicação do artigo 21 e seu parágrafo único do Código Florestal, que não vem sendo observado.
2. PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL [01]
A existência de um falso conflito entre o desenvolvimento da sociedade e a conservação do meio ambiente levou estudiosos de inúmeras áreas a questionar sobre a possibilidade ou não de compatibilização entre estes dois valores essenciais à preservação da raça humana.
Após muita discussão e embates chegou-se à concepção de que uma faceta não poderia prevalecer sobre a outra, sendo necessário encontrar o ponto de equilíbrio entre as duas, surgindo assim a noção de desenvolvimento sustentável.
Em verdade, a adoção de caminho em direção a apenas um destes valores, seja a preservação do meio ambiente com estagnação do desenvolvimento, seja o desenvolvimento sem a preservação do meio ambiental com certeza levará à decadência da sociedade em que vivemos.
Na primeira hipótese – preservação do meio ambiente com estagnação do desenvolvimento – seriam penalizados todos os que utilizam destes recursos ambientais para viver, logrando-os à condição da mais pura miséria.
Na segunda hipótese – desenvolvimento sem a preservação ambiental – seria o próprio suicídio da raça humana, pois, como se sabe os recursos naturais não são inesgotáveis, sendo cada vez mais patente a necessidade de preservá-los e usá-los com racionalidade para que não haja devastação total do planeta.
Por isto, é "falso, de fato, o dilema ‘ou desenvolvimento ou meio ambiente’, na medida em que, sendo um fonte de recursos para o outro, devem harmonizar-se e complementar-se" (MILARÉ, 2001, p. 42).
Verificando todos estes aspectos o Constituinte, no art. 170, IV e VI, ao tratar sobre a ordem econômica colocou em pé de igualdade a "livre concorrência" e a "defesa do meio ambiente", deixando de forma evidente o princípio do desenvolvimento sustentável – que por tal motivo tem assento constitucional – já que este configura-se justamente por ser o ponto de equilíbrio entre estes dois valores.
Desta forma, a livre iniciativa passou a ser pautada – dentre outros valores – também pela preservação ambiental, tendo seu âmbito de atuação restringido, por força da indisponibilidade do meio ambiente como macrobem. Esta concepção foi bem abordada por Celso Antônio Pacheco Fiorillo (2003, p. 26):
"Assim, a livre iniciativa, que rege as atividades econômicas, começou a ter outro significado. A liberdade de agir e dispor tratada pelo Texto Constitucional (a livre iniciativa) passou a ser compreendida de forma mais restrita, o que significa dizer que não existe a liberdade, a livre iniciativa, voltada à disposição de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Este deve ser o objetivo. Busca-se, na verdade, a coexistência de ambos sem que a ordem econômica inviabilize um meio ambiente ecologicamente equilibrado e sem que este obste o desenvolvimento econômico."
Portanto, a atividade econômica no sistema jurídico brasileiro não é exercida de forma ilimitada e irrestrita, ao contrário, encontra balizas constitucionais, dentre elas, de cunho ambiental, as quais limitam sua atuação de forma a compatibilizá-la com o interesse público e a sobrevivência das espécies neste planeta.
Especificamente sobre a atividade de siderurgia, uma destas balizas verificáveis de forma evidente como decorrência do princípio do desenvolvimento sustentável é a necessidade desta atividade – dando-se o prazo razoável para tal – conquistar sua auto-sustentabilidade em matéria prima florestal, com aplicação do artigo 21, parágrafo único do Código Florestal, evitando-se com isto uma situação eterna de transformação de nossas preciosas florestas em carvão para a queima no processo de fabricação de metais.
3. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Para a correta aplicação e interpretação do dispositivo legal que se pretende analisar, é imperioso que se faça uma análise sobre o princípio da legalidade aplicado à Administração Pública.
A Administração Pública em nosso ordenamento jurídico é regida por uma série de princípios que visam estabelecer controle dos agentes públicos, objetivando evitar abusos e mau uso de recursos e bens do povo. Dentre estes princípios, vige o princípio da legalidade, o qual está previsto no artigo 37 da Constituição Federal com o seguinte teor:
"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:..."
Como se sabe, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei (art. 5º, II, da CF). Contudo, este é o princípio da legalidade geral, previsto a todas as pessoas físicas ou jurídicas particulares. No que diz respeito à Administração Pública, a situação é diversa, pois o Poder Público, ao contrário dos demais, só poderá fazer aquilo que a lei expressamente determina ou autoriza.
Tal orientação decorre não só do princípio da estrita legalidade previsto no artigo 37 da Constituição Federal, mas do próprio regime de Estado Democrático de Direito, em que há governo de leis e não de homens. Por isto, como o administrador público governa em nome do povo e sendo este representado pelo Poder Legislativo, somente poderá ele fazer aquilo que a lei expressamente determina ou autoriza.
É esta a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, citando outros grandes autores (2001, p. 72 e 76):
contra legem ou praeter legem, a Administração só pode agir secundum legem. Aliás, no mesmo sentido é a observação de Alessi, ao averbar que a função administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. Afonso Rodrigues Queiróz afirma que a Administração ‘é a longa manus do legislador" e que "a atividade administrativa é atividade de subsunção dos fatos da vida real às categorias legais’."Michel Stassinopoulos, em fórmula sintética e feliz, esclarece que, além de não poder atuar
...
"Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos
meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições."Também é este o entendimento do constitucionalista Alexandre de Moraes (2002, p. 781):
executor do direito, que atua sem finalidade própria, mas em respeito à finalidade imposta pela lei, e com a necessidade de preservar-se a ordem jurídica.""O tradicional princípio da legalidade, previsto no art. 5º, II, da Constituição Federal e anteriormente estudado, aplica-se normalmente na administração pública, porém de forma mais rigorosa e especial, pois o administrador público somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva, pois na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza, diferentemente da esfera particular, em que será permitida a realização de tudo o que a lei não proíba. Esse princípio coaduna-se com a própria função administrativa, de
Desta forma, um dos requisitos fundamentais para validade do ato administrativo é o da legalidade, sendo que, havendo a lei determinado uma margem de atuação para o agente administrativo é corolário básico que ele não deve fugir deste balizamento legal.
4. ATO DISCRICIONÁRIO: LIMITE DE ATUAÇÃO
Também para o enfrentamento da questão é premissa básica o entendimento da distinção entre ato administrativo vinculado e ato administrativo discricionário, e, em relação a este último, seus limites de atuação.
Ao conceituar ato administrativo vinculado e discricionário o saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles assim acentuou (1987, p. 126 e 127):
Atos vinculados ou regrados são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase que por completo, a liberdade do administrador, uma vez que sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal, para a validade da atividade administrativa.""
"
Atos discricionários são os que a Administração pode praticar com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização. A rigor, a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas sim no poder de a Administração praticá-lo pela maneira e nas condições que repute mais convenientes ao interesse público."Contudo, apesar da discricionariedade que o agente administrativo tem em preencher as questões de conveniência e oportunidade, isto não pode ser confundido com arbitrariedade, uma vez que deve ele agir sempre visando melhor atender à finalidade da lei.
É por isto que na conceituação do que seja discricionariedade os fins buscados pela norma jurídica devem ser bem delineados, conforme o faz Celso Antônio Bandeira de Mello (1996, p. 48):
(grifo nosso)"Discricionariedade, portanto, é a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes da razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente."
Ademais, como diz este mesmo mestre (MELLO, 2001, p. 383), não há ato propriamente discricionário, mas apenas discricionariedade por ocasião da prática de certos atos, pois a finalidade dele sempre e obrigatoriamente deve ser um interesse público.
Assim, o agente administrativo mesmo quando se tratar de ato discricionário, tem parâmetros mínimos de atuação que deve respeitar sob pena de ilegalidade.
5. DO PRAZO MÁXIMO PARA AS SIDERÚRGICAS OBTEREM SUSTENTABILIDADE EM MATÉRIA PRIMA FLORESTAL
Construído o alicerce do raciocínio jurídico desenvolvido neste trabalho, chega-se o momento de enfrentar-se a questão posta sob análise neste trabalho: Qual deve ser a interpretação do artigo 21, parágrafo único do Código Florestal a respeito dos prazos para as empresas siderúrgicas à base de carvão vegetal, lenha ou outra matéria-prima florestal obterem a sustentabilidade?
O dispositivo em questão tem a seguinte redação:
"Art. 21. As empresas siderúrgicas, de transporte e outras, à base de carvão vegetal, lenha ou outra matéria-prima florestal, são obrigadas a manter florestas próprias para exploração racional ou a formar, diretamente ou por intermédio de empreendimentos dos quais participem, florestas destinadas ao seu suprimento.
Parágrafo único. A autoridade competente fixará para cada empresa o prazo que lhe é facultado para atender ao disposto neste artigo, dentro do limite de 5 (cinco) a 10 (dez) anos. "
A finalidade da norma em questão é clara: objetiva-se que estas empresas busquem a sustentabilidade para que não necessitem de forma eterna extirparem as florestas nativas brasileiras para a produção do seu produto que, diga-se de passagem, é essencial não só para a economia do país, mas também para a vida moderna.
Conforme já adiantado anteriormente, este dispositivo reflete de forma clara o princípio constitucional do desenvolvimento sustentável, extraído do artigo 170 da Constituição Federal: a atividade poderá ser desenvolvida mediante livre iniciativa mas deverá obedecer balizas legais, dentre elas, a da proteção ao meio ambiente equilibrado.
A pedra de toque do dispositivo em questão – na qual repousa toda a sua efetividade social – é o prazo que deve – ou deveria – ser dado a cada uma das empresas individualmente para que busquem a independência da sua atividade do desmatamento de novas áreas florestais.
A norma em questão era regulamentada pelo Decreto 97.628/89, revogado pelo Decreto n. 5.975/06, que em seu artigo 12 determina que aquelas empresas que consumirem mais de cinqüenta mil metros cúbicos de carvão vegetal por ano, devem apresentar o Plano de Suprimento Sustentável, dentro do qual será produzido o ato administrativo decidindo em qual prazo – no limite entre cinco e dez anos – deverá ser atendida a sustentabilidade.
Contudo, o ponto principal que se pretende abordar é o seguinte: já existindo a empresa siderúrgica por mais de dez anos e, não havendo a mesma obtido a sustentabilidade prevista no caput do artigo, por qualquer motivo, qual será a conseqüência?
Parece evidente que, mesmo tratando-se o prazo em que será concedido à empresa de uma discricionariedade, ela não poderá afastar-se dos ditames legais, quais sejam: prazo mínimo de cinco anos e máximo de dez anos.
Assim, não poderá o agente determinar que a empresa obtenha sua sustentabilidade em prazo inferior a cinco anos, assim também não o poderá fazê-lo em prazo superior a dez anos, sob pena de nulidade do ato por flagrante ilegalidade.
Ao traçar os limites ao ato discricionário, Celso Antônio Bandeira de Mello (2001, p. 385), ensina que a discricionariedade é a liberdade dentro da lei e nos limites da norma legal. Portanto, sendo de extrema clareza que o limite legal é entre cinco e dez anos, o ato administrativo a ser produzido está adstrito a este lapso temporal.
E não se argumente que este prazo é a partir da produção do ato administrativo. É evidente que a finalidade da norma é a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, sendo certo que a contagem é a partir do início da constituição da empresa, caso contrário permitir-se-ia que por uma omissão administrativa fosse possível alterar aquilo que a norma jurídica buscou tutelar e pior, alterar de forma que o ato administrativo a princípio eivado de nulidade em razão da ilegalidade, fosse considerado legal.
Sobre esta questão, Vicente Gomes da Silva (2002, p. 104) sustenta com maestria que "Alegar que a autoridade competente, conforme dito no referido parágrafo, foi inerte ou omissa no que tange à fixação de cinco a dez anos para cada empresa cumprir tal obrigação, é no mínimo, alegação oportunista e ardilosa daqueles que passaram anos a fio consumindo matéria-prima florestal de origem nativa sem se preocuparem com o esgotamento desta fonte de suprimento."
De outro norte, havendo desvio do ato administrativo concedendo prazo inferior aos cinco anos previstos ou superior aos dez anos estabelecidos, é possível o seu controle judicial, conforme ensina José dos Santos Carvalho Filho (2006, p. 41):
"No que se refere aos atos discricionários, todavia, é mister distinguir dois aspectos. Podem eles sofrer controle judicial em relação a todos os elementos vinculados, ou seja, aqueles sobre os quais não tem o agente liberdade quanto à decisão a tomar."
Portanto, no que diz respeito ao máximo e mínimo estabelecido em lei, é o ato em questão vinculado, e portanto, passível de ser controlado judicialmente.
De igual maneira, a omissão administrativa pode ser controlada judicialmente, de tal forma que, percebendo-se que o órgão ambiental ainda está expedindo autorização de transporte florestal em favor de siderúrgicas que tenham mais de dez anos de existência, é perfeitamente possível que o Judiciário lhe impute uma obrigação de não fazer, com finalidade de preservar a aplicação do estatuído no artigo 21 do Código Florestal .
Analisando o caso em questão, a jurisprudência do Tribunal Regional da 1ª Região – a contrario sensu – já decidiu por inúmeras vezes que não poderia o Decreto 97.628/89, estabelecer prazo inferior a cinco anos para que a empresa alcançasse sua sustentabilidade florestal. Confira-se a seguinte ementa:
"ADMINISTRATIVO. PLANO INTEGRADO FLORESTA-INDÚSTRIA (PIFI). EMPRESA CONSTITUÍDA EM 1989. LEI N. 4.771/65, ART. 21. PRAZO LEGAL MÍNIMO DE CINCO ANOS PARA A FORMAÇÃO DE FLORESTAS PRÓPRIAS. INVALIDADE. DESRESPEITO À LEGISLAÇÃO HIERARQUICAMENTE SUPERIOR.
I – De acordo com o art. 21 da Lei n. 4.771/65, às empresas siderúrgicas que funcionam à base de carvão vegetal é assegurado o prazo mínimo de cinco anos e máximo de dez, para que implantem florestas próprias para o respectivo abastecimento.
II – Criada a empresa impetrante em 1989, dela não poderia ser exigida, de logo, a propriedade de florestas naquelas condições, ainda que para abastecimento parcial, porquanto tal importa em infringência ao citado dispositivo legal, ao qual, obviamente, não pode ser contraposto o Decreto n. 97.628/89, por se tratar de regra hierarquicamente inferior."
Ao analisar o voto do eminente relator, observa-se que a fundamentação foi justamente a que aqui se defende: o ato é discricionário, dentro do prazo entre cinco e dez anos. Confira-se:
(grifo nosso)"Verifica-se, do texto acima, que cabe ao Poder Público, dentro do critério discricionário a ele inerente, determinar, examinando a situação individual de cada indústria, qual o período dentro do qual ela deve formar a sua fonte própria vegetal de matéria-prima. A mesma norma traça o tempo mínimo de cinco anos e máximo de dez, dentro do qual é livre a administração para decidir."
É claro que o órgão administrador pode exigir no plano florestal obrigações a serem assumidas desde o primeiro ano (como plantio de florestas), mas não pode é pretender que antes dos cinco primeiros anos seja iniciada ou até mesmo finalizada a sustentabilidade.
O mesmo raciocínio que foi utilizado no acórdão – que formou jurisprudência consolidada naquele Tribunal – é aqui utilizado: da mesma forma que não pode o ato administrativo sair da baliza legal mínima de cinco anos, também não pode ele sair da baliza legal máxima: dez anos.
Desta forma, qualquer siderúrgica que possua mais de dez anos de existência não pode obter – sob pena de nulidade e ilegalidade – ato administrativo que lhe autorize ao consumo de matéria-prima vegetal fora das hipóteses do caput do artigo 21.
Ademais, se houver omissão administrativa ou conivência do órgão ambiental em continuar emitindo documentação para que aquela siderúrgica com mais de dez anos continue adquirindo carvão vegetal nativo, deve ser compelido judicialmente a parar de fazê-lo.
Note-se que a própria lei estadual pode atribuir prazo menor do que o máximo de dez anos para que haja a auto-suficiência florestal, sendo certo que o Superior Tribunal de Justiça ao enfrentar a questão prevista na Lei Estadual n. 10.561/91 do Estado de Minas Gerais, que estabeleceu como prazo máximo sete anos, entendeu ser legítima tal limitação. Confira-se, para tanto, o seguinte trecho do acórdão:
"A recorrente, para cumprir a imposição de auto-suprimento, tinha a obrigação, no ato de seu registro (art. 18), de apresentar cronograma próprio, estabelecendo o prazo entre cinco e sete anos para alcançar auto-suprimento pleno e utilização de matéria-prima proveniente de florestas de produção em quantidades crescentes, com percentual de 30% de seu consumo e utilização de matéria-prima de origem nativa em quantidade decrescente com percentual máximo de 70%de seu consumo em 1992 (art. 19, § 1º, itens I e II, da Lei Estadual). Ora, esta determinação não contraria o citado dispositivo do Código Florestal. A questão foi bem examinada e decidida pelo v. acórdão da apelação (fls. 735/740), do qual destaco o seguinte trecho:
‘No que respeita a existência de conflito entra a legislação estadual e a federal, em face do texto constitucional, a alegação também carece de fundamento.
A Lei Estadual n. 10.561/91, que dispõe sobre política florestal, encerra preceitos especiais em atenção à realidade do Estado, sem entrar no tratamento genérico da norma federal, antes com ela se compatibilizando dentro da concorrência legislativa assegurada pelo art. 24, VI, e § 2º, da Constituição Federal.
Como já registrado alhures, no âmbito desta especificidade, a lei estadual encerra preceitos reguladores da atividade atualmente também exercida pela demandante no ramo da siderurgia, de cujo cumprimento e observância não pode ela eximir-se ao fito de exercê-la livremente, uma vez que a norma federal não desce àquela ordem de preocupações, inerentes à realidade ambiental de cada unidade federativa."" (RESP n. 246.531-MG, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 11/06/2001)
Fica evidente, assim, que respeitado o prazo entre cinco e dez anos, pode a legislação estadual ou municipal reduzir o máximo estabelecido. Contudo, o contrário não é verdadeiro, tratando-se a norma federal de regra geral, admitir-se que a lei estadual ou municipal ampliasse para mais de dez anos este prazo seria invalidar o disposto na norma geral, ocorrendo inconstitucionalidade por invasão de competência prevista o art. 24, § 1º, da Constituição Federal.
Assim, passados dez anos da constituição da empresa, ela deve possuir 100% de auto-sustentabilidade, sendo que quaisquer norma Estaduais/Municipais ou infra-legais (decretos, portarias, resoluções, atos administrativos, etc...) que disponham ao contrário, são flagrantemente inconstitucionais/ilegais.
6. CONCLUSÃO
De tudo o que foi exposto, pode-se concluir que o artigo 21, parágrafo único do Código Florestal reflete em concreto a aplicação do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável e atribui prazo máximo de dez anos para que as atividades siderúrgicas possuam auto-sustentabilidade florestal.
Passados dez anos da constituição da empresa, ela deve possuir 100% de auto-sustentabilidade, sendo que quaisquer normas Estaduais/Municipais ou infra-legais (decretos, portarias, resoluções, atos administrativos, etc...) que disponham ao contrário, são flagrantemente inconstitucionais/ilegais.
Verificado que a Administração Pública – por ação ou omissão – continua permitindo que siderúrgicas com mais de dez anos de atividade ainda estejam consumindo carvão vegetal nativo fora das hipóteses previstas no caput do artigo 21 do Código Florestal (não oriundo de florestas próprias de exploração racional ou florestas destinadas para seu suprimento), impõe-se ao Poder Judiciário, em ação civil pública com tutela inibitória e obrigação de não fazer, a determinação de cessação desta situação contrária à legalidade e lesiva ao patrimônio ambiental nacional.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
- Tópico adaptado do artigo de autoria deste autor: Delineamento do Dano Ambiental: O Mito do dano por ato lícito.