5. RESOLUÇÃO DAS COLISÕES ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PELO JUÍZO DE PONDERAÇÃO
A Constituição é um texto normativo que contém normas que possuem densidade e abertura variadas pela natureza dos conteúdos que veiculam. A necessária abertura da Constituição resulta do regime plural e das múltiplas aspirações sociais, simbolizando interesses os mais díspares, antagônicos e até contraditórios. Além de refletirem essas expectativas, as normas devem permanecer abertas a fim de que possam adequar-se aos acontecimentos e às novas exigências sociais.
Além disso, os princípios contêm, geralmente, maior carga valorativa, com fundamento ético, uma decisão política importante, indicando determinado direcionamento a ser seguido. Numa sociedade plural e democrática, a constituição contém outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, às vezes contraditórios. Desse modo, adotando o sistema pauta de valores diversa e até contraditória, resulta inevitável a colisão entre princípios constitucionais.
Para que as normas constitucionais, sobretudo aquelas que consagram direitos fundamentais, veiculadas sob a forma de princípios, possam cumprir suas variadas funções, elas são formuladas de maneira indeterminada, vaga, com alto grau de abstratividade e de generalidade, que somente adquirem força imediata para a resolução de problemas jurídicos depois de submetidas ao processo de densificação, concretização e realização. Necessário, destarte, fazer uso da argumentação jurídica para resolver as questões constitucionais.
A argumentação jurídica racional interessa a todos os operados jurídicos e também ao cidadão porque somente assim o Direito obtém cientificidade e as decisões adquirem legitimidade. A dificuldade de fundamentar apenas na norma constitucional a solução do caso deve-se à vaguidade da linguagem jurídica, à possibilidade de conflito entre normas, a possibilidade de uma decidir contra o teor literal de uma norma e a possibilidade de ausência de norma para regular uma situação.
Os critérios tradicionais de hierarquia, cronológico e especialização de resolução de conflitos normativos freqüentemente são insuficientes para resolver as antinomias entre princípios constitucionais. Nessas situações, é necessário recorrer à ponderação de valores ou ponderação de interesses, que é uma técnica de decisão própria para decidir, especialmente nos casos difíceis (hard cases), onde o raciocínio subsuntivo é inadequado. Na interpretação que envolva princípios constitucionais, não é possível simplesmente escolher uma norma em detrimento das demais, haja vista que as normas constitucionais possuem a mesma hierarquia e devem ser interpretadas de forma harmônica.
Desse modo, a ponderação deve ser adotada quando se identificar confronto de razões, de interesses, de valores ou de bens albergados por princípios constitucionais. Deve-se aqui entender como ponderação "la acción de considerar imparcialmente los aspectos contrapuestos de uma cuestión o el equilíbrio entre el peso de dos cosas". 22 O objetivo basilar da ponderação é solucionar conflitos normativos de forma menos traumática para o sistema constitucional, de sorte que as normas em colisão continuem a conviver, sem que isso importe em negação de qualquer delas.
Nesse sentido, na ponderação constitucional, busca-se estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. À falta de um critério abstrato que impunha a supremacia de um princípio sobre o outro, deve-se, a partir do caso concreto, fazer concessões recíprocas. Evita-se sacrificar inteiramente um bem ou interesse, na medida em que o intérprete escolher arbitrariamente um dos interesses em jogo e anular o outro. "La ponderación conduce a uma exigência de proporcionalidad que implica establecer um orden de preferência relativo al caso concreto". 23
Nesse juízo de ponderação, deve-se observar alguns balizamentos. Para tanto, na perspectiva pós-positivisma, que importou no reconhecimento do constitucionalismo de princípois, há necessidade de o processo de interpretação constitucional recorrer a cânones, esquemas de argumentos, formas de argumentação, sendo desenvolvido um catálogo de princípios instrumentais e específicos de hermenêutica constitucional. Há no processo interpretativo a definição racional dos cânomes a partir dos quais será feita racionalmente a interpretação, sem obediência a uma hierarquia de cânomes, que serão definidos por princípios de ponderação. 24
Impõe-se então examinar brevemente os princípios de interpretação da Constituição, que constituem importantes critérios para o exercício do juízo de ponderação. A esse respeito, Canotilho 25 enumera os seguintes princípios de interpretação: a) da unidade da Constituição: requer a contemplação da Constituição como um todo, a compreensão do texto constitucional como um sistema único, compatibilizando-se os efeitos discrepantes; b) do efeito integrador: na resolução dos problemas o intérprete da Constituição deve dar primazia aos critérios que favoreçam a unidade política, fazendo-se a integração social e política; c) da máxima efetividade: significa que o intérprete deve retirar da norma o valor que lhe confira máxima eficácia; d) da conformidade funcional: os órgãos encarregados da interpretação da norma constitucional não poderão assumir postura que subverta, altere ou perturbe o esquema de organização funcional estabelecido pelo legislador; e) da concordância prática: consiste em manter a ordem dos bens jurídicos, de forma a evitar o sacrifício de uns em face de outros; e f) da força normativa da Constituição: recomenda se prefira, dentre as interpretações possíveis, a que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.
Portanto, na solução de colisão de princípios constitucionais, necessário fazer a ponderação de bens, objetivando-se sacrificar o mínimo possível os direitos em jogo. Essa ponderação faz-se pela utilização dos canônes da unidade da Constituição, da concordância prática e da máxima de proporcionalidade. Cumpre reconhecer que nesse processo a Constituição deve ser compreendida como unidade, o que implica reconhecer que suas normas não existem isoladas uma das outras, exigindo-se que sejam vistas como integrantes de um sistema, com conexão entre todos os elementos e em situação de interdependência.
Ademais, a interpretação da Constituição deve ser feita evitando-se as contradições entre as normas. O procedimento para resolução dos conflitos não obedece a uma hierarquia normativa pré-estabelecida de valores constitucionais. Todos os valores ocupam o mesmo patamar, não sendo possível pura e simplesmente sacrificar um deles em favor do outro. Portanto, a solução de um problema constitucional deve guardar coerência com o princípio da unidade, de maneira a harmonizar a divergência entre as normas da Constituição. Considerando que todos os bens constitucionais possuem o mesmo valor, impõe-se a proteção de todos eles a fim de sejam coordenados para que conservem sua identidade. A colisão entre bens deve ser resolvida diante do caso concreto, valendo-se do princípio da proporcionalidade, através de seus três subprincípios, a saber, adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
6. CONCLUSÃO
Dessas considerações impende reconhecer que no constitucionalismo de princípios, estes são reconhecidos como espécie do gênero norma de Direito, ao lado das regras constitucionais, sendo comandos preceptivos que ordenam, proíbem e permitem. Integram a Constituição, possuem supremacia em relação às demais normas, servindo de fundamento de validade do sistema jurídico.
Em decorrência de sua natureza normativa, os princípios constitucionais têm forma imediata, com eficácia e aplicabilidade direta, prestando-se a funções interpretativas, supletórias e normativas próprias, daí sua utilização para resolver problemas jurídicos, inclusive como parâmetro de controle difuso e concentrado de constitucionalidade das leis de outros atos normativos ou de qualquer ato em relação ao qual seja discutida sua conformidade com a Constituição.
Pela estrutura aberta, indeterminada e vaga dos princípios constitucionais, no plano abstrato convivem em harmoniza, entretanto nos casos concretos pode haver colisão entre dois ou mais princípios. Na solução dessas colisões, não se sacrifica inteiramente um princípio em favor da prevalência de outro, sendo indispensável a sua compatilização em face dos princípios da unidade da Constituição e da concordância prática, valendo-se para tanto do juízo de ponderação, observados os cânones de interpretação constitucional, tudo operacionalizado através da máxima de proporcionalidade.
Concluindo, pode-se proclamar, com Luis Prieto Sanchís, que "el juicio de ponderación puede verse como una pieza esencial del neoconstitucionalismo, de un modelo de organización política que quiere representar un perfeccionamiento del Estado de Derecho, dado que si es un potulado de este último el sometimiento de todo el poder al Derecho". 26
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert; Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitutionales, 1993.
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.
DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1999.
ESPÍNDOLA, Ruy Samoel. Conceito de Princípios Constitucionais. São Paulo:RT, 1999.
FIGUEROA, Alfonso García. Princpios y Positivismo Jurídico. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constituiconales, 1998;
FLÓREZ-VALDEZ, Joaquim Arce y. Los Princípios Generales del Derecho y su Formulación Constitucional". Madrid: Civitas, 1990.
GRAUS, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Madrid: Tecnos, 2005.
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios Constituiconais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
ROTHEMBURG, Claudius; Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Fabris, 1999.
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003.
SANCHÍS, Luis Prieto. Constituiconalismo y Positivismo. México, DF: Distribuciones Fontamara, 1999.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Notas
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 191.
-
Alguns estudos destacam-se acerca da teoria dos princípios: ALEXY, Robert; Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitutionales, 1993; DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1999; GRAUS, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Crítica sistemática à teoria dos princípios é formulada por STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 475 e ss.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997.
FLÓREZ-VALDEZ, Joaquim Arce y. Los Princípios Generales del Derecho y su Formulación Constitucional. Madrid: Civitas, 1990, p. 55.
In FLÓREZ-VALDEZ, ob. cit., pp. 53 e 56.
ALEXY, Robert; Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitutionales, 1993.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, 9ª ed, p. 232.
Ob. cit., p. 235.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, 9ª ed, p. 232.
Sobre o tema da relação entre princípios e positivismo jurídico, cf: FIGUEROA, Alfonso García. Princpios y Positivismo Jurídico. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constituiconales, 1998; e SANCHÍS, Luis Prieto. Constituiconalismo y Positivismo. México, DF: Distribuciones Fontamara, 1999.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, 9ª ed, p. 253.
CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1037.
ALEXY, Roberto. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 83.
Dworkin, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Editorial Ariel, 1999, p. 72/77.
Ob. cit., p. 78.
ALEXY, Roberto. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 88/91.
Sobre a distinção entre regras e princípios, cf. sistematização formulado por CANOTILHO. J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1035/1036.
SANCHÍS, Luis Prieto. Constituiconalismo y Positivismo. México, DF: Distribuciones Fontamara, 1999, p. 20.
ROCHA, Cármem Lúcia Antunes. Princípios Constituiconais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 25.
Ob. cit, p. 29/43.
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 122.
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 189.
Ob. Cit., p. 191.
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, pp. 175/203.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1096/1099.
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 216.