Nós, estudantes de direito, estamos nos afundando irremediavelmente nos obscuros poços da mediocridade, hipocrisia e do pedantismo. Todas estas vis manifestações do egocentrismo, que têm seu nascedouro desde antes do vestibular, crescem no decorrer do curso e atingem o seu ápice numa ostentosa festa de formatura, sem que ninguém ouse discuti-las abertamente. Sem que haja, ainda, qualquer movimento no sentido de resgatar o sonho dos jusfilósofos e dos sociólogos, de um mundo em que os operadores do Direito sejam pessoas preocupadas com o ideal de uma Justiça pura e justa (desculpem-me o pleonasmo).
Nossa saga, ou pelo menos da quase totalidade dos estudantes de direito, tem sua gênese nas salas dos "cursinhos" de pré-vestibular, onde nos destacamos em três grupos básicos:
No primeiro, estão incluídos alguns gananciosos seres que perdem um bom tempo de sua ordinária adolescência, imaginando o quanto o curso de direito lhes será útil para alcançarem ou manterem o nirvana que uma boa quantidade de dinheiro pode proporcionar. Como exemplo do primeiro grupo, podem ser vislumbrados, entre outros, alguns (não todos) filhos de famílias de tradicionais direiteiros e cujo nome é idêntico ao do pai, exceto pela aposição no final de um "Júnior", "Filho" ou "Neto". Ressalte-se que no caso de utilização do "Neto", temos uma idiotia que remonta a tempos idos. Ainda neste grupo, existem uns rapazes e moças de classe média baixa que resolvem estudar direito para mudarem a situação periclitante de suas finanças ou por pura jactância, esperam poder exibir num futuro próximo seus carros importados e roupas sisudas.
Num hipotético segundo grupo, existem uns poucos sujeitos muito inteligentes, que estão a três ou quatro anos peregrinando por cursinhos, salas de específicas, médiuns, pastores da universal, terrenos de umbanda, quimbanda e tudo o mais que termine com "banda", sempre atrás de alguma ajuda para vencerem a barreira do "vestiba". Geralmente já decoraram a maioria dos livros e apostilas e somente não passaram ainda, devido à uma inexplicável onda de má-sorte. O detalhe mais importante que diferencia esse grupo é o fato de que seus integrantes, na verdade, estão tentando vestibular para Medicina, Odontologia ou Relações Internacionais na UNB, USP, UFG etc. Entretanto, depois de furarem as cadeiras de estudo e, até mesmo, adquirirem varizes nas veias anorretais, eles se cansam e optam por fazer direito na Católica, Anhangüera ou na Universo (recentemente fomos agraciados também com a UNIP), figuram entre os primeiros colocados, tornam-se os melhores alunos, viram juizes ou promotores e vão dormir tranqüilos, mas eternamente frustrados.
Continuando esta absurda classificação, encontramos num terceiro grupo a maioria dos estudantes de direito, quais sejam, aqueles que não decidiram ainda um rumo a seguir na vida, que sempre tiveram vontade de estudar música, história ou filosofia, mas que nem mesmo tinham certeza disto e entraram no mundo do direito porque ouviram dizer que os cursos acima não estão com nada e que, fazendo direito, iriam acabar encontrando alguma graça no decorrer do curso (sem falar no mar de possibilidades dos concursos públicos). Este grupo também abraça aqueles que estão cansados de ficar o dia inteiro recebendo ordens de um patrão mal-humorado e fazem direito visando sair do marasmo de suas vidas.
Antes de prosseguirmos, perfaz-se necessário esclarecer que essa classificação inicial, bem como as que se seguirão, não têm nenhum fundamento científico e não esgotam-se em si, podendo serem encontrados algumas subespécies ou espécimes inclassificáveis, os famosos "peças-raras". Podendo, inclusive serem questionadas por qualquer sujeito que, desocupado como eu, ache um "tempinho" para ser perdido.
Na fase seguinte, é de bom alvitre comparar o festival do vestibular com a fecundação de um óvulo. Os espermatozóides são as centenas de garotos e garotas que digladiam-se, espremem-se e correm aleatoriamente para encontrarem o seu alento no interior do óvulo que materializa-se na tão almejada vaga da faculdade. Que, quando alcançada, gera uma pungente alegria que irradia por toda a nossa Cidade, que praticamente decreta feriado, para que todos possam assistir o passeio dos "sortudos" amarrados em carros e sujos de ovos, terra, tinta multicolorida, batom entre outros.
Uma vez dentro deste invólucro protetor, começa a formação dos novos "operadores do dinheiro", desculpem-me, do "Direito". E os professores e livros dão o alimento para crescermos e onde alguns fetos mais animados, chegam a buscar outras fontes de saber em escritórios "exploracacia". E é sobre algumas características desses curiosos espécimes que vamos nos deter nos parágrafos que se seguem.
Superado o estágio anterior, entramos deslumbrados num palco italiano que abre-se na parte anterior, não havendo nenhuma outra saída e um obscuro poscênio. Na parte lateral deste palco a orquestra toca uma música monótona a qual devemos dançar sem parar e sem direito a pedidos da platéia. Se alguém grita para que a música cesse ou seja mudada, é educadamente convidado a retirar-se do recinto. O poscênio é tão diminuto e escondido e tão abafado pelo som da orquestra e pelas cortinas de ferro que o cobrem, é como se não estivesse ali. Este bastidor é constituído pelos Centros Acadêmicos, os Diretórios, os Movimentos Estudantis e alguns elementos isolados que vivem alheios a tudo, mas conscientes. Estes são o alvo de críticas tanto da platéia, quanto dos diretores e atores da peça. Os espectadores censuram a sua inércia irritante, recusam-se a pagar a taxa que vem inclusa na mensalidade e detestam os seus integrantes. Eu mesmo já me peguei algumas vezes excomungando alguns deles. De qualquer forma, o melhor de tudo é que todos nós proferimos sentenças condenatórias sem ao menos saber o que acontece nestas salas ocultas. Ou seja, atiramos as pedras sem atentarmos a qual pecado foi cometido, ou se foi. As pessoas chamam isso de pré-julgamento, eu chamo de uma condicionante proporcionada pela inebriante música oficial que faz com que odiemos os sons desarmônicos ou os gritos aflitos daqueles que operam atrás do palco.
Já na universidade, nosso aprendizado alienante ensina-nos a trabalhar nossa dialética, eloqüência, a capacidade de sofismar e todas as demais características descritas no início do texto, tudo em prol de um objetivo egoísta e competitivo. É incrível, mas nós que deveríamos ser a voz que grita em favor da injustiça, não passamos de meros homúnculos lutando entre si por um pedaço cada vez maior do bolo de dinheiro que circula nas classes altas e empresas. Ou seja, ao invés de nos unir pelo bem da justiça, o que beneficiaria a todos, preferimos brigar cada qual por seu pedaço, individualmente. Graças a Deus existem algumas exceções a esta regra.
Para aqueles que não conhecem o curso de direito e seus personagens, escolhi como primeiro exemplo um tipo muito comum para iniciar os indivíduos desavisados. Trata-se do pseudo-doutor "X". O pseudo-doutor "X" é um sujeito muito esperto, ele sabe alguns artigos da Constituição e do CPC de cor, discute calorosamente com os professores e colegas sempre baseado em doutrinas de fundamento duvidoso e, positivista como ele é, tira sempre boas notas (mesmo que às custas de cola). É geralmente benquisto pelos colegas que o vêem como um modelo a ser seguido. Normalmente o pseudo-doutor "X" já trabalha em algum escritório de advocacia e anda sempre janota. Neste ponto ele é um primor, sapatos sempre engraxados, camisa bem passada, gravata elegante e terno preto ou azul escuro. Detalhe, a cor escura visa dar um ar de imponência e impingir respeito nos seus interlocutores. Na maioria das vezes estes apetrechos são herdados do pai, que já é advogado ou afeito ao uso de fantasias sociais. Ele justifica-se acerca do seu excesso de zelo afirmando que são os "ossos do ofício", ou "vejam só como advogado sofre, sempre de terno e gravata", ou ainda "é preciso vestir-se assim para se obter respeito dos escreventes, juizes e outros". Dessa forma, ele tenta dar um ar de sacrifício ao que na verdade não passa de narcisismo elevado ao quadrado.
Este pseudo-doutor "X" é dotado de grande poder de retórica, que exterioriza com silogismos críticos. Às vezes tem um carro que foi dado pelo papai e passa quase todo o curso (senão todo ele) sustentado por este. Com um ano de formado já planeja comprar um "Vectra" ou um "Audi A4". Geralmente, este tipo está na mesma linha, já mencionada dos "Juniores", "Filhos" ou "Netos", mas alguns deles têm nome próprio, fato este que não os dá nenhuma personalidade própria. Alguns elementos deste tipo fazem-me lembrar um texto que eu li sobre aqueles pesquisadores que descobrem alguma nova doença e a batizam com seu nome (tipo Mal de Alzheimer, de Parkinson etc.). Da mesma forma, esta prática passa uma idéia de criação. Basta lembrar que o Dr. Frankstein deu seu nome para o monstro que criou. Seguindo esta linha de raciocínio, quando damos nosso nome a um filho, estaríamos criando nossos monstros ou batizando nossas doenças.
Um outro tipo de estudante de direito é aquele que acha que já sabe tudo. Ainda não é ninguém, mas sente-se como um deus de sua área de abrangência. Mal cumprimenta os colegas, ou simplesmente finge não os conhecer. Puxa o saco de todos os Professores e espera que eles o adotem como pupilos. Este tipo geralmente vai se tornar um promotor de justiça ou um delegado. Escolhem estas profissões para poderem seguir pela vida fazendo o que bem entender com as suas vítimas, ou os seres inferiores que cruzarem seu caminho. Têm características típicas de sádicos e são capazes de ignorar a própria imagem no espelho, pois chega um momento que se esquecem quem já foram um dia. A maioria deles sofre de halitose.
Temos também aquela pessoa que termina o curso em quatro anos, ou seja, atropela a ordem natural de um curso muito importante, paga terceiros para fazerem os trabalhos que são tantos, mas lhe é impossível fazer sozinha, pois está com sobrecarga de matérias. Quando entra na faculdade, prende a respiração e somente a solta após as glórias da formatura.
Acho que vou perder algumas linhas para comentar sobre este festival, o tão esperado ritual onde uma quantidade enorme de dinheiro é despendida para que todos se divirtam, menos o formando e seus pais. O formando não se diverte devido à maratona de fotos, preparativos, reuniões que participa para, no dia do baile, ficar tentando agradar a todos, não agradando ninguém e pagando toda a conta para dormir bêbedo. Sua família não se diverte pois estouram o orçamento familiar, têm que agüentar os desaforos do (a) filho (a) que está uma pilha de nervos e que fica dando patada em todos, são os que de fato pagam a conta e desesperam-se quando descobrem que o (a) formando (a) ainda não está apto (a) ao mercado de trabalho, ou seja, vai ter que fazer mais uns dois ou três anos de cursos jurídicos caríssimos.
Alguns desses tipos podem ser facilmente encontrados, depois de formados, nas bibliotecas do Fórum, da Justiça do Trabalho ou da OAB, são boas pessoas, muito bem humoradas e, embora desempregadas, não abrem mão de uma boa farra. Com o dinheiro da mesada, é claro.
Alguém perguntaria: - Qual o pior mal cometido por todas essas pessoas e as demais aqui não citadas? Infelizmente, o maior infortúnio cometido por nós é o fato de não gastarmos nosso tempo e juventude na construção de um mundo melhor. Não conseguirmos ver nada além do próprio umbigo e não ouvirmos senão o ronco de nossos estômagos. É o mal de vivermos cercados de dilemas comezinhos, de, na primeira oportunidade, humilharmos qualquer pessoa que não saiba o que são autos do processo. De fazermos isto somente para mostrar ao mundo que aprendemos um novo idioma: O "juridiquês". - Será possível que vocês nunca entenderão o verdadeiro significado de ser um profissional do direito? Como provar-lhes a existência de um mundo onde a fome e a desesperança são reais? Penso seriamente se teremos o discernimento necessário para sabermos quando estaremos defendendo uma "justiça" criada somente para atender os interesses da elite, ou os verdadeiros e supremos interesses da humanidade, baseados na ética e na moral. Aqui entenda-se como sendo "justiça" o conjunto de leis que impedem que o cidadão comum acesse o mundo jurídico e possa viver livre da opressão da classe dominante. A minha esperança é de que um dia tenhamos o bom senso de descobrir que o império da Lei não contém em si, enquanto palavra morta, a essência da Justiça e que esta somente se concretizará com os nossos atos, movidos apenas por altruísmo, moralidade, ética e bom senso. Se houver este dia, talvez entendamos que a verdadeira norma fundamental, citada por Kelsen, tem sua morada no âmago do nosso ser. Ou melhor, dentro das mais elevadas virtudes da alma humana, elencadas como mandamentos descritos, tanto na Bíblia, quanto em todos os ensinamentos religiosos e filosóficos. Platão, defendia a dualidade existente entre o bem e o mal, aquele representado pela alma, este pela matéria. Plutino, filósofo dos tempos da famosa Biblioteca de Alexandria, defendia que somente existe o bem e que o mal é apenas o afastamento da luz de Deus, donde o bem é irradiado. Assim, façamos nossa opção filosófica, para depois ou pularmos para o lado do bem, nos dedicando ao espírito, ou direcionar nossa caminhada para a luz da bonomia divina. Por fim, sabemos que você que está lendo este simples desabafo, se for aluno do curso de direito, já foi, ou pretende ser, não se enquadra em nenhum dos tipos listados. Isto porque apenas foi discorrido acerca de um mundo imaginário e não de pessoas reais. Todo o discurso foi baseado em um pesadelo que tive e, principalmente, na Universidade que estudamos, não existem estas mazelas.
NOTAS
(1) Verbete: trupe: 1. Grupo de artistas ou comediantes.