Não tem razão aquele político baiano que afirmou, a respeito de Ruy Barbosa, que se ele fosse vivo, estaria indignado com o Judiciário. Ruy estaria, isto sim, verberando o Congresso Nacional, a começar pela questão dos subsídios, que há alguns anos é decidida dentro da própria legislatura e não apenas para vigorar na subseqüente, conforme a vetusta norma moralizadora. Justamente agora, que a imprensa noticiou que os deputados pretendem apresentar proposta de emenda constitucional, para aumentar seu próprio subsídio.
Ruy estaria sem dúvida criticando o número excessivo de membros do Congresso Nacional, como no artigo publicado no jornal A Imprensa, em 14.06.1899: "... e sobretudo reformem a Constituição, para reduzir o número aos membros do Congresso. A Câmara não necessita de mais da metade dos deputados, que hoje contamos, e ao Senado não há motivo, para que se lhe não diminua um terço. Que razão existirá, para termos três senadores por Estado, quando os Estados Unidos se contentam com dois?"
Ruy denunciaria com veemência a manipulação das verbas orçamentárias como condição para a aprovação dos projetos que o governo alega serem de interesse público, como há cem anos, no mesmo artigo: "Quando a representação destes no Congresso não pudesse tolerar os notórios excessos, com que a corrupção do campanário tem apodrecido a política republicana, e ousassem reagir, a bem da nação, contra os Governadores apoiados na subserviência dos Congressos Estaduais, para logo aos recalcitrantes se cortariam os víveres, e a indigência obrigaria os mais honestos a se reconciliarem com a caixa do batalhão"...
Ruy não poderia também aceitar a prática da convocação extraordinária do Congresso, regiamente remunerada, para aprovar determinados assuntos de interesse do Governo, como é o caso, agora, da emenda constitucional que institui a contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas, em que o Presidente FHC está condicionando a convocação extraordinária à aprovação da matéria, em primeiro turno, na Câmara dos Deputados. Dizia Ruy, em seu artigo O Subsídio nas Prorrogações, publicado no jornal A Imprensa, em 28.06.1899: "um Congresso de mendicantes, janízaros do Chefe do Estado e de agentes de negócios dos Governadores. Em suma, a decomposição parlamentar na sua extrema fase".
Com certeza, Ruy estaria defendendo a Constituição, hoje atingida em seus mais sagrados princípios, no coração mesmo do sistema, naqueles princípios fundamentais e imutáveis que, pela sua importância, não poderiam ser alterados, nem mesmo através de emendas constitucionais. São as cláusulas pétreas, consagradas no art. 60 da CF, que por sua importância, foram declaradas absolutamente imutáveis pelo Poder Constituinte. O art. 60 expressamente proíbe qualquer reforma constitucional tendente a abolir esses princípios: federação, voto direto, secreto, universal e periódico, separação dos poderes e direitos e garantias individuais, estes enumerados no art. 5º da CF, em seus 77 incisos.
Dizia Ruy: ..agora ir empalmando a Carta da República aos pedaços, com as ligeirezas do prestimano, ao sabor das nossas conveniências, das nossas paixões, das nossas idéias, ou dos nossos caprichos, isso é outro falar..., porque rotas elas (as leis), uma vez sob a invocação de um interesse popular, o que se estabelece é o arbítrio do poder, em que o povo não ganha nunca. ...No fundo dessa inconstitucionalíssima e perniciosíssima reforma transluz odiosamente, sob um sofisma tortuoso, esse espírito de cavilação, em que se apascenta o gênio dos nossos estadistas e legisladores. (O Subsídio Parlamentar, a Imprensa, 14.06.1899)
Certamente, teria Ruy criticado, com todo o ardor, o projeto de emenda constitucional que permitiu a reeleição dos Chefes do Executivo (federal, estadual e municipal) e muito mais ainda, o fato de que o próprio Presidente da República, que patrocinou essa reforma, tenha podido ser por ela beneficiado. Finalmente, temos certeza de que Ruy estaria esconjurando, com toda a candência do seu verbo, pela tribuna ou pela imprensa, o atentado à letra e ao espírito da Constituição, cometido justamente pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que teria a responsabilidade de evitar essa teratologia jurídica, mas que aprovou o projeto de emenda constitucional apresentado pelo Presidente, que desabridamente vulnera um daqueles princípios fundamentais e imutáveis que constituem o coração de nosso sistema constitucional, o do respeito à irretroatividade e aos direitos adquiridos.