No limiar do novo milênio, parece evidente que o nosso Welfare State, cujas fincas foram cravadas na Constituição Federal de 1988, embora decorridos pouco mais de dez anos, apenas, de sua promulgação, encontra-se desfigurado, irreconhecível.
Esse Estado, de vocação humanística, tendo por escopo a desigualização das desigualdades sociais, através de prestações positivas, cede lugar ao estado mínimo, feitio adequado ao neoliberalismo.
Nesse contexto, a realização do homem é vista como conseqüência do regular funcionamento do mercado, o que representa um retrocesso no concernente à materialização do princípio constitucional da isonomia. Como adverte Celso Ribeiro Bastos, esse princípio pode, cada vez mais, ser exemplificado com a assertiva de que "ricos e pobres têm igual direito de morar debaixo dos viadutos". Desse modo, a inserção social dos menos favorecidos, ou alijados mesmo, torna-se cada vez menos provável.
Minimalista, o Estado deixa de preocupar-se com o homem para voltar sua atenção para a economia de mercado, em obséquio aos "sopros de modernidade" propiciados pela globalização, nome pelo qual atende o "capitalismo selvagem" de antanho.
Vivemos a era da "aldeia global", Internet e guerras high-tech, na qual os Estados são compelidos a aderirem a essas modernas tendências, sob pena de serem isolados, excluídos do competitivo mercado internacional, sofrerem retaliações de seus parceiros comerciais primeiro mundistas, além de sanções da Organização Mundial do Comércio.
É tempo de privatizações. Quase tudo que é estatal passa a ser visto como arcaico, pois a tese prevalente é a de que o setor privado se acha mais capitalizado e é mais ágil, estando, portanto, mais bem preparado para enfrentar os extenuantes desafios do milênio que se descortina.
Contudo, na prática a teoria é outra. A despeito de alguns setores, agora controlados pela iniciativa privada, virem apresentando índices notáveis de crescimento, como o de siderurgia, outros há em que as empresas controladoras vêm demonstrando um total despreparo para o desempenho dos encargos assumidos. E o mais grave é que são, não raras vezes, setores estratégicos da economia nacional. O exemplo mais exuberante talvez seja o da telefonia. Observe-se, à guisa de exemplo, que a Telefônica, a gigante espanhola, vem descumprindo metas e obrigações, enlouquecendo o consumidor. Mas, em matéria de inoperância, não podemos olvidar o setor de geração de energia, onde nem mesmo o horário de verão conseguiu evitar os "apagões" proporcionados pela Light. Isto sem se falar no fantástico blecaute, iniciado, quiçá, em Bauru, que deixou boa parte do País às escuras, sem que tenha sido trazida à lume explicação convincente o bastante para o fenômeno.
Despiciendo dizer que as agências criadas - ANEEL, ANATEL e ANP - ainda não disseram a que vieram, seja porque demoram para exercer seu papel fiscalizatório, seja porque as medidas sancionadoras até então adotadas, ao que se saiba, não produziram os resultados almejados.
E não são apenas esses novos setores da máquina estatal que vêm decepcionando, pois a estrutura convencional padece com os constantes cortes no orçamento, realizados com o objetivo nunca atingido - de controlar o déficit público. Exacerba-se a preocupação com o presente, deixando-se de pensar de forma estratégica o futuro. A situação de penúria das universidades federais é prova insofismável da presente assertiva. Não há dinheiro suficiente para o custeio básico, ficando dificultada a atividade de pesquisa, o que nos torna, cada vez mais, reféns da transferência de tecnologias ultrapassadas.
De qualquer sorte, é inegável que vivemos uma época de profundas transformações sociais. Assistimos, por exemplo, ao declínio do movimento sindical, que vem perdendo a força reivindicatória. Se outrora perseguiam-se conquistas para os trabalhadores, com greves gerais de grande impacto e resultado, como aconteceu no "ABC" no final da década de 70, hoje a tônica é a negociação travada nas mesas de reunião. Fruto do estabelecimento dessa nova correlação de forças entre capital e trabalho, tem-se que o cerne das discussões passou a ser a preservação de empregos, ainda que para tanto sejam costurados acordos onde os trabalhadores são levados a abrir mão de padrões remuneratórios conquistados a duras penas.
E para implantar esse estado mínimo, o governo segue avançando sobre os ganhos dos trabalhadores. O funcionalismo público, salvo segmentos privilegiados (ou mais lembrados), convive com um arrocho salarial que se arrasta há vários anos. O único aumento, regra geral, que se constata nos contra-cheques é o dos descontos, exempli gratia os aumentos do imposto de renda e da contribuição previdenciária, para ativos e inativos do serviço público federal.
Ainda assim, o mito de que Juízes (Federais, do Trabalho e Auditores-Militares) e Membros do Ministério Público da União (Procuradores da República, do Trabalho e Promotores da Justiça Militar) percebem vencimentos dignos de "marajás" continua disseminado na sociedade, mas está muito longe de corresponder à realidade. Enquanto parlamentares, que ganham, nominalmente, vencimentos equivalentes aos dos magistrados, conseguem alçá-los a valores bem superiores, estes têm que viver com o que lhes cabe legalmente, sem outras tantas vantagens pecuniárias a que fazem jus os parlamentares. Este o motivo pelo qual os Juízes Federais, com irrestrito apoio dos Membros do Ministério Público Federal, vêm se mobilizando em prol da fixação do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e, por conseguinte, do teto constitucional. Não se trata de pleito desprovido de legitimidade, especialmente porque de outro modo a própria sociedade acabará prejudicada pela atuação intranqüila de juízes naturalmente preocupados com a digna subsistência de suas famílias. Mas será que a tranqüilidade desses magistrados preocupa o estado mínimo?
Definitivamente, o que o Poder Público não vem fazendo nesse seu périplo visando à conformação de um novo modelo de Estado, é respeitar a Constituição, a qual sempre acusa de anacrônica e responsável pelo denominado "custo Brasil", representando causa impediente à concretização do nosso desenvolvimento.
Nesse quadro, o papel da Justiça é agigantado, pois é a última trincheira que o cidadão pode buscar para fazer valer os seus direitos, o que denota a sua importância cabal para a salvaguarda do Estado Democrático de Direito. A Justiça deve, pois, ser preservada.
Felizmente, a Justiça Federal de 1ª Instância - que se espera seja agora secundada pelos Tribunais -, através de sucessivas decisões liminares proferidas em ações individuais e coletivas, vem afastando a incidência da malsinada Lei nº 9.783, de 28.01.99, a fim de restabelecer o império da Lex Fundamentalis - que de tantos ataques tem sido vítima nos últimos anos -, mantendo, assim, a contribuição previdenciária nos patamares anteriores. O funcionalismo público não pode ser transformado em mártir da previdência. Essa lei afronta, induvidosamente, dentre outros, os princípios constitucionais da proporcionalidade, da vedação ao confisco e da universalidade do financiamento da previdência.
A atuação, séria e independente, de jovens Juízes e Membros do Ministério Público, dispostos a enfrentar atos de improbidade e toda sorte de abusos praticados pelo Poder Público contra a sociedade, vem contribuindo de forma positiva para a gestação de um futuro mais alvissareiro. Como prova do alegado, vale registrar as iniciativas encetadas pelos "Quatro do Rio", que mudaram os rumos da "CPI do Sistema Financeiro", merecendo o justo reconhecimento da opinião pública e da imprensa (esta em função daquela, ou aquela em função desta; é difícil definir). Mas e se aquela busca e apreensão nada tivesse encontrado que comprometesse o Sr. Francisco Lopes? A Juíza Federal prolatora da decisão e os Procuradores da República teriam, simplesmente, cumprido com suas obrigações. Nesta hipótese, entretanto, eles e suas instituições, muito provavelmente, teriam sido jogados aos leões (como, de princípio, ensaiou-se fazer), expostos à execração pública. Esse previsível comportamento tem que mudar. É por isso que a sociedade tem o sagrado direito de ser corretamente informada do que acontece nos subterrâneos do poder, sem que os agentes condutores dessas informações sejam acusados de estarem buscando holofotes.
Noutro giro, a União, ultimamente, e sem que tenha procedido a qualquer reforma constitucional nesse sentido, vem ignorando uma das mais salutares e democráticas regras gizadas na Carta da República de 1988, a dita "Constituição Cidadã". Refiro-me ao disposto no art. 37, inc. II, da Magna Carta, que condiciona a investidura em cargo ou emprego público à prévia aprovação em concurso público, garantindo, por meio da aferição do mérito, o igual acesso ao serviço público.
É que a Lei nº 9.688, de 06.07.98, em seu art. 1º, extinguindo os cargos de Censor Federal, autorizou o enquadramento desses servidores nos cargos de Perito Criminal e Federal e Delegado de Polícia Federal.
Assim, o Poder Executivo da União, com as bençãos do Legislativo, por intermédio da aludida lei e dos atos baixados com o escopo de aplicá-la, fez tábula rasa da norma constitucional antes mencionada. Esses servidores até poderiam ser aproveitados em outros cargos, nos termos do art. 41, § 3º, da CF, mas em funções assemelhadas, compatíveis com aquelas do cargo dantes ocupado, pena de malferimento do art. 37-II.
Cuida-se, dessarte, de vero "trem da alegria", que vulnera a Constituição de forma acintosa, frustrando a expectativa de um sem número de brasileiros que aguardam uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho ou até de ascensão social.
Como afirmado alhures, pelo que representa, impõe-se a preservação da Justiça. Mas não com auras de intangibilidade, pois é formada por homens, e a falibilidade é da natureza humana.
A "CPI do Judiciário" tem escancarado essa realidade, comprovando a relevância do acontecimento. Não para que ressentidos possam dela se utilizar como instrumento de odienta vindita, mas para que seus trabalhos estimulem a punição de juízes venais e administradores públicos ímprobos, que se acham encastelados no seio do Poder Judiciário (os atos do ex-presidente do TRT/SP, foram, enfim, apreciados pelo TCU, e embora não se trate de órgão do Judiciário, já indica uma tendência).
Esperamos, outrossim, que suas conclusões sirvam de norte para a Comissão de Reforma do Judiciário, de modo a contribuir para o delineamento de uma Justiça mais expedita, menos hermética e mais suscetível ao controle e aos anseios da sociedade.