"o projeto mais meditado que jamais ocorrera ao espírito
humano: o de empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, de fazer
de seus adversários seus defensores, de lhes inspirar outras máximas, e de lhes dar
outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto lhe era contrário o direito
natural"
(1)
É verdade
que a crise financeira na qual se encontra mergulhado o mundo suscita as mais veementes
discussões da relevância e, mormente, da urgência de se retomar o tema reforma
constitucional (2). Todavia, não podemos olvidar que as aludidas reformas tributária
(3), previdenciária (4) e política (5) têm de ser perquiridas com um mínimo de
diligência. Isto porque não podemos, no afã de resolvermos um problema, empobrecer
sobremaneira a sociedade brasileira. Este empobrecimento não cinge-se ao âmbito
econômico mas alcança precipuamente a conquista do exercício da cidadania (6).
Não quero,
aqui, apresentar-me como um cidadão avesso a reformas. Estas, indubitavelmente são
necessárias, visto que o Estado tem o dever de responder à mutabilidade multifária da
sociedade (7) e, por conseguinte ajustá-la ante ao novo mundo que se descortina, qual
seja, o mundo globalizado. A Constituição é mais do que uma simples "folha de
papel" como afirmava Lassalle. Em suma, não podemos desconhecer a força ativa da
Constituição formal ou jurídica, sua eficácia renovadora e até, em determinadas
circunstâncias, transformadora, apontando para um horizonte histórico mais avançado.
É também
verdade que o Brasil convive com uma carga tributária de 31% do seu PIB, enquanto países
vizinhos administram-na em patamares de 20%. É o caso da Argentina, Chile e Uruguai (8).
Segundo
entrevista recente à revista CartaCapital (junho/98), Antoninho Trevisan nos chamou a
atenção para o exacerbado crescimento da dívida mobiliária federal (9), que em 1993
era de US$ 5 bi e passou para US$ 250 bi no final de 1997. Ademais, segundo a equipe
econômica do governo, deveremos atingir a cifra de US$ 340 bi até dezembro deste ano, e
a carga tributária, que era de 25% do PIB em 1993, está agora em 31%. (10) Acrescente-se
a isso o fato de que as taxas de juros praticadas no Brasil visam tão-somente remunerar o
capital volátil de países rapinantes. Que política econômica é esta?
O que
exsurge é a necessidade de se perquirir acerca da viabilidade, da possibilidade jurídica
e social desta proposta de reforma por revisão. Irrefragavelmente, reformar não quer
dizer repudiar nossa Constituição (11), cujo conteúdo foi corolário de uma
construção histórica de muita luta e sangue da sociedade brasileira.
Destarte,
Fernando Henrique Cardoso, visa com esta miniconstituinte (12), prevista até então para
fevereiro de 1999, fazer da Constituição uma Carta enxuta, sem no entanto,
segundo divulga, afetar os direitos sociais. A meu ver, parece que tal
enxugamento tem o fito exclusivo de flexibilizá-la e ajustá-la aos
interesses econômicos supranacionais. Para tanto, pretende instituir uma nova revisão
constitucional. Nova porque na Constituição vigente tal revisão já se exauriu em 1993,
como pode-se apreender do seu artigo 3º. dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias - ADCT.
O
Presidente, mesmo assim, preconiza que a nova ordem econômica mundial está a exigir um
ajuste entre os interesses do Estado-Governo e o Estado-Sociedade, de sorte que o
Congresso revisor não constituir-se-ia em uma instituição plenipotenciária. Mesmo
assim, insiste em propagar que se tais reformas fossem implementadas por uma revisão (que
exige tão-somente maioria absoluta e sessão unicameral) e não por emendas (que exigem
três quintos nas duas casas legislativas), o adequamento da Constituição à nova ordem
global (13) seria mais eficaz e por conseguinte traria uma nova perspectiva econômica e
social para o povo brasileiro. Mentira!, pois os números acima apresentados estão a
mostrar que caminhamos na direção contrária.
Todavia, se
é verdade que o Direito é reflexo da sociedade, também é verdadeiro que aquele deve
acompanhar a evolução desta. De qualquer sorte não se pode destruir o que ao longo dos
séculos conquistou-se, sob pena de um retrocesso histórico (14).
Do acima
exposto, pode-se inferir que a Constituição, abrangendo o complexo das relações
humanas, entre seus múltiplos fins visa, de modo superior, a dar estabilidade às
instituições e segurança à vida individual e coletiva, de forma alguma permite-nos
asseverar que estabilidade é o mesmo que fixidez absoluta, mas constância de contextura
flexível (15). Para tanto, basta que citemos o tempo de vigência da Constituição
americana, de 1787, que vigora com apenas 27 emendas, o que não quer dizer que seu
conteúdo real seja o mesmo de sua gênese. A nossa, por seu turno, de 1988, além das 19
emendas conta também com o absurdo número de duas mil medidas provisórias. Estas,
consoante dispõe o artigo 62 da CF está a exigir, da mesma forma que hoje com tanta
veemência se preconiza, os requisitos de relevância e urgência. Urge lutarmos para que
a reforma constitucional não tenha o mesmo fim das urgentes medidas provisórias
(16) editadas.
O que quero
fixar é o fato de que as Constituições se renovam sem perda de sua identidade e do
caráter estável dos institutos e princípios (17) por ela criados. Não curvam-se ante a
efêmeras nuances econômicas. Definitivamente, reformar não é sinônimo de repúdio à
Constituição.
De tudo o
que já disse, mister asseverar que a nossa Constituição, pelo curto prazo de sua
vigência, mormente por carecer de inúmeras legislações complementares, ainda não
implementadas, certamente não demonstrou sua impropriedade. Nesse sentido, insta dar-lhe
efetividade, corrigindo naturais falhas pela exegese finalística. Com efeito, deve a
alteração formal deve ser reservada às hipóteses em que a interpretação não possa
suprir a deficiência.
Ademais, a
nova ordem global não serve de paradigma tampouco de justificativa para a adequação do
texto constitucional brasileiro ao ideário neoliberalizante (18) (Disciplina fiscal;
Priorização dos gastos públicos; Reforma tributária; Liberalização financeira;
Regime cambial; Liberalização comercial; Investimento direto estrangeiro;
Privatizações; Desregulamentação das Leis trabalhistas, etc) (19). Isso porque a
lógica do livre mercado é produzir lucro, e que o pobre não tem senão seu braço e seu
modesto saber fazer. Desse modo, sujeitar nossa Constituição à interesses
supranacionais é repudiar qualquer possibilidade de uma sociedade cujas diferenças de
classes não sejam abismais. Para tanto, somente um Estado forte e, portanto, uma
Constituição que não seja passível de reformas conjunturais poderá permitir a
correção das desigualdades sociais.
Por
derradeiro, em que pese a falaciosa acepção com que o termo globalização é
utilizado, que para mim não passa de uma nova fase de acumulação de capital (20), com a
degeneração das conquistas sociais e trabalhistas, ou ainda, uma violenta luta entre
mercadores (uma guerra de destruição do capital adversário, visando a hegemonia
comercial de um Estado sobre os demais) (21), parece-me perspícuo a impossibilidade de
reforma, por revisão, da Carta Maior, quer pelo retórico discurso de relevância e
urgência social, quer no âmbito jurídico. Não assimilemos o conceito de fatalismo
(22).
NOTAS
- Citação feita por Rogério Gesta Leal em sua célebre obra (Teoria do Estado. Porto
Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p. 86) quando traz a lume os ensinamentos de Jean
Jacques Rousseau em sua notável obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens editado pela UNB, Brasília, 1989. Esse excerto nos
remete à reflexão pela qual Rousseau concebe a sociedade e as leis, porquanto é pelo
ricos deflagrado um processo de persuasão através do qual estes [os ricos] são os
maiores beneficiados. Nesse sentido, cumpre-nos, como juristas, exercitar a exegese
finalística com escopo social quando aplicarmos ao caso concreto a norma abstrata.
- Para o Prof. Celso Bastos a oportunidade de revisão já ocorreu em 1993, sem eficácia.
Não obstante, continua o mestre, nada impede que "a aprovação de uma emenda pelo
atual Congresso, pelo quorum normal, autorizando que o mesmo poder seja reinvestido do
poder reformador próprio da Constituinte, e que essa mesma emenda seja, depois de
promulgada, submetida a um plebiscito popular, que a dará por aprovada se atingida a
maioria dos votos dos eleitores." Podemos consubstanciar o acima exposto com os
seguintes dizeres: " (Jornal Folha de São Paulo, 14/06/97). Sua assertiva
encontra-se sob a égide de que a própria Constituição de 1967, através da EC 1/69
promulgou a EC nº. 26 de 27/11/85 convocando um novo Congresso para fazer a atual
Constituição. Segundo o mestre, se fôssemos ficar adstritos à teoria constitucional, a
nossa Constituição seria ilegítima, porquanto brotou de uma emenda, inconstitucional.
Verificamos aí uma certa ingenuidade, visto que , em aceitando tal raciocínio
estaríamos a corroborar nos dias hodiernos todas as injustiças do passado bem como
aceitar que as injustiças de hoje sirvam de justificativas para o futuro. Certamente
estaríamos legitimando e alimentando um processo constante de positivação dos
interesses da classe dominante.
Na verdade, o Poder Constituinte de revisão visa, em última análise, permitir a
mudança da Constituição, adaptação da Constituição a novas necessidades, a novos
impulsos, a novas forças, sem que para tanto seja preciso recorrer à revolução, sem
que seja preciso recorrer ao Poder Constituinte originário." (Cf. José Afonso da
Silva ao reportar-se às palavras de José Bushatsky, em sua afamada obra Curso de Direito
Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 9ª edição, 4a tiragem, 1994, p. 60.)
- Extinção do IPI, ICMS, ISS e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido; Cria o
IVA (Imposto sobre Valor Agregado), o IVV (Imposto sobre as Vendas a Varejo); Transforma o
IOF, II, IE e o ITR em contribuições; Transforma a CPMF em imposto permanente e não
mais vinculados à Saúde; Retira do texto constitucional o Princípio da Progressividade.
- Dispositivo que fixa em R$ 1.200,00 o teto para a aposentadoria pública; Dispositivo
que trata das regras de transição para aposentadoria dos trabalhadores da iniciativa
privada.
- Sistema eleitoral; Fidelidade partidária; Conceito de partido; Financiamento da
campanha (A propaganda eleitoral será financiada com dinheiro do Orçamento).
- Cf. Hannah Arendt; traduz-se pelo fato do cidadão ter direito a exercer seus direitos.
- Cf. Recaséns Siches, "Uma lei indeformável somente existe numa sociedade
imóvel". Destarte, sabemos que a sociedade é banhada por ondas, que nos seus
movimentos de ir e vir, levam e trazem novos paradigmas, nos quais se erigem uma
sociedade. A sociedade é, pois, um organismo vivo e por conseguinte dinâmico, de sorte
que não há lei eterna, imutável, indeformável.
- Dados extraídos da revista CartaCapital de Junho de 1998, nº. 75, p. 37
- Composta pelos títulos públicos.
- Dados extraídos da revista CartaCapital de Junho de 1998, nº. 75, p. 36
- Dentre as várias acepções possíveis que o termo em epígrafe permite-nos perquirir,
nos interessa o seu sentido jurídico, ou melhor, político. Com efeito, estamos a fazer
alusão a Carta Maior de um Estado, sendo esta, consoante nos leciona o insigne mestre
Jair Eduardo Santana, ser "um plexo de normas jurídicas, (...); é conjunto de
normas e princípios que estruturam o Estado, organizam a divisão do poder político,
impondo-lhe limites e traçando o modo de sua aquisição e exercício e, ainda, definem
competências." (Santana, Jair Eduardo. Direito Constitucional Resumido. Belo
Horizonte. Del Rey, 2ª edição, 1997, p. 15)
- Consoante o pensamento do Prof. Paulo Bonavides (UFCE), "Uma nova revisão seria um
golpe de Estado". Para o presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Rui
Celso Reali Fragoso, "Uma miniconstituinte seria absolutamente inconstitucional e
ilegítima". Nesse mesmo diapasão, o Prof. Clèmerson Merlin Clève (UFPR),
"Qualquer alteração só pode ser feita por emenda, nos termos previstos na
Constituição."
- O termo nos remete à globalização. Esta, nas palavras do Prof. Emérito da
Universidade de Harvard, John Kenneth Galbraith, um crítico desta nova ordem global, diz
que a globalização é "um termo que nós, os norte-americanos, inventamos para
dissimular nossa política de avanço econômico em outros países e para tornar
respeitáveis movimentos especulativos de capital." (Revista CartaCapital, nº. 75,
p.34)
- Impende ressaltar que a atual Constituição, nas palavras do deputado Ulysses
Guimarães, trata-se, pois, da "Constituição Cidadã". Tal referência adquire
vulto quando nos remetemos a leitura dos Capítulos I e II, sob o Título II Dos
Direitos e Garantias Fundamentais. Nesse mesmo diapasão, o eminente Professor Paulo
Bonavides considera os artigos 5º. e 7º. o coração da Constituição. O
insigne Prof. Celso Bastos, embora considere a Constituição de 88 desastrosa
para o país, propala que o disposto nos 77 incisos do artigo 5º. são, sem dúvida, um
avanço. (Jornal Folha de São Paulo, 03/10/98, Caderno Especial, p. 4)
- Não devemos confundir estabilidade com imutabilidade.
- Instrumento que veio substituir o malfadado Decreto-Lei. Todavia, as medidas
provisórias têm-se mostrado tão iníquas quanto aquele. Isso porque atingimos o
impressionante número de 2.238 reedições de medidas provisórias. Em verdade, já foram
editadas 475 medidas provisórias desde a promulgação da Constituição. José Sarney
(86/90), editou 116; Fernando Collor, 81; Itamar Franco, 141 e, Fernando Henrique Cardoso,
137. (Jornal Folha de São Paulo, , 03/10/98, Caderno Especial, p. 3)
- Assume a acepção de "enunciados lógicos admitidos como condição ou base de
validade das asserções que compõem dado campo de saber" (Cf. Miguel Reale, em sua
afamada obra Filosofia do Direito São Paulo, Saraiva, 1996, p. 60). Destarte, por
inferência, chega-se a conclusão que a violação de um princípio é mais sério que a
transgressão de uma norma.
Quem sabe possamos falar em ideologia. Esta, "importante papel desempenha, na
construção das ciências sociais de cunho positivista, a ideologia adotada pelas classes
superiores. Esse conjunto de idéias, crenças e princípios (...) leva as
pessoas do grupo dominante a impor como verdadeiro aquilo que ajuda à continuidade do status
quo social e, logo, à manutenção de suas vantagens e prerrogativas" (Thompson,
Augusto. Quem são os criminosos?. Rio de Janeiro. Editora Achiamé, 1983, p. 43
- Cf. artigo de autoria de Magda Biavaschi, publicado na festejada obra Globalização,
neoliberalismo e o mundo do trabalho. Arruda junior, Edmundo Lima e Ramos, Alexandre
Luiz. Editora IBEJ, 1998, p. 231
-
Idem, ibidem. Cf. artigo de Alexandre Luiz Ramos. "Acumulação flexível,
assim, é a nova maneira encontrada pelo capitalismo para superar suas crises cíclicas e
suas contradições internas e, dessa forma, permitir a reprodução do capital e sua
concentração nas mãos da elite capitalista." p. 250
- Sobre tal tema, sugerimos a leitura da obra: Dicionário da Globalização de Pierre
Size, traduzido por Serge Goulart. Florianópolis, editora Obra Jurídica, 1997.
- Doutrina de que a ação humana não tem influência sobre os acontecimentos. "Ou a
bala me vai matar ou não; se vai, então não vale a pena tomar precauções, pois
matar-me-á de qualquer maneira; se não vai, então não vale a pena tomar precauções,
pois não vai matar-me; assim, em nenhum dos casos há motivo para tomar precauções. O
dilema ignora a possibilidade altamente provável de o fato de a bala o matar ou não
depender de tomar ou não precauções. O fatalismo é erroneamente confundido com o
determinismo, que, por si só, não implica que a ação humana seja ineficaz."
(Blackburn, Simon tradução de Disidério Murcho. Dicionário Oxford de Filosofia.
Rio de janeiro, editora Jorge Zahar, 1997, p. 144.)