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O menor como vítima do crime de calúnia

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01/06/2011 às 09:39

Resumo:


  • A doutrina brasileira está dividida quanto à possibilidade de um indivíduo menor de dezoito anos ser considerado vítima do crime de calúnia.

  • Existem duas teorias: uma defende a exclusão dos menores como vítimas, enquanto a outra reconhece sua vulnerabilidade à calúnia.

  • A jurisprudência tem admitido os menores como sujeitos passivos do crime de calúnia, considerando a proteção da honra como um bem jurídico personalíssimo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5 O MENOR DE DEZOITO ANOS COMO SUJEITO PASSIVO DO CRIME DE CALÚNIA

Se a inimputabilidade afasta a incidência da culpabilidade, e esta é pressuposto do crime, então o menor, por ser inimputável, não pratica delito algum. Já que a calúnia consiste na falsa imputação de um crime, obviamente o menor nunca será caluniado. No entanto, não se pode ignorar que o referido incapaz possui imagem e conceito formados perante a sociedade, podendo ser abalados por meio de difamação ou de injúria somente. É perfeitamente possível atribuir ao menor prática que, embora não seja criminosa, se verifique desabonadora, capaz de levar ao desprestígio social, ou mesmo ferir-lhe a honra subjetiva, xingando-o, por exemplo, de ladrão. É o que propugna Nélson Hungria (Apud GRECO, 2007, v. 2, p. 425):

"Apesar de inimputáveis, os incapazes podem ser expostos à aversão ou irrisão pública, e seria iníquo deixar-se impune o injuriador ou difamador, como se a inimputabilidade, no dizer de ALTAVILA, fosse uma culpa que se tivesse de expiar com a perda da tutela penal. Convém observar que as ofensas aos penalmente irresponsáveis (enfermos ou deficientes mentais, ou menores de 18 anos) somente como injúria ou difamação podem ser classificadas, excluídas a configuração de calúnia, pois esta é a falsa imputação de prática responsável de um crime."

Aparentemente todos os seguidores da corrente tripartida concordariam com a afirmação de Hungria. Todavia, alguns doutrinadores raciocinam de forma diferente, embora defendam que a inimputabilidade exclui o crime. Baseiam-se em interpretação dada à expressão contida no caput do art. 138 do CP, que afirma ser a calúnia falsa imputação de "fato definido como crime". Ora, imaginar um adolescente de catorze anos furtando, é perfeitamente plausível. Praticou um fato que se adequa à descrição do crime do art. 155, mas nem por isso é permitido dizer que juridicamente praticou crime. Do contrário, também seria correto afirmar que o menor está sujeito às sanções previstas no CP, o que não é verdade, inclusive tendo sua atitude, ao invés de "criminosa", sendo nomeada por "infração penal" de acordo com o ECA.

Encontram-se filiados a esse pensamento Cezar Roberto Bitencourt, Guilherme de Sousa Nucci e Rogério Greco, só para citar alguns ilustres. Tais autores ressalvam, ainda, que o menor deve entender o caráter nocivo do fato que lhe está sendo atribuído, bem como ter sido, em um plano hipotético, capaz de executar a referida ação ou omissão. Greco (2007, v. 2, p. 426) chama isso de Princípio da Razoabilidade, e exemplifica:

"Agora, imagine-se a hipótese em que o agente tenha a um recém-nascido, ou seja, a uma criança com poucos meses de vida, imputado a prática do mencionado delito de furto [...] Seria razoável acrescentar que uma criança de 6 meses de idade, ou até mesmo 1 ano de vida, tenha praticado um fato definido como crime? Nessa hipótese, cairíamos naquilo que discutimos anteriormente, que diz respeito à ausência de verossimilhança da imputação."

Damásio de Jesus e Fernando Capez são dois exemplos de autores que também apóiam a tese de que o menor pode figurar como sujeito passivo do crime do art. 138, embora com outra argumentação, já que adotam a teoria bipartida. Bastariam a tipicidade e a ilicitude para estar presente o crime. Se a culpabilidade não o integra, correta está a afirmação de que o menor comete delitos. A expressão "fato definido como crime" equivaleria ao vocábulo "crime", enxergando-se como sinônimos. Logo, há como se imputar ao mencionado incapaz a prática de crimes, razão pela qual não pode ser excluído do pólo passivo.

Apesar da discussão doutrinária acerca do tema, verifica-se que na jurisprudência tem-se admitido o menor como sujeito passivo do crime de calúnia, o que se conclui do teor de decisões que obrigam ao pagamento de indenização por danos morais as pessoas que mancham a honra do incapaz imputando-lhe injustamente a autoria de fatos criminosos.

Embora os tribunais não o admitam expressamente, da leitura infere-se tal posicionamento, acrescido pelo fato de que não utilizam, neste tipo de imputação, os termos "injúria" ou "difamação" ao invés de "calúnia", não condizendo, portanto, com a tese defendida por Nélson Hungria. Exemplo segue abaixo:

"[...] DANOS MORAIS. CALÚNIA. COMPROVAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. MENSURAÇÃO. 1. Devidamente comprovado que a requerida, de forma imponderada e infundada, apontou o requerente diante de toda vizinhança como autor de furto, presentes mostram-se os requisitos necessários à sua responsabilização civil. [...] Do Mérito Recursal. Trata-se de caso no qual se discute se a ré é ou não responsável pelo fato de ter acusado o autor, menor à época, de furtar aparelho de DVD da residência de uma afilhada sua. [...] Sendo assim, diante dos elementos probatórios acostados nos autos verifica-se com tranqüilidade que a ré realmente apontou o requerente de forma precipitada, ostensiva e injusta como autor do furto, fato deveras grave. (Apelação Cível nº 395576-2, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do PR, Relator: José Sebastião Fagundes Cunha)."

Ainda é possível identificar na justiça de segunda instância julgados que apontam para o mesmo posicionamento registrado acima, indo além: se o menor pode figurar no pólo passivo, configura calúnia contra os mortos a atribuição de fato criminoso ao incapaz após a sua morte. Conforme o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

"EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. IMPRENSA. DANO MORAL. MERECE SER REPARADO PREJUÍZO MORAL ADVINDO AOS PAIS DO MENOR, FALECIDO, A QUEM O JORNAL, NEGLIGENTEMENTE, IMPUTOU FATO CRIMINOSO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. VOTO VENCIDO. (Apelação Cível nº 599106176, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Décio Antônio Erpen, Julgado em 15/09/1999)."

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais é mais explícito em relação ao acolhimento da tese favorável à configuração do menor como caluniado, conforme se denota do julgado in verbis:

"EMENTA - Calúnia. Difamação. [...] Calúnia. Vítima menor. Possibilidade. O crime de calúnia pode ser praticado contra vítima inimputável, pois a norma do art. 138 do CP refere-se à imputação falsa de fato definido como crime e não à falsa imputação da prática de crime. Ora, fato definido como crime é sinônimo de conduta típica. Basta, pois, a falsa imputação de conduta típica à vítima para a caracterização do crime de calúnia, sendo irrelevante, portanto, sua inimputabilidade penal. (Acórdão do processo nº 2000000330065-6/000, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Erony da Silva, Julgado em: 25/06/2001)."


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando-se os argumentos do doutrinador Nélson Hungria (Apud GRECO, 2007, v. 2, p. 425) percebe-se que sua posição é minoritária em relação àqueles que aceitam o menor como sujeito passivo do crime de calúnia. Curiosamente, Hungria defende a tese de que não cabe figurar o incapaz nesta posição por se tratar de indivíduo que não comete crime, ao qual não pode ser imputada, portanto, a prática deste. Mas antes mesmo de fazer tal afirmação, Hungria salienta que:

"[...]quando, porém, a ofensa diz com a honra objetiva, o crime existe sempre, pois não se pode deixar de reconhecer que os incapazes em geral têm ou conservam uma certa reputação, que a lei deve proteger. Pouco importa, em qualquer caso, a inimputabilidade do sujeito passivo."

Percebe-se assim o que une as diversas teorias a respeito do tema: a afirmativa de que o menor goza de honra, porque esta se constitui em bem jurídico personalíssimo, inerente, portanto, ao próprio homem. Desde que nascem, todos merecem ter sua honra protegida; direito a ver seu nome, imagem e trajetória de vida livres da vontade alheia de atingi-los e a punição para os que concretizam este nefasto desejo.

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Dessa forma, embora se extraiam argumentos diferentes para a admissibilidade do menor como caluniado, tendo em vista as duas grandes teorias acerca do conceito de crime, não se pode esquecer o principal: o bem jurídico tutelado na norma penal. Se deste bem goza o incapaz, merece por conseguinte que a proteção do instituto legal o alcance. Aliás, a condição peculiar do menor é outro fator que enseja ser abarcado pela norma, tendo em vista que naturalmente encontra dificuldades para firmar seu lugar em sociedade, em razão de ser ainda inexperiente na vida profissional, e instável no âmbito pessoal, pois sua personalidade está em processo de formação. Busca as primeiras oportunidades de crescimento no meio social por mérito próprio, o que se tornaria ainda mais difícil com a "mancha" em sua imagem de uma falsa imputação criminosa.

Considerando-se assim a finalidade maior do direito penal brasileiro no que concerne à honra do indivíduo, o denominador comum a que chegam as diferentes argumentações retiradas da doutrina e o entendimento jurisprudencial, tem-se a hipótese do menor como vítima do crime do art. 138.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 1 v.

______. Tratado de direito penal: Parte especial. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. 2 v. BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de setembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/del2848.htm>. Acesso em: 20 mai. 2011.

______. Constituição da república federativa do Brasil de 1988.Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 20 mai. 2011.

______. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 2000000330065-6/000. Relator: Erony da Silva. Belo Horizonte, 25 de junho de 2001. Disponível em: <http://www.tlmg.jus.br/jurídico>. Acesso em: 19 mai. 2011.

______. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível nº 395576-2. Apelante: Margarete das Graças Araújo. Apelado: Maycon Alleson Muniz. Relator: José Sebastião Fagundes Cunha. Curitiba, 28 de novembro de 2007. Disponível em: <http://www.tj.pr.gov.br/consultas/jurisprudência>. Acesso em: 19 mai. 2011.

______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 599106176. Relator: Décio Antonio Erpen. Porto Alegre, 15 de setembro de 2007. Disponível em: <http: //www.tjrs.jus.br/site_php/jprud2/ementa.php >. Acesso em: 19 mai. 2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: Parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 1 v.

______. Curso de direito penal: Parte especial. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 2 v.

DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

JESUS, Damásio E. de. Direito penal: Parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. 1 v.

______. Direito penal: Parte especial. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 1999. 2 v.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código penal interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

______. Manual de direito penal: Parte especial. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 2 v.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. 1 v.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

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Sobre a autora
Aniêgela Sampaio Clarindo

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Pós-graduanda em Direito de Família pela Universidade Regional do Cariri.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARINDO, Aniêgela Sampaio. O menor como vítima do crime de calúnia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2891, 1 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19237. Acesso em: 22 dez. 2024.

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