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A constitucionalização do déficit público

01/03/1999 às 00:00

Resumo:


  • O livro analisa a hiperinflação da República de Weimar em 1923 e destaca o papel do déficit público como principal causa.

  • No Brasil, o déficit público é resultado da complacência dos agentes governamentais e da estrutura federativa desigual.

  • A crise econômica no Brasil evidencia a necessidade de enfrentar o modelo constitucional e discutir o tamanho da Federação para combater o déficit público.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.


          Há dez anos, li um livro escrito por autor americano, sobre a hiperinflação da República de Weimar de 1923, em que analisa todas as teorias formuladas por economistas sobre a estabilização conseqüente, determinada pelo Ministro Sachs, em 15 de novembro de 1923.

O livro é de Stephen Webb e intitula-se "Hiperinflation and stabilization in the Republic of Weimar" (Ed. Stanford, EUA). Conclui, o eminente autor, que a principal causa da hiperinflação era o "deficit" público alemão e a certeza dos agentes econômicos de que o Governo não conseguiria controlá-lo.

No momento, em que as autoridades alemãs decidiram não transigir com o "deficit", a qualquer custo, de um dia para o outro a hiperinflação cessou, com a introdução de uma nova moeda (o marco forte) e a redução do custo do Estado às forças da sociedade. À evidência, o processo recessivo foi a conseqüência imediata, mas, mesmo assim, menos oneroso que o processo hiperinflacionário numa economia desorganizada e recessiva.

O "deficit" público, de rigor, é a essência de todos os problemas do Estado. Os governos complacentes em concessões, desperdícios e corrupção terminam gerando "déficits" maiores do que sua capacidade de gerí-los e, no momento em que os agentes econômicos passam a duvidar dessa capacidade, a moeda não se sustenta e a economia se descompassa.

O Brasil é típico país, em que o "deficit" público é derivado desta "auto-complacência" dos agentes governamentais da União, dos Estados e Municípios, que se auto-outorgam toda a espécie de privilégios e, apesar de achacarem a sociedade com a mais alta carga tributária dos países emergentes --equivalente a dos países mais desenvolvidos (EUA e Japão)-- não conseguiram segurar o "deficit" público da artificial Federação brasileira, composta de 5.500 entidades, à falta de coragem para combatê-lo.

O desmoronamento do real, cujo modelo já se mostrara obsoleto em 1996, conforme muitos analistas denunciavam, inclusive eu (Uma visão do mundo contemporâneo, Ed. Pioneira), e que foi mantido por uma teimosia irracional, desventrou o fato de que o "deficit" cresceu em face de equívoco governamental de manter a moeda sobrevalorizada, juros elevadíssimos e carga tributária cumulativa favorável a produtos estrangeiros (COFINS, PIS, CPMF), que terminou por tirar competitividade a produtos nacionais, fora e dentro do país, sucateando o parque empresarial e gerando recessão, desemprego e uma economia devastada atrás.

As medidas extremas de flutuação do câmbio, tomadas com muito atraso pelo governo, não estão permitindo que o náufrago respire, pois o fulcro central dos problemas econômicos não foi atingido.

A crise, que decorre, em grande parte, do modelo constitucional que instituiu uma Federação maior que o PIB e outorgou benefícios maiores aos servidores públicos e às estruturas governamentais que à sociedade, de rigor, só poderá ser combatida se a realidade for enfrentada como deve ser, ou seja, com o encolhimento da Federação brasileira, pois não há mais sentido em a sociedade trabalhar para sustentar privilégios de governantes.

Nos Estados Unidos, por exemplo, em todos os municípios pequenos, seus representantes de Conselho não são remunerados e, às vezes, nem o próprio prefeito. No Brasil, qualquer vereador de qualquer um dos 5.500 municípios é remunerado, razão pela qual os 250 bilhões de reais que o país ofertou, no ano passado, de tributos, foram em mais de 60% destinados a pagar vencimentos de ativos e inativos das 5.500 "repúblicas" da Federação brasileira, única no mundo a outorgar "status" federativo aos municípios.

Grande parte dos Estados brasileiros deveriam ser territórios federais, pois não se auto-sustentam, nem têm a mínima condição de se auto-sustentarem, razão pela qual o "custo político" de suas estruturas é suportado por toda a nação, sem que prestem serviços públicos de qualidade. Por força desta estrutura corporativista que leva o povo brasileiro a trabalhar para sustentar políticos e servidores, a carga tributária brasileira, de mais de 30% do PIB, é insuficiente para que o Estado preste o mínimo de serviços públicos adequados. Temos carga tributária de EUA ou Japão e serviços públicos de Ruanda ou de Etiópia.

De rigor, não há plano de estabilização possível, num país em que toda a sociedade trabalha apenas para privilegiar os detentores do poder. E a artificialidade do "Plano Real", a partir de 1996, ditou o custo para a Nação, com juros elevadíssimos para manter uma insustentável âncora cambial, que liquidou com a União, Estados e Municípios, mas, principalmente, com aqueles que garantem a Federação, que são os empresários e os trabalhadores.

À evidência, as medidas corretivas na procela são tentativas sem horizontes definidos, pois não se visualiza a extensão do seu sucesso. São apenas medidas para tentar tirar o barco da tormenta. O barco está adernado por esta Federação maior do que o PIB e pelo "deficit" público das 5.500 entidades federativas, causado por um "pacto federativo" desfigurado. Se não começarmos, seriamente, a discutir o tamanho da Federação, dificilmente a nação vencerá o "deficit", que quanto mais for combatido pelo aumento de receitas e não pelo corte de despesas, mais tempo permanecerá.

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Desde o início, todos os que estudam a Constituição de 1988 têm procurado mostrar que a Federação Assimétrica brasileira seria o grande fator dos descompassos nacionais, o que, infelizmente, 10 anos após, tem sido confirmado. Creio que nunca foi tão importante estudar o modelo federativo adotado, que pode ser alterado, até porque a cláusula pétrea da lei de 1988 é a proibição de "abolir" o sistema federativo (art. 60, § 4º, inciso I) e não o de "mudá-lo", se a mudança for para o bem do país e para que a Nação comece a crescer, pelo fortalecimento da sociedade, e não das estruturas esclerosadas do poder.

 

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Sobre o autor
Ives Gandra da Silva Martins

advogado em São Paulo (SP), professor emérito de Direito Econômico da Universidade Mackenzie, presidente do Centro de Extensão Universitária, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia, presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Ives Gandra Silva. A constitucionalização do déficit público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 29, 1 mar. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1930. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Artigo publicado no jornal O Globo, gentilmente cedido pelo autor

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