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A experiência de um magistrado

23/12/1998 às 00:00
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Gostaria de dirigir-lhes algumas palavras, de falar-lhes sobre a vida de um juiz que pontificou, humildemente, durante 28 anos, na primeira instância, e de exibir-lhes as agruras e dificuldades que enfrentou. Mas gostaria também de proclamar-lhes as virtudes e o prazer que essa nobilíssima função lhe trouxe, a ponto de haver impregnado a sua alma, embora não fosse esse o seu projeto, o seu sonho.

Esse magistrado sou eu. Sim, caros colegas, não obstante haver abraçado a carreira jurídica, jamais pensei que haveria de chegar à magistratura. Aliás, esta, no pensamento de Mário Moacyr Porto, "como toda atividade artística -- não é uma profissão que se escolhe, mas uma predestinação que se aceita. E se cultiva".

E eu a aceitei com um amor sem par, profundo, carismático, iluminado, pondo sempre, como o bom juiz de que fala CALAMANDREI, "o mesmo escrúpulo no julgamento de todas as causas, mesmo as mais humildes". E convenci-me, muito cedo, para lembrar esse jurista italiano, de que "não existem grandes causas e pequenas causas" e de que "a injustiça envenena até mesmo em doses homeopáticas".

Antes, caros colegas, sonhara eu com a carreira diplomática. Cuidava que, tendo estudado o grego clássico e o latim e também alemão, inglês, francês e espanhol, deveria ser um cidadão do mundo. Parecia-me que o modesto distrito de Condado, em cuja zona rural nascera e onde vivera até os doze anos, se tornara pequeno demais para mim, para as minhas aspirações. Esvaiu-se, porém, o meu sonho, ante as circunstâncias econômicas e por faltar-me, decerto (quem sabe?) uma força maior que me levasse até o Rio de Janeiro. Desfez-se, contudo, essa visão, que foi tragada ou absorvida, induvidosamente, pela alma da terra que, na dicção de Victor Hugo, passa para o homem. Ou talvez pelo vaticínio de José Américo de Almeida, para quem "aquilo que tem de acontecer tem muita força". E teve, evidentemente, porque, aprovado nos idos de outubro de 1964, um período por demais difícil da vida política nacional, assumi a Comarca de Brejo do Cruz a 23 de novembro desse mesmo ano. Iniciei, ali, esse ministério, que é árduo, sem dúvida, porém venerável e cheio de dignidade.

Foram ásperos e espinhosos, caros colegas o primeiros dias: as audiências realizavam-se nos cartórios, pois não havia Fórum; era reduzido o número de serventuários, embora se deva ressaltar que eram extremamente dedicados e respeitosos. Para eles, era o juiz um semideus: tinham por este uma verdadeira veneração; cumpriam, com muito amor, os mandados judiciais e defendiam-no, incondicionalmente, em qualquer circunstância. Devo afirmar-lhes ainda que essa mesma integração existia entre o juiz e o promotor e entre aquele e os advogados. Pareciam irmãos siameses. Exauriram-se, contudo, caros colegas, esses tempos, o que, no entanto, não lhes há de fazer perder o ânimo, a coragem, o alento nem haverá de constituir-se jamais em obstáculo à independência, que, na preleção de Calmo de Abreu Dallari, é requisito prévio e essencial à magistratura. E não se há de esquecer -- como destaca esse notável jurista em sua magnífica obra O PODER DOS JUÍZES -- que o magistrado "necessita da independência para poder desempenhar plenamente suas funções, decidindo com serenidade e imparcialidade, cumprindo verdadeira missão no interesse da sociedade". E escreve:

"Assim, pois, segundo essa visão ideal do juiz, mas do que este, individualmente, é a sociedade quem precisa dessa independência, o que, em última análise, faz o próprio magistrado incluir-se entre os que devem zelar pela existência da magistratura independente".

Hei de enfatizar, no entanto, caros colegas que são vários os fatores que se identificam como responsáveis pelas restrições a essa independência. E Dalmo de Abreu Dallari os indica:

1º) as ditaduras de todas as espécies são contrárias à independência da magistratura não só porque os sistemas totalitários, por sua própria natureza, não toleram quaisquer limitações como porque, sendo eles, "inevitavelmente e invariavelmente, corruptos e intolerantes, só admitem a magistratura dócil e acovardada, que se omita, escudada numa falsa neutralidade política.

2º) São lhe contrarias, ademais, "as estruturas sociais e políticas que, embora não se caracterizem como ditaduras, são intrinsecamente antidemocráticas ou não favoráveis à democracia, mantendo mecanismos de decisão política que asseguram a supremacia de grupos sociais determinados". Essas formas políticas, geralmente classificadas como oligárquicas ou autoritárias -- assevera, costumam utilizar formalidades democráticas sem conteúdo democrático, "inclusive uma legalidade aparente para legalizar injustiça".

3º) Também "são inimigos da independência da magistratura os violentos, os intolerantes, os egoístas, os corruptos os imorais de todas as espécies que, favorecidos pelo poder econômico, pela força política ou militar ou por uma situação social privilegiada não se preocupam com a dignidade humana e hostilizam quanto podem todos os que pretendem a prevalência da justiça".

4º) Enfim, para o douto jurista, "entre os inimigos da independência da magistratura estão os próprios magistrados que, por ações e omissões, renunciam à sua independência".

E, ao discorrer sobre essas formas de renúncia, explicita-as: ora alega-se "que o magistrado deve ser um aplicador estrito da lei, politicamente neutro e sem responsabilidade moral pelas iniqüidades que possam estar contidas, com maior ou menor evidência, em suas decisões; ora, com o argumento de serem escravo da lei, ‘procuram ocultar o temor, o comodismo as conveniências pessoais ou a falta de consciência da extraordinária relevância de sua função social".

E há renúncia explícita à independência -- acentua Dalari -- quando os juízes, colaborando com autoridades arbitrarias, vêm a poupá-las "do trabalho de negar cumprimento à decisão de um tribunal e do desgaste que isso, certamente, acarretaria". E adverte:

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"Foi desse modo que magistratura alemã acobertou as violências do nazismo, que possivelmente não teriam tido curso tão fácil se o juízes tivessem resistido às primeiras investidas inconstitucionais contra os opositores do governo e as instituições democráticas. Foi assim também que as magistraturas da América Latina deram apoio às atrocidades e à corrupção praticadas pelas ditaduras militares que tomaram o poder a partir da década de sessenta".

E, falando da independência dos juízes, diz Calamandrei:

"Não conheço qualquer ofício em que, mais do que no de juiz, se exija tão grande noção de viril dignidade, esse sentimento que manda procurar na própria consciência, mais do que nas ordens alheias, a justificação do modo de proceder, assumindo as respectivas responsabilidades".

Por fim, não me furtaria o prazer de levar-lhes o grito, a lição do Desembargador Osvaldo Stefanello, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

"Eu sempre digo aos juízes que começam e aos de instâncias inferiores, que devem elaborar, que devem pensar, porque seus erros podem ser superados posteriormente pelos tribunais superiores. Podem-se aceitar os erros, o que não se pode aceitar é um juiz que tem medo de ser juiz. Não se pode aceitar um juiz sem opinião, acomodado, que segue a trilha marcada pelos tribunais, que não é capaz de contrariar um tribunal por cuidar de sua carreira. Um juiz não pode ser assim. Um juiz tem que ter personalidade, tem que ter trabalho muito, mas sobretudo tem que ter coragem, inclusive para julgar contra a opinião dos tribunais, se ele acredita que sua opinião é correta. Isto é aplicar de forma adequada a justiça. Sempre e sobre tudo pensar com cabeça própria".

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Sobre o autor
Plínio Leite Fontes

desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba, presidente da AMPB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, Plínio Leite. A experiência de um magistrado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1933. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto adaptado a partir de discurso proferido por ocasião da posse coletiva de novos juízes substitutos na Paraíba

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