3. As tendências atuais.
As convicções que modelaram ou modelam as normas sobre a circulação internacional de sentenças podem ser reagrupadas em torno de três tendências gerais.
3.1 A tendência subjetiva.
Em uma linha horizontal que tenha no extremo esquerdo a ideologia da proteção dos interesses e autonomia estatais e, no direito, a ideologia do acesso à justiça apesar das fronteiras, a tendência é o deslocamento para a direita. Enquanto o legislador do início do século passado se perguntava: "como disciplinar o processo transnacional de modo a preservar a soberania e os interesses nacionais?", o atual indaga-se: "como torná-lo efetivo para as pessoas?". Não se pense, por isso, que antigamente inexistisse a preocupação com o bom funcionamento do processo, nem que hodiernamente a soberania não tenha importância. Mas o fato é que as prioridades mudaram: se antes eram estabelecidas conforme a perspectiva do Estado, agora são escolhidas de acordo com a ótica do indivíduo.
Nesse contexto, podem-se compreender as palavras de Andolina (1996, p. 60) [39]:
Os verdadeiros destinatários do novo aparelho normativo —amadurecido no tema da cooperação internacional em matéria judiciária— não parecem mais ser os Estados, senão os homens.
O baricentro da nova disciplina colhe-se não mais na soberania dos Estados nacionais, mas no direito do Homem (seja qual for sua nacionalidade, raça e lugar onde vive e atua) de ver satisfeita —em termos de efetividade e portanto de tempestividade— a própria necessidade de justiça.
Enquanto o direito privilegiou o Estado, a autonomia das jurisdições teve por reflexo a não-atribuição de efeitos à litispendência internacional e o não-reconhecimento de qualquer eficácia à sentença estrangeira antes de nacionalizada. Em adição, a igualdade entre os Estados justificava que fosse exigida a reciprocidade. Com a superação da perspectiva estatal, tudo isso está perdendo o sentido. À medida que o ponto de referência passa a ser o indivíduo, valoriza-se a facilitação da circulação internacional de sentenças, de modo a garantir ao litigante vitorioso a certeza do seu direito e livrar as partes do preço de rediscutir uma demanda já decidida.
3.2 A tendência geográfica.
Visualizem-se dois círculos concêntricos de raios diferentes. O menor faz uma ilha no maior. O exterior representa o globo terrestre, ao passo que o de dentro, o território nacional. No centro dos círculos, eis o criador das normas sobre o reconhecimento de sentenças estrangeiras. Se a princípio o seu campo de visão não ia além dos limites da ilha, atualmente ele enxerga toda a área do círculo maior. Não mais se contenta com soluções insulares, quer soluções globais. Sem que tenha desaparecido, o círculo menor deixou de ser o todo e tornou-se parte.
Kerameus (1997, p. 405) deu uma boa legenda para nossa imagem: "Na verdade, o que se quer é [...] a disjunção entre o direito e o espaço [nacional]." [40]
Quando a ilha era tudo, impunham-se várias condições para o reconhecimento: era preciso evitar a insegurança trazida pela sentença estrangeira, uma sentença produzida consoante regras que não são previamente acordadas no país. Ademais, pensava-se que o prejuízo da ineficácia da sentença oneraria o país prolator e não se faria sentir localmente. Considerações desse gênero, porém, passaram a soar mesquinhas após a expansão dos limites geográficos. Em uma perspectiva mais ampla, o reconhecimento deve ser facilitado em prol da boa administração da justiça e da segurança jurídica no globo. Com igual propósito, vale regrar a litispendência internacional de forma a não frustrar a circulação de sentenças [41].
3.3 A tendência afetiva.
Estamos ficando menos nacionalistas, mais cosmopolitas. Antigamente as pessoas não conviviam com o estrangeiro. Hoje, os produtos fabricados no exterior, a ampla cobertura jornalística dos fatos ocorridos em outros países e as viagens de passeio, trabalho e estudo compõem a rotina de muitos. Essa nova realidade está mudando nossa forma de sentir e fazendo dos valores estrangeiros conhecidos, familiares, até mesmo estimáveis. Precisamente no tema sob análise, a tendência afetiva conduz as sociedades a vencer os preconceitos mútuos, tornando-as mais receptivas às sentenças estrangeiras.
Em sintonia com os novos dias, Cappelletti ([1968], pp. 395 e 396) disse [42]:
Hoje, depois de duas catástrofes que sacudiram nos fundamentos o "mundo dos Estados", as coisas parecem muito mudadas. A humanidade, mais conscientizada da fundamental comunidade de natureza existente entre todos os homens, parece desejar novas e superiores formas de associação e de comunidade. A antiga "sagrada" idéia de soberania parece já destinada a fazer-se em pedaços. [...] todos somos hoje verdadeiramente conscientes de viver em uma época caracterizada —como destacou Alcalá-Zamora— mais pela tendência associativa que pela nacional, razão por que no plano do direito se impõe a máxima liberalidade no reconhecimento dos valores jurídicos estrangeiros e na adaptação do direito interno para o respeito de tais valores.
Da mesma forma, Sosa (1996, p. 257) enfatizou a importância da solidariedade entre todos os povos na cooperação jurídica internacional, rejeitando o chauvinismo [43].
Se, no reinado do nacionalismo, as suspeitas recíprocas impuseram várias barreiras às sentenças estrangeiras, por exemplo o reexame de mérito como condição para o reconhecimento em alguns países, atualmente prevalece uma atmosfera de confiança, que favorece a demolição ou, quando menos, a diminuição de tais barreiras.
4. As tendências atuais e algumas controvérsias brasileiras.
Quem preferir o indivíduo ao Estado, o globo ao território de seu país, a pátria de todas as mulheres e homens à pátria nacional, enfim quem for uma pessoa do seu tempo avaliará positivamente as tendências na circulação internacional de sentenças.
Todavia aprová-las não basta. É preciso torná-las realidade —no Brasil. Em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, muitas de nossas práticas e dúvidas têm raízes em convicções que estão sendo abandonadas no mundo. O quadro seria outro se aplicássemos as tendências atuais na interpretação das normas brasileiras Apesar de ser inviável esgotar o tema aqui, podemos dar quatro exemplos.
4.1 A Constituição da República impõe a homologação de todas as sentenças estrangeiras?
Por algum tempo, houve intenso debate acerca da necessidade ou não de homologar todas as sentenças estrangeiras. A questão vinha à baila sempre que se devesse aplicar o parágrafo único do art. 15 da Lei de Introdução ao Código Civil de 1942: "Não dependem de homologação as sentenças meramente declaratórias do estado de pessoas." Nessas ocasiões, indagava-se se a Constituição de 1937, ao atribuir a competência para a homologação de sentenças estrangeiras ao Supremo Tribunal Federal, e mais tarde a de 1946 e posteriores, que repetiam a norma trocando o "de" por "das", subordinariam a eficácia de quaisquer sentenças estrangeiras à homologação. Se assim fosse, o parágrafo único, que dispensava uma parte delas do ato formal de chancela, seria inconciliável com a norma constitucional [44].
Em 1953, registram Assis e Tanaka (2003, p. 97), a ementa do acórdão que julgou a Sentença Estrangeira n. 1.343 foi: "Sentença estrangeira; não depende de homologação quando meramente declaratória do estado das pessoas." Mas, dois anos depois, aquele que Valladão (1978, p. 191) chamou o leading case na matéria seria decidido destarte: "Sentença estrangeira; é de ser homologada, em face do disposto no art. 101, I, alínea g da vigente Constituição, ainda que meramente declaratória do estado das pessoas, a fim de se tornarem exeqüíveis no Brasil" (Emb. SE 1.297 – Itália, rel. Ribeiro da Costa, Plenário, j. em 24/05/1955).
Se bem que tenham restado inquietações mesmo após o leading case, principalmente doutrinárias, elas foram aplacadas pelo advento do art. 483 do Código de Processo Civil de 1973, que é explícito: "A sentença proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada [...]." Ou seja, em caso algum a sentença estrangeira produzirá eficácia automática no País, restando aparentemente revogado o parágrafo único do art. 15 da Lei de Introdução. Na ausência de lei posterior a 1973 que dispensasse a homologação, a questão da interpretação constitucional permanece como a Bela Adormecida depois do art. 483 envenenado.
Antecipemo-nos ao príncipe: a Constituição de 1988 nunca exigiu a homologação de todas as sentenças estrangeiras.
Era este o texto originário da norma constitucional:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I – processar e julgar, originariamente:
[ ...]
h) a homologação das sentenças estrangeiras [...].
Essa redação, informa Barbosa Moreira (2001, p. 77), foi adotada a partir de 1946. Em 1937, a Constituição falava em homologação de sentenças estrangeiras. E explica o autor (BARBOSA MOREIRA, 2001, pp. 77 e 78): "A mudança da redação [...] resultara de emenda do então Deputado Adroaldo Mesquita da Costa, destinada precisamente a tornar certo que todas as sentenças estrangeiras precisavam de homologação para produzir efeitos no Brasil." [45]
Parodiando Cappelletti ([1968], p. 368), diríamos: "Não negamos em absoluto que uma indagação histórica possa demonstrar que a intenção deles que deram ao art. 101, I, g, da Constituição de 1946 a redação mantida em todas as constituições posteriores, inclusive, a princípio, na de 1988, fosse de acolher uma interpretação nacionalista da necessidade sempre de homologar as sentenças estrangeiras." E continuando nas palavras do próprio Cappelletti ([1968], p. 368) [46]:
Mas uma interpretação histórico-evolutiva não pode conceber a história de maneira estática e unidimensional. A história não é apenas o passado, mas é o movimento do passado em direção ao presente e ao futuro. A história tem, em suma, três dimensões, e uma correta interpretação histórico-evolutiva não pode deixar de levar em conta os novos movimentos, as novas exigências, as novas tendências que se manifestam em relação à norma, ao princípio ou ao instituto objeto de interpretação.
Pouco importa que a mens legis, em 1946, tenha sido ordenar a homologação de todas as sentenças estrangeiras no Brasil —uma ideia contemporânea da II Guerra Mundial. Pouco importa que a Constituição de 1988 tenha, no início, repetido ipsis litteris a Carta de 1946. Importante é que a realidade em 1988 já era mais cosmopolita do que nacionalista; já preferia a agilidade e a segurança na solução dos conflitos transnacionais, em benefício do indivíduo, à salvaguarda de uma concepção tacanha da soberania. Na conjuntura em que a Constituição de 1988 foi elaborada, exigir a homologação de todas as sentenças estrangeiras não teria sentido. Não era essa a ratio iuris do art. 102, I, h.
O contexto de abertura aos valores estrangeiros que prevalecia em 1988 ficou retratado em algumas inovações trazidas pela Constituição mesma, a saber: (1) o art. 4º, que, no inc. IX, erige a "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" em princípio reitor das relações internacionais do País e, no parágrafo único, diz: "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações."; (2) o §2º do art. 5º, segundo o qual: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes [...] dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."
Seja como for, o fundamento racional da norma é mais importante do que a occasio legis (BARROSO, 1998, p. 137), e ele vai adquirindo novos sentidos conforme a realidade em que a norma está inserida vai mudando (REALE, apud BARROSO, 1998, p. 137). Mesmo que o constituinte de 1988 quisesse a homologação de todas as sentenças, tal exigência definitivamente não se justificaria na vida atual.
Por isso, a Emenda n. 45 de 2004 atualizou a dicção constitucional e, pela primeira vez em mais de meio século, fala na homologação de sentenças estrangeiras (art. 105, I, i) [47].
Adicionalmente, a emenda confirmou a tendência ao cosmopolitismo e à valorização do indivíduo nas relações internacionais do País, consoante se percebe nestes acréscimos ao art. 5º [48]: (§3º) "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."; (§4º) "O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão."
Em poucas palavras, a atual Constituição da República não impõe a homologação de todas as sentenças estrangeiras [49].
4.2 O art. 90 do CPC merece uma interpretação estrita?
Prescreve o art. 90 do Código de Processo Civil: "A ação intentada perante tribunal estrangeiro não induz litispendência, nem obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas." Isto é, o Brasil ignora a litispendência no exterior ao exercer a sua jurisdição. De lege ferenda, essa norma ultrapassada deveria ser revista. De lege lata, não podemos desprezá-la. O que podemos discutir é se o art. 90 merece uma interpretação ampla ou estrita.
Se interpretássemos amplamente o texto, seríamos levados a acreditar que, onde o legislador escreveu "litispendência", dever-se-ia ler "litispendência ou coisa julgada". A mesma justificativa para ignorar a litispendência serve para ignorar a coisa julgada: a territorialidade do exercício da jurisdição. Em ambos os casos, trata-se de evitar que os efeitos da atividade jurisdicional estrangeira transbordem pelo território brasileiro e de assegurar que o País decida todas as demandas que, previstas em suas normas de competência internacional, tem interesse em julgar. Como se viu, esse parecer está centrado no Estado e em seu território.
Mas o sentido da norma somente pode ser determinado em seu contexto histórico e, hoje, o foco é "o indivíduo no mundo". Na nova perspectiva, deve ser preferida a interpretação estrita do art. 90: a coisa julgada estrangeira impede o juiz brasileiro de reexaminar a causa [50].
Se a sentença estrangeira for favorável ao litigante, faltar-lhe-á interesse de agir para pleitear o rejulgamento da causa no Brasil. A via processual adequada será a demanda homologatória. De mais a mais, não há por que obrigar seu adversário a ser processado duas vezes pelo mesmo motivo.
Se a sentença estrangeira for desfavorável ao litigante —o que é mais verossímil—, não se poderá admitir que ele tente a sorte outra vez no Brasil. Tolerar tal comportamento criaria incerteza na solução dos conflitos transnacionais, agrediria o princípio dos direitos adquiridos e contrariaria o princípio da eticidade nos litígios internacionais, pelo qual "[d]eve-se sempre tentar impedir as partes de lucrar abusivamente com a diversidade das ordens jurisdicionais" [51] (MAYER e HEUZÉ, 2001, p. 292).
A controvérsia tem reflexos na homologação da sentença estrangeira. Estudemos este problema (narrativa em ordem cronológica): 1) A e B têm um filho comum; 2) transita em julgado uma sentença estrangeira atribuindo a guarda do filho a B; 3) A propõe uma demanda, no Brasil, reabrindo a discussão sobre a guarda; 4) o juiz J, dando-se por competente, concede uma medida liminar em favor de A; 5) B pede a homologação da sentença estrangeira. Deve-se homologar?
Não, se se aceitasse a interpretação estatal do art. 90 —a coisa julgada estrangeira não obsta o juiz brasileiro de conhecer da mesma causa. Nesse caso, J teria obedecido à lei. Sob pena de inconsistência, o ordenamento não poderia abrigar normas que adiante privassem de qualquer utilidade prática o exercício legítimo de jurisdição brasileira; em particular, não poderia abrigar normas que amparassem a demanda homologatória proposta por B. No caso, existe até medida liminar brasileira em favor de A e, por isso, permitir a homologação equivaleria a privilegiar um ato soberano estrangeiro em prejuízo do nacional [52].
Mas, visto que o art. 90 não determina que o Judiciário brasileiro opere a despeito da coisa julgada estrangeira, a atuação de J foi ilegítima e nada se opõe à homologação pretendida por B. Um erro não justifica o outro. É esse o nosso parecer.
Uma hipótese semelhante à descrita foi examinada pelo Supremo Tribunal Federal em 2004, e houve controvérsia (SEC 5.526-1 – Noruega, rel. Ellen Gracie, Plenário, j. em 22/04/2004 [53]). Para a maioria:
A preexistência destes julgados alienígenas não retira a validade da decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara de Família da Comarca de Niterói – RJ que, em sede de medida cautelar preparatória de ação de divórcio direto, conferiu a guarda provisória da menor à requerida. [...]
[...] O deferimento do pedido de homologação representaria, dessa forma, a prevalência da sentença norueguesa sobre a decisão de um juiz brasileiro que, embora proferida em sede liminar, seria modificada, importando numa clara ofensa aos princípios da soberania nacional.
Para Marco Aurélio:
[...] não consta do art. 15 da Lei de Introdução ao Código Civil, como óbice à homologação da sentença estrangeira, o fato de ter-se, no período compreendido entre o trânsito em julgado e o pleito de homologação pelo Supremo Tribunal Federal, a propositura de uma ação, no Brasil, versando sobre a mesma matéria. [...]
No caso concreto, sendo a decisão anterior à propositura de ação semelhante ou idêntica no Brasil e havendo a sentença estrangeira transitado em julgado em data também pretérita à citada propositura, peço vênia para proceder à homologação [...].
Pelos motivos que expusemos acima, aplaudimos o voto solitário de Marco Aurélio.
4.3 A sentença estrangeira sem fundamentação pode ser reconhecida?
Ao tratar do reconhecimento de eficácia às sentenças estrangeiras, a lei brasileira é liberal na medida em que restringe ao mínimo as condições do reconhecimento. Conforme disciplinado pela Lei de Introdução ao Código Civil de 1942:
Art. 15. Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos:
a) haver sido proferida por juiz competente;
b) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificado a revelia;
c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida;
d) estar traduzida por intérprete autorizado;
[...]
Art. 17. As [ ...] sentenças de outro país [ ...] não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
No entanto, a interpretação jurisprudencial dos requisitos de homologação nem sempre combina com o minimalismo legislativo. Por vezes, destacou Dolinger (1985, p. 876), a ordem pública desempenhou um papel excessivo no reconhecimento de sentenças estrangeiras. Um dos casos que, na opinião do autor, denuncia o excesso é a recusa de homologação às sentenças estrangeiras desmotivadas (DOLINGER, 1985, pp. 869 e 870) [54].
Antes de a Emenda Constitucional 45 entrar em vigor, o Supremo Tribunal Federal examinou muitas vezes o tema, que era controvertido. A partir da década de 90, prevaleceu a tese da homologabilidade da sentença estrangeira desmotivada. Era representativa esta ementa [55]:
Sentença estrangeira — Formalidades — Legislação aplicável. A sentença estrangeira deve estar revestida das formalidades impostas pela legislação do país em que prolatada. Descabe cogitar da estrutura de tal peça considerados o Código de Processo Civil e a Constituição nacionais (SEC 4.590 – Estados Unidos, rel. Marco Aurélio, Plenário, j. em 05/06/1992).
A preferência por essa tese, contudo, era sutil. Em várias ocasiões, ganhou o parecer contrário [56]. Veja-se, a propósito: "Decisão que se limita a revelar a sanção aplicada à ré, sem dizer as razões que orientam o arbítrio, não se qualifica como hábil à homologação" (SEC 3.976 – França, rel. Maurício Corrêa, j. em 27/09/1995).
Acreditamos que a sentença estrangeira sem fundamentação possa ser reconhecida. Nossa opinião baseia-se no magistério de Mehren (1980, p. 38) [57], ao tratar da recusa do reconhecimento por motivo processual: "Em essência, todos os sistemas processuais devem ser vistos como um todo; debilidade em um departamento pode ser compensada por força em outro."
Na matéria da fundamentação das decisões judiciais, deve-se ter em conta que há sistemas processuais que valorizam a escritura, enquanto outros têm nítida preferência pela oralidade. Comparado ao processo na Inglaterra, por exemplo, onde às vezes não há fundamentação a não ser que o interessado a requeira (SPENCER, 1998, p. 823), o processo brasileiro é escritural [58]. Lá, com exceção da demanda, "quase tudo é apresentado oralmente" [59] (ROTH, 1998, p. 774). Nesse caso, a forma falada favorece a participação efetiva dos litigantes no processo, permite um intenso intercâmbio de ideias e propicia a fiscalização recíproca e constante de todos os atores processuais, porque a oralidade pressupõe atos realizados em conjunto. Comparando o sistema inglês com o brasileiro, cremos que a falta de fundamentação das sentenças inglesas —uma "debilidade" [60]— seria compensada por uma "virtude" no departamento dos debates diretos e, no todo, o sistema inglês seria justo [61]. Considerações semelhantes poderiam ser tecidas sobre o processo na Alemanha e nos Estados Unidos, países onde nem sempre as sentenças precisam ser fundamentadas.
Não obstante pareça suspeita e arbitrária para os brasileiros, a sentença sem fundamentação pode ser compatível com as nossas noções essenciais de justiça e moral. É errado supor que somente sejam razoáveis os sistemas processuais integrados por garantias e normas idênticas às nossas. É correta a advertência de Mehren (1980, p. 38): "devemos ter cautela na avaliação de outros sistemas; com freqüência excessiva, o não-familiar é equiparado ao injusto" [62]. A tendência ao cosmopolitismo recomenda que não sejamos preconceituosos.
Demais disso, se considerarmos que a homologação muitas vezes é requerida quando a sentença só pode ser executada no Brasil, compreenderemos que recusá-la é bastante grave. É furtar ao indivíduo a certeza do seu direito, apesar de já afirmada alhures.
Seguramente haverá situações em que precisaremos ser draconianos, até porque a aplicação da ordem pública no processo de homologação não comporta meio-termo [63]. Quando a nossa ordem pública internacional exigir, negaremos o reconhecimento da sentença, deixando a parte vitoriosa no estrangeiro na mesma situação daquela que não propôs demanda alguma. Mas isso só é aceitável se a ordem pública exigir, jamais por ignorância do sistema processual estrangeiro.
Em suma: desde que preencha os requisitos legais, a sentença estrangeira sem fundamentação deverá ser homologada no Brasil.
4.4 Podem ser concedidas medida cautelar ou antecipação de tutela no processo de homologação?
O Supremo Tribunal Federal, quando competente, controvertia sobre a possibilidade de concessão de cautelar e antecipação de tutela no processo de homologação (PERIN, 2004, pp. 16-29).
Em 1984, o Plenário negou uma medida cautelar —arresto— requerida no curso do processo homologatório, a qual objetivava assegurar a execução da sentença estrangeira homologanda. O fundamento para a negativa foi a impossibilidade de que a sentença produzisse efeito executivo no Brasil antes do ato formal de chancela. Eis a ementa:
Ementa: - Homologação de sentença estrangeira. Despacho que denega a concessão de medida cautelar de arresto. Inadmissibilidade de efeito executivo à sentença estrangeira antes da homologação – AGRG a que se nega provimento. (Ag. Reg. SE 3.408-5 – Estados Unidos, rel. Cordeiro Guerra, j. em 01.08.1984.)
Em decisão monocrática de 1999, Celso de Mello decidiu ser "incabível, na ação de homologação de sentença estrangeira, a antecipação da tutela a que se refere o art. 273 do CPC", invocando o mesmo fundamento da decisão de 1984: "enquanto não esgotadas as fases rituais da ação de homologação, [...] não se revela possível conferir eficácia executiva à sentença emanada de tribunal estrangeiro, mediante juízo de provisória e antecipada delibação" [64] (SE 6069-8, j. em 26/03/1999).
Em decisão monocrática de 2003, Marco Aurélio afastou-se dos precedentes e concedeu uma medida cautelar para assegurar a efetividade da eventual sentença homologatória de um laudo arbitral inglês (Ação Cautelar n.º 13/PR, j. em 08/05/2003). Nada se disse sobre a possibilidade de a sentença estrangeira produzir efeitos no País antes de homologada.
A melhor decisão é a última, com base na tendência subjetiva: o ponto de vista do indivíduo passa a ser preferido ao do Estado. Os precedentes que negam à sentença estrangeira qualquer efeito antes do ato formal de chancela são anacrônicos. No passado, não se admitia que um ato soberano estrangeiro pudesse produzir efeitos no país. Quando muito, aquiescia-se em que a sentença homologatória local incorporasse o conteúdo da sentença estrangeira. Antes da sentença doméstica, porém, nada. Essa ordem de razões, vimos, apequenou-se diante do valor que hoje damos ao direito humano de acesso à justiça apesar das fronteiras. A premissa não é mais a autonomia das jurisdições, é a efetividade dos remédios processuais para os conflitos intersubjetivos. Portanto, rejeitar a possibilidade de medida cautelar ou antecipação de tutela no processo de homologação constitui um atraso inaceitável. A Resolução 9/2005 da Presidência do Superior Tribunal de Justiça andou bem ao esclarecer, em seu art. 4º, § 3º, que "Admite-se a tutela de urgência nos procedimento de homologação de sentenças estrangeiras."