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Revalorizando a "ética".

Estudo jusfilosófico sobre a questão da racionalidade da Idade Moderna, da racionalidade político-jurídica contemporânea, dos direitos humanos e da cidadania

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25/06/2011 às 08:56
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6 O LADO PERVERSO DA GLOBALIZAÇÃO EM MILTON SANTOS

Em Milton Santos, existe uma forte crítica à globalização perversa, uma tal perversidade sistêmica (de impactos globais) com bases ideológicas que legitimam o sistema capitalista. Dinheiro, produção, informação e consumo integram, portanto, o sistema. De modo que existe uma lógica perversa capaz de regular e auto-regular o sistema capitalista.

Existe uma nova forma de totalitarismo (se bem que o sentido de totalitarismo seja diverso em sua origem, pois o conceito está mais vinculado à invasão estatal na vida privada das pessoas através da estrutura e do modelo de Estado Nazista, capaz de anular o ser tido como "diferente", "fora do padrão" ou potencialmente degenerativo ao tecido social alemão);

Também se faz presente, neste contexto, um fenômeno de enfraquecimento das soberanias estatais, bem como um retrocesso à noção de bem público e de solidariedade, além das reduções políticas e sociais do Estado [56].

Explica-se a razão de ser dessa realidade, a partir de um enfoque "existencialista": "vivemos num mundo confuso e confusamente percebido" [57].

De fato, houve um progresso tecnológico. Novas relações sociais se constituíram. Outras estão sendo constituídas, rompendo com mitos, tabus, dogmas e paradigmas. Mas em matéria de progresso humano e ético, houve algum progresso?

O fato que na idade contemporânea tudo é muito veloz. Informações fluem com rapidez. Dados são acessados em tempo real.

As explicações mecanicistas e utilitaristas não dão conta de respostas às grandes questões contemporâneas. Por isso, em Santos, a razão instrumental deve ter limites éticos.

As bases materiais onde são construídas as identidades (e as personalidades), bem como os desafios de uma modernidade em constante mutação tem gerado uma gama de patologias. Uma dessas patologias é a perda do sentido.

Ao nível do estilo de vida individual mostra-se a perda do sentido, antes de tudo, na unilateralidade da condução da vida, a qual, por carência de substrato ético, reduz-se a uma atitude instrumental com relação a si próprio e aos outros. Como conseqüência produzem-se problemas de orientação (Orientierungsprobleme) na esfera privada e problemas de legitimação na esfera pública. [58]

Neste estágio civilizatório, no mais alto patamar de desenvolvimento das práticas capitalistas, se faz presente a construção de imaginários, signos e identidades, impostas por uma indústria cultural, que produz e que necessita de um grande mercado de consumidores, que não especulam (isto é, que não questionam se necessitam ou não do produto ou serviço), mas que consomem por "consumir", ou melhor, que vivem para consumir e não são tidos, pelo sistema, como criaturas que consomem para viver. O primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo; a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é: a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização.

Em Milton Santos, o que é, é imposto. O dever ser, isto é, o ideal é o progresso em direção a uma outra globalização, mais humana, mas inclusiva. Não pretende voltar a um estágio civilizatório anterior (sua visão, portanto, não é reacionária), e sim dar um salto qualitativo ético, sem suprimir as relações globais entre os seres humanos.

Fala-se que a aldeia global possui um sistema de informações que realmente deixa as pessoas a par dos assuntos. Outra fábula: o Estado está desaparecendo e perdendo a sua força. A morte do Estado, portanto, tem sido levantada. Ao contrário, o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender aos reclamos de finanças [59].

Do ponto de vista perverso, a globalização tem produzido um grande contingente de seres humanos desempregados. Além disso, existe não só o problema da miséria, mas também o da corrupção, bem como o da má distribuição das riquezas socialmente produzidas. Os comportamentos competitivos (exemplo, lançar as pessoas no "paredão" ou "deletá-las" de seus postos de trabalho) e as ações individualistas têm promovido grandes conflitos sociais, desilusões e falta de utopias. Ocorre que no entendimento de Milton Santos é possível a construção de um outro mundo, uma globalização mais humana. O problema é que a razão técnica tem impedido o progresso para uma globalização mais humana. As bases técnicas e a razão instrumental são perversas, portanto. Se as bases técnicas forem usadas para a emancipação de povos, para a afirmação de culturas e preservação de etnias, uma saída será possível na visão do autor.

Milton Santos [60], vislumbra dois grandes eventos históricos os quais representam para a humanidade um avanço, a saber: o primeiro é que as várias técnicas existentes (razões técnicas ou instrumentais) passam a se comunicar entre elas. A técnica da informação assegura o desenvolvimento das práticas comerciais em nível global, que antes não era possível. O segundo é que as técnicas apenas se realizam, tornando-se história, com a intermediação da política, isto é, da política de empresas e da política dos Estados, conjunta ou separadamente.

"O desenvolvimento da história vai de par com o desenvolvimento das técnicas. Kant dizia que a história é um progresso sem fim; acrescentamos que é também um progresso sem fim das técnicas. A cada evolução técnica, uma nova etapa histórica se torna possível. As técnicas se dão como famílias [...] Essas famílias de técnicas transportam uma história, cada sistema técnico representa uma época. Em nossa época, o que é representativo do sistema de técnicas atual é a chegada da técnica da informação, por meio da cibernética da informática e da eletrônica".[61]

Na verdade a técnica não pode ser vista como um dado absoluto, mas como técnica já relativizada, ou seja, tal como usada pelo homem.

Nesse sentido, existe em Milton Santos um pensamento que confirma a convergência de momentos.

"A unicidade do tempo não é apenas o resultado de que, no mais diversos lugares, a hora do relógio é a mesma. Não é somente isso. Se a hora é a mesma, convergem, também, os momentos vividos. Há uma confluência dos momentos como resposta àquilo que, do ponto de vista da física, chama-se de tempo real e, do ponto de visto histórico, será chamado de interdependência e solidariedade do acontecer". [62]

O capitalismo passou por períodos e nosso momento histórico de desenvolvimento das práticas capitalista está em crise.

"Tirania do dinheiro e tirania da informação são os pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado. Sem o controle dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças. Daí o papel avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos atores hegemônicos, que agem sem contrapartida, levando ao aprofundamento da situação, isto é, da crise". [63]


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia kantiana de que o direito que um povo tem de não ser impedido por outras forças de dar a si próprio uma constituição civil representou um avanço no campo jurídico. A mudança da "Era dos Deveres" para a "Era dos Direitos" também significou para a civilização ocidental um progresso. O avanço em matéria técnica, seja ela jurídica ou tecnológica também é um fato. O trabalho revelou a importância da racionalidade jurídica moderna enquanto justificadora da norma e do Estado Democrático de Direito. Entre os "positivistas éticos", apela-se para uma racionalidade ética. De modo que o direito moderno e o contemporâneo são racionais. Ao lado disso, a razão técnica (instrumental), as parafernálias do mundo contemporâneo e os impactos da globalização da economia na vida das pessoas têm sido assuntos de relevância ética, não só para sociólogos, mas para os juristas também. O que ainda precisamos superar é o problema da exclusão social promovida pelo lado perverso da globalização, um modelo insustentável na atualidade. O consumismo também tem sido um grande problema.

Com efeito, Habermas propõe uma "saída" racional às patologias sociais, qual seja a adoção de um modelo procedimental deliberativo-participativo talvez possível de ser concretizado numa esfera pública autônoma onde são formadas as opiniões e as vontades, de cidadãos articulados e que se comunicam visando ao consenso. Em Habermas, nesse viés, com forte apelo ético, é possível a absorção dos Direitos Humanos pelas culturas "não ocidentais" pelo caminho comunicacional e do direito discursivo. No entendimento do autor, é possível justificar racionalmente o discurso moral dos Direitos Humanos. Vislumbra a possibilidade de universalizá-los, pois se "somos seres de fala é porque buscamos o consenso". Além disso, aposta na concretização de uma pacificação cosmopolita, ideia sustentada por Kant em "A paz perpétua".

"A paz perpétua, que o abade St. Pierre já invocara, é para Kant um ideal que deve conferir atratividade e força elucidativa à idéia da condição cosmopolita. Com isso, Kant acrescenta uma terceira dimensão à teoria do direito: ao direito público e ao direito internacional vem somar-se o direito cosmopolita. Essa inovação traz muitos desdobramentos. A ordem republicana de um Estado constitucional baseado sobre direitos humanos não exige apenas uma imersão atenuada em relações internacionais. Mais que isso, a condição jurídica no interior de um mesmo Estado deve antever como término para si mesma uma condição jurídica global que una os povos e elimine as guerras: A idéia de uma constituição em consonância com o direito natural do ser humano, isto é, que os obedientes à lei, unidos, também devam ser ao mesmo tempo legisladores, subjaz a todas as formas de Estado;" [64]

Na falta de democracia, de direitos fundamentais, de autonomia pública e privada garantida constitucionalmente, inviável se torna o processo de busca ao consenso. Não haveria espaço, nem ambiente para uma pacificação cosmopolita. A garantia dos direitos fundamentais é essencial para amenizar as tensões entre diferentes culturas e a liberdade é um valor primordial para os que desejam a consagração de um direito cosmopolita.

Por outro lado, a construção de um espaço "livre de interferências" trata-se de uma utopia atacada por seus opositores. Como criar "as condições livres de interferência na comunicação" num cenário demasiadamente desigual, plural e contraditório? Nesse sentido, Habermas tenta ofertar outro caminho que convença a oposição: O consenso não incide sobre os "conteúdos" (como preferem alguns, "às questões substanciais"), mas sim sobre os "procedimentos". Por isso, aposta no regime democrático e no "sistema de direitos", arquitetado em Faktizität und Geltung, ao afirmar que a vantagem da democracia procedimental-deliberativa (também participativa) está na possibilidade de ser reiniciada a qualquer tempo.

"1. Direitos Fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. Esses direitos exigem como correlatos necessários: 2. Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status quo de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; 3. Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual. (...) 4. Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os cidadãos exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo. (...) 5. Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4)". [65]

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Pagamos o preço da democracia procedimental-deliberativa, mas será que ela continua sendo o melhor modelo para uma real transformação das instituições políticas do Estado? Não seria uma proposta tão somente "reformista" em vez de verdadeiramente "transformadora"? Teríamos de destruir as "estruturas" internas do sistema capitalista para avançarmos política e eticamente, no sentido de uma autêntica emancipação social?

Por outro lado, os filósofos do direito de orientação marxista defendem a destruição das "estruturas" que alimentam o sistema capitalista, caso contrário o problema da exclusão social não será resolvido. Neste horizonte marxista, a ruptura deve ser radical. O juspositivismo ético habermasiano ao propor aquele modelo não rompe com as "estruturas", ao contrário, reforçam-nas. A teoria do consenso não se sustenta numa realidade demasiadamente competitiva, consumista e conflituosa. As possibilidades de entendimento, sobretudo em nossa realidade latino-americana, são mínimas. Os grupos que exercem "pressões" políticas não defendem interesses comuns, mas são direcionados às vantagens; logo, reivindica-se, pois, por algum benefício "classista". Também é inegável que a sociedade fundada em modelos liberais é caracterizada por uma tensão entre a subjetividade individual dos agentes na sociedade civil e a subjetividade monumental do Estado. Marshall, por exemplo, tentou buscar uma saída ao problema da exclusão social: devemos articular a cidadania com a classe social, e a partir dessa articulação, será possível amenizar a tensão entre a cidadania e o capitalismo. Mas não restam dúvidas de que o principal agente das transformações progressistas dentro do capitalismo foi a classe operária, ao reivindicar direitos sociais e tratamento isonômico.

Hoje, outros segmentos e novos atores exercem a cidadania participativa pelo canal dos movimentos sociais articulados, a exemplo dos jovens, dos movimentos ecológicos, feministas, pacifistas (direitos humanos), anti-racistas, consumidores, de auto-ajuda, movimento contra a impunidade e de inclusão social através da justa distribuição de terras ou da efetivação do direito constitucional à moradia. Logo, a cidadania pressupõe a liberdade para o exercício dos direitos fundamentais definidos pelo texto constitucional num regime democrático.

Ademais, onde há "tirania do capital" não existem cidadãos. A democracia representativa liberal (que é diferente da democracia participativa e da deliberativa) não consegue efetivar a garantia do exercício da cidadania e dos direitos fundamentais. O abuso do poder econômico e de um mundo apelativo em torno do fator consumismo tem produzido o enfraquecimento do exercício da cidadania, um direito fundamental, e, a educação, passa a ser fator secundário diante daquele fator.

"Desde Adam Smith e seus seguidores, que haviam lutado por obter uma economia livre de compromissos morais e religiosos, que se movesse por si mesma, os fundamentos éticos foram expulsos, sobretudo mais tarde, na sociedade de consumo. Nesta, é o ‘ter’ que permite o ‘ser’, isto é: pessoas ou grupos que têm tais e tais coisas ganham do meio uma determinada identidade. Assim, valores secundários (como ter este ou aquele automóvel) são tornados essenciais, enquanto valores vitalmente essenciais (como, por exemplo, a educação) passam a figurar como secundários. Junto com tudo isso, vai-se vendo acentuada despersonalização das relações humanas, no leito de um individualismo e de uma competitividade agressiva".[66]

Por outro lado, hoje existem garantias constitucionais que permitem a reivindicação de direitos, bem como o exercício do direito subjetivo público ao pleito judicial. E isto também representa um avanço. O Ministério Público, por outro lado, tem ocupado uma posição relevante na garantia de um regime democrático no Brasil, contribui para a solidificação das instituições democráticas. Dessa forma, é possível avançarmos jurídica e eticamente, desde que sejam combatidas as ações deletérias do sistema capitalista excludente, promotor de patologias sociais. A ampliação dos espaços democráticos na sociedade e a garantia do "direito à voz" (com base em Direitos fundamentais à participação – em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os cidadãos exercitam sua autonomia política) aos movimentos sociais, que reivindicam com base em valores éticos, exigindo transparência dos órgãos públicos e a efetivação de políticas públicas, são saídas potencialmente estratégicas ao problema da exclusão social no Brasil.

De modo que, mesmo diante dos impactos de uma globalização perversa, ainda é possível resgatar valores éticos perdidos e apostarmos numa sociedade civil compromissada com a transformação de uma realidade caótica com base na cidadania. Portanto, o ceticismo e as visões reducionistas nos redirecionarão ao regresso humano e ético. O antídoto para isso é o otimismo: ser progressista é olhar para o futuro com consciência de que o "agora" pode ser transformado. Para tanto, é necessário resgatarmos os valores éticos e apostarmos numa sociedade mais solidária, educada para o exercício de uma cidadania que seja capaz de modelar o Estado.

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Sobre o autor
Renato Toller Bray

Professor da UEMG e do Imesb. Doutor em Direito Político e Econômico. Mackenzie SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAY, Renato Toller. Revalorizando a "ética".: Estudo jusfilosófico sobre a questão da racionalidade da Idade Moderna, da racionalidade político-jurídica contemporânea, dos direitos humanos e da cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2915, 25 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19407. Acesso em: 25 abr. 2024.

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