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A luta da mulher continua

21/04/1998 às 00:00
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O século chega ao fim e, de igual sorte, o segundo milênio.

O inventário dos cem anos que estão findando é um levantamento do mais trágico período da história da humanidade.

Nunca, em tempo algum, o homem mostrou a sua irreversível e invencível capacidade para o bem e para o mal, a bipolarização entre os caminhos da paz e da guerra, do entrechoque dos permanentes valores da vida e o alto e irresgatável preço da morte.

Dir-se-á, neste melancólico e nebuloso fim de século, que se assiste à profanação do sagrado e a sagração do profano.

Assistimos ao espetáculo de duas guerras mundiais; as revoluções dilaceram os povos, sobretudo, as nações africanas que se libertaram do jugo colonialista; a técnica ofereceu ao homem a possibilidade de transpor os espaços siderais e, em contrapartida, singular e dramaticamente, violar o mistério da vida nos holocaustos da bomba atômica, no morticínio indiscriminado de velhos, crianças e doentes, entre outros seres humanos.

O terceiro milênio está à porta.

E nós podemos perguntar agora, sob a luz da futura aurora de cores incertas e presságas que se aproximam inexoravelmente, qual o destino do homem na fimbria de um horizonte desconhecido, fugidio e incerto?

E, à ausência de nossa autoridade intelectual de responder a essa angustiante e grave questão, nós nos permitimos o recurso a pensadores, juristas, filosofas, humanistas, cientistas sociais que se debruçam sobre os graves e inafastáveis problemas do homem no ocaso deste século.

O filósofo francês JEAN-MARIE GUÉHENNO, no palpitante livro "O FIM DA DEMOCRACIA, UM ENSAIO PROFUNDO E VISIONÁRIO SOBRE O PRÓXIMO MILÊNIO", pergunta se a democracia sobreviverá após o ano 2.000, qual o futuro dos Estados-nação, eis que os vencedores são as redes, certas categorias sócio-econômicas, as comunicações, os lobbies, eis que mergulhamos na homogeinização do mundo.

CHRISTOPHER LASCH, pensador e filósofo americano, na obra "REBELIÃO DAS ELITES E TRAIÇÃO DA DEMOCRACIA", sustenta, em relação ao seu país, que a democracia hoje está ameaçada, não pelas multidões, senão que pelas próprias elites que se isolam em suas redes e enclaves, abandonam a classe média, dividem a nação e traem a idéia de uma democracia para toda a América. Eis, argumenta, a crise espiritual do regime democrático, crítica que se estende com mais razão a todos os povos, podemos acrescentar.

RICHAR SENNET, pensador americano, na obra "O DECLÍNIO DO HOMEM PÚBLICO, AS TIRANIAS DA INTIMIDADE", examina o empobrecimento da vida cívica na moderna sociedade industrial, tema que é retomado e ampliado sob outro ângulo pelo pensador alemão ROBERT KURZ, no livro "O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO, DA DERROCADA DO SOCIALISMO DE CASERNA À CRISE DA ECONOMIA MUNDIAL", o qual, depois de se perguntar a respeito da queda dos países socialistas, conclui que essa debacle representaria o início da crise do próprio sistema capitalista.

Dois cientistas canadenses, JEAN-LOUIS BAUDOIN e DANIELLE BLONDEAU, ambos especialistas em bioética, o primeiro ainda juiz e a segunda ainda filósofa, em livro de viva atualidade, "A ÉTICA ANTE A MORTE E O DIREITO DE MORRER", tratam a respeito da bioética, da aparição da ciência experimental e sua aplicação em técnicas de todo o tipo, manipulando a vida humana e afastando as fronteiras de morte, nos espetáculos hospitalares dos mortos vivos e das mortes aprazadas.

A entropia das instituições de serviços experimentais, como hospitais, escolas, sistemas de transporte, a degradação ecológica planetária e quase metaplanetária, como a redução da capa de ozônio e a poluição espacial, estão na ordem do dia.

E, no centro da tragédia, a cultura da técnica, com o aumento do egocentrismo e o desmantelamento da família.

HANS MAGNUS ENZENSBERGER, ensaísta e filósofo alemão, na obra "GUERRA CIVIL", descreve o drama da Europa atual, trabalhada por conflitos étnico-religiosos e nacionalismos, logo depois da queda do muro de Berlim. O sonho da paz mundial e da Europa Unificada se esboroou, ódios e ressentimentos se espalham pelas grandes capitais do Primeiro Mundo. Há uma guerra civil cotidiana, não declarada, molecular, e a Europa, neste fim de século, está incubando um sinistro e gigantesco "ovo da serpente".

O pensador americano MICHAEL HARRINGTON, auto de obras ecoantes, como "A OUTRA AMÉRICA, A POBREZA NOS ESTADOS UNIDOS", e no livro "A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E A DECADÊNCIA CONTEMPORÂNEA", sustenta que no fim do século XX algo enorme está morrendo e algo enorme está nascendo, e a obra versa sobre o que está morrendo, isto é, a decadência contemporânea.

Há uma frase no livro que é um libelo-crime acusatório: "ou o homem ocidental escolhe uma nova sociedade ou uma nova sociedade escolherá e abolirá o homem".

Eminentes pensadores de diversas áreas do saber humano, e de diversas nacionalidades, no livro "DEPOIS DA QUEDA, O FRACASSO E O FUTURO DO SOCIALISMO" examinam o drama dos nossos dias, e, um deles, ROBIN BLACKBURN, sustenta que seria ilógico e equivocado ver no fracasso do comunismo algo a favor da injustiça e da irresponsabilidade do capitalismo.

Cabe, agora, a pergunta, retomando a obra "O COLAPSO DA MODERNIZAÇÃO", de ROBERTO KURZ, se nós somos os passageiros do TITANIC, querendo ficar no convés do navio, enquanto a banda continua a tocar, e, se tivermos que viver o "mesmo fim da história", não será um fim feliz.

Por certo e afinal, todos os presentes se estarão perguntando e, em especial as mulheres às quais se tributa, hoje e aqui, esta significativa homenagem, o que pretendemos nós, como orador oficial do IARGS, dizer, afirmar e concluir, com as citações que foram expendidas.

Nós responderemos, com o filósofo italiano NORBERTO BOBBIO, na obra "ERA DOS DIREITOS", quando foi questionado sobre o futuro da humanidade, ameaçada pelo aumento cada vez maior e incontrolado da população, com o aumento cada vez mais rápido e incontrolado da degradação do ambiente, com o aumento cada vez mais rápido e incontrolado e insensato do poder destrutivo dos armamentos, que há um sinal ao menos positivo neste elenco de circunstâncias negativas: o reconhecimento proclamado e crescente dos direitos do homem.

E nós nos atrevemos a afiançar, neste fim de século, que por certo, ao lado da persistente luta, da redobrada conquista dos direitos do homem, há, também, um sinal positivo, a luta secular das mulheres de todo o mundo, na procura, na afirmação da igualdade dos seus direitos em relação aos direitos do homem.

Impõe-se agora, destacadamente, sob o gênero geral e comum "direitos do homem", sustentar a existência própria e particular dos direitos da mulher.

Ninguém melhor examina este tema do que a professora e cientista social norueguesa TOVE STANG DAHL, na obra "O DIREITO DAS MULHERES, UMA INTRODUÇÃO À TEORIA DO DIREITO FEMINISTA".

Durante mais de dois séculos a luta pelos direitos das mulheres foi travada; ganhou corpo ao longo do século XIX, quando eclodiu o feminismo na França; palavra de origem francesa, se fortaleceu nos Estados Unidos em meados dos anos sessenta e, por fim, os direitos da mulher foram guindados à condição jurídica na "DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO À MULHER", em 1967, em Estatuto ratificado pelos Estados-partes que assinaram esse compromisso, como o Brasil, cujo elenco de direitos foi eruditamente examinado pela professora FLÁVIO PIOVESAN, em sua obra "DIREITOS HUMANOS E DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL".

Ganha prestígio, ressonância e amplitude a luta pela igualdade dos direitos da mulher, no exemplo da Noruega, o primeiro país que criou a cadeira "DIREITO DAS MULHERES", em 1.974, e a fazer funcionar o seu Instituto do Direito das Mulheres, em 1978, na Universidade de Oslo.

Se, nos termos do Programa de Homenagem ao Dia Internacional da Mulher, nós devemos falar em último lugar, num ato cívico que consiste numa "saudação", porque, se devem perguntar todos os presentes e, em particular, as mulheres homenageadas, nós não ficamos numa simples manifestação protocolar e sentimental, ao invés de descermos ao grave diagnóstico das dores do mundo, numa linha de protesto ou numa proclamação de luta pela vitória da democracia?

É porque entendemos que a luta das mulheres por seus direitos, romântica em tempos passados, vitoriosa hoje, continua, entretanto. Cumpre que as mulheres tornem reais e universais os direitos definidos em leis, tratados e convenções, ao revés de formais, pairando no ar como uma nuvem suspensa; que no âmbito das convenções, seja o princípio da igualdade tratado como obrigação vinculante, como objetivo, e que as mulheres não sejam utilizadas como mão de obra barata ou de reserva.

Sobretudo porque a luta das mulheres não pode ficar restrita ao front de seus próprios e específicos direitos.

Essa luta deve transcender esse limite e se espraia a todos os frontes onde estão em jogo os direitos do homem e da humanidade.

A luta contra a discriminação dos direitos da mulher, no Brasil, hoje, deve se estender a todas as formas de discriminação que atinge a todas as camadas do povo brasileiro.

Luta contra a discriminação que fere quarenta milhões de menores de dezoito anos, de ambos os sexos, sem acesso à saúde, à instrução, sem segurança jurídica ou econômica; contra a discriminação de meninas entre doze e dezoito anos, em número superior a um milhão, que se prostituem nas cidades do Brasil e morrem prematuramente e hoje, como contrabando sinistro, nos países do Mercosul, povoam os lupanares do Paraguai.

Luta contra a discriminação de mais de vinte milhões de brasileiros que são analfabetos funcionais que, ao contrário do analfabeto formal que não sabe ler, lê mas não entende. Luta contra o alarmante contingente de desempregados, cujo número cresce diariamente nas grandes cidades, compondo os cinturões de miséria, responsáveis, criminologicamente, pelo aumento da criminalidade. Luta contra a discriminação dos despossuidos, dos marginalizados, dos brasileiros, em número de trinta e cinco milhões que trabalham na economia invisível, que não pagam impostos e concorrem lesivamente com a atividade dos que contribuem para o fisco.

Luta contra a discriminação dos presos que sofrem a sobre-pena capital da morte nas prisões superlotadas, e cuja pena de morte, eufemisticamente, não figura na Constituição Federal.

Luta contra a discriminação de brasileiros de todas as camadas sociais, perdidos no interior do pais, numa linha de sobrevivência, atingidos em suas vidas, em suas integridades físicas, em todas as formas de liberdade, discriminados, enfim, até no seu direito de sonhar por melhores dias, no seu direito de acalentar a bruxoleante chama da esperança.

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Porque lhes falamos, neste dia festivo, Dia Internacional da Mulher, de temas tão amargos que dizem respeito à nossa soberania, aos nossos caminhos do futuro?

Porque, como um trovador medieval e, para tanto não nos falta imaginação e veia poética, não proferimos algumas frases galantes, não oferecemos buquês de flores e, comovidamente, não beijamos as mãos das mulheres homenageadas?

Porque os temas expendidos até aqui estão, potencial e virtualmente, no ideário do IARGS, quando nos seus Estatutos fala da ordem social e, falar da ordem social significa lutar pelo império do direito na efetiva realização da justiça distributiva.

Aquele fenômeno atmosférico do tornado nos Estados Unidos, que se desloca a mais de trezentos quilômetros horários, cuja sucção importa em tragar homens, animais, veículos e casas, jogando tudo quilômetros além, cabe lembrar agora.

Nós, a Nação Brasileira, estamos de olho no tornado.

O Relatório sobre o Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas mostrou, recentemente, a disparidade crescente entre ricos e pobres, acentuada pela globalização da economia, porque não se reverte o crescimento econômico em desenvolvimento humano. As Nações Unidas falam dos excluídos, dos que não tem educação básica, saúde, habitação e emprego, e o nosso país está em 58º lugar entre 174 países do mundo.

Nós nos atrevemos a dizer que o Brasil está em guerra civil não declarada e, nesta guerra, é decisivo o papel das mulheres.

As eleições de quatro de outubro se aproximam e é capital a contribuição das mulheres na pedagogia do regime democrático, na busca da verdade eleitoral e no dever do voto consciente.

WALTER LIPMANN jornalista e sociólogo americano, na obra "A RECONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE", afirma que há uma diferença entre o leão e o tigre, entre o leão da África e o leão da Ásia, mas que, para a gazela e o cordeiro todos são predadores e carnívoros.

Este é o momento decisivo da participação das mulheres, para que o povo brasileiro, depois do pleito, não julgue, na posição da gazela ou do cordeiro, os vencedores das urnas, como leões ou tigres.

Ou, antes do pleito, se posicione, amarga ceticamente, na linha da parábola árabe da caravana no deserto. Mercadores atravessavam o deserto transportando ricas mercadorias, quando ouviram um tropel de cavalos no distante horizonte. Eram os salteadores. Os mercadores falaram aos cavalos: corramos, são salteadores, mas os cavalos não o fizeram porque, mercadores ou salteadores de estrada, para os cavalos era indiferente, pois seriam sempre e apenas cavalgaduras.

Dia Internacional da Mulher, mulheres de todo o mundo, mulheres do Brasil, mulheres do Rio Grande, combatentes do mesmo combate, imbuídas dos mesmos ideais na perseguição dos mesmos direitos.

E, às mulheres do Rio Grande, aqui presentes, nesta homenagem, nós as convocamos para que, ombro a ombro, numa luta permanente, olhemos a luz verde que está no fundo do túnel, para que ela ilumine e inspire a nossa causa comum.

Unidos aos operadores do direito, juizes, promotores de justiça, advogados e professores, a nós, humanistas e juristas, possamos todos trabalhar na construção de um efetivo país justo e digno, sob o manto da ordem jurídica e da segurança social e econômica, na estrada do terceiro milênio, esfinge que se desenha na fimbria do horizonte a desafiar o destino da humanidade.

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Sobre o autor
Paulo Pinto de Carvalho

advogado, professor aposentado das Faculdades de Direito da UFRGS e PUC/RS, procurador da Justiça aposentado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Paulo Pinto. A luta da mulher continua. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1947. Acesso em: 4 nov. 2024.

Mais informações

Saudação proferida na homenagem do INSTITUTO DOS ADVOGADOS DO BRASIL - IARGS, ao DIA INTERNACIONAL DA MULHER

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